José Eduardo Faria

Por que tanta estupefação com o personagem? Afinal, ele já era suficientemente bem conhecido – como são, aliás, todos os demais cavilosos militares que ascenderam ao poder com o atual presidente da República. Ao tratar com deboche, após a revelação de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-audios-do-stm-e-a-luta-por-verdade-justica-e-memoria-no-brasil-19042022">áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM)</a>, as investigações sobre crimes de tortura ocorridos durante a ditadura militar, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, foi muito além de mostrar o quão toscas são suas posições em matéria de ideologia e política.
“Apurar o quê? Os caras já morreram, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”, disse ele a respeito de uma página negra da história do país, em que militares e policiais boçais invocaram a reação contra o que chamavam de “subversão da ordem” como pretexto para prender, torturar e assassinar. De saída, a fala do general envolve duas importantes questões correlatas. A primeira questão é sobre a responsabilidade dos agentes do poder público sob um regime ditatorial. A segunda questão trata da tensão entre a responsabilidade individual e a noção de responsabilidade coletiva.
Essas questões não são novas. Elas já foram respondidas de modo magistral – mas também polêmico – há mais de cinco décadas pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), quando analisou a capacidade de pensar e julgar do homem, a delegação de responsabilidade, por meio de atos normativos, quanto a violações cometidas no âmbito do Estado e/ou pelo Estado, a criminalidade no âmbito do domínio público e a transferência de responsabilidade coletiva.
Nos períodos em que os marcos éticos, morais e políticos estão corroídos, como no tempo do nazismo, o que ocorre com a capacidade humana de julgar racionalmente? Qual é a responsabilidade daqueles que estão nos escalões mais baixos, nos porões das burocracias opressoras? – indagava essa pensadora em textos clássicos sobre a banalidade do mal e a relação entre responsabilidade e julgamento. Como as máquinas burocráticas opressoras tendem a resultar no mando de ninguém (ou na agressividade e na violência do guarda da esquina, como se dizia após o advento do Ato Institucional nº 5), elas acabam constituindo o modo “menos humano e mais cruel dos governos”. A atribuição de culpa a todos permite que ninguém termine responsabilizado, afirmava.
Em "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal", originariamente publicado em 1963, Hannah Arendt reúne artigos que vão na contramão dos que acusavam o militar nazista Adolf Eichmann de ser criminoso. Um dos responsáveis pelas deportações de judeus europeus para centros de extermínio na Polônia e na União Soviética ocupadas, Eichmann tentou eximir-se de culpa, alegando que só cumprira ordens superiores. Partindo desse argumento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si. Segundo ela, quando integram um aparato de poder essas pessoas agem apenas como funcionários diligentes, acatando ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para torturar e matar inocentes.
Desse modo, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, isto sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. O problema de Eichmann não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.
Assim, a dimensão cognitiva e moral desse militar nazista foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, dizia Arendt.
Já na coletânea "Responsabilidade e Julgamento", publicada depois de "Eichmann em Jerusalém", a autora discute as transfigurações dos valores ocorridas na sociedade alemã, em cujo âmbito o nazismo substituiu o princípio do “não matarás” pelo “matarás”. Em um dos ensaios, ela também advertiu para o risco de se aceitar como normal que a moralidade e a ética, vistas como costumes e hábitos, possam ser alteradas de uma semana para outra conforme as conveniências, abrindo com isso caminho para a barbárie. Segundo ela, apenas a capacidade de julgamento impede o homem de se barbarizar. Ou seja, de cometer o mal, invocando ser o “dente da engrenagem” de uma máquina governamental como justificativa para suas torturas e seus assassinatos.
“Apurar o quê? Os caras já morreram, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?” – disse o general Mourão, em tom de deboche, a respeito dos torturados e assassinados pela ditadura militar da qual é defensor, mesmo que ela tenha caído há mais de três décadas e meia. Examinada sob a lente de Hannah Arendt, esta fala – bem como a própria carreira política de seu autor – só podem ter a lata de lixo como destino. Entre outros motivos, por revelar que esse senhor – e outros colegas de farda, como o presidente do STM, general Luís Carlos Gomes Mattos, para quem os áudios “não estragaram a Páscoa”, revelando que lhe faltam a isenção, senso de pertinência, o conhecimento jurídico e até mesmo os valores éticos das carreiras jurídicas necessários para atuar como magistrado – não têm consciência de que o julgamento dos crimes cometidos por militares e policiais pela ditadura de 1964 a 1985 não é apenas judicial. É, principalmente, histórico, por tratar não só de cruéis e dramáticas questões de fato, mas, acima de tudo, de um problema moral que vem levando o país, desde o início do atual governo, a um retrocesso civilizatório.

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JOTA

Examinada sob a lente de Hannah Arendt, fala de Mourão só pode ter a lata de lixo como destino

Os áudios do STM, o general debochado e o retrocesso civilizatório

Áudios do STM e reação de Mourão: Examinada sob a lente de Hannah Arendt, declaração do general só pode ter a lata de lixo como destino