Beatriz de Sousa Gonçalves

Se 2020 foi um ano que muitos gostariam de apagar da memória, para os cariocas, infelizmente já acostumados com constantes escândalos de corrupção nos mais variados níveis da Administração Pública, o ano conseguiu superar o surrealismo de ter mais um governador afastado da sua função e terminou com o prefeito do município do Rio de Janeiro sendo preso por suposto envolvimento em organização criminosa instalada na própria Prefeitura. Se o Brasil é para os fortes, o Rio de Janeiro certamente é para não cardíacos.
No dia 1º de janeiro de 2021, contudo, em meio a habituais e pomposas celebrações das posses dos novos vereadores e do “novo” prefeito, já que Eduardo Paes é um velho conhecido dos cariocas, deve-se chamar atenção a um fato que passou despercebido por muitos.
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No primeiro dia do ano, no Diário Oficial nº 205 do Ano XXXIV<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, constam 74 novos decretos promulgados pelo prefeito. Se o número em si não causa espanto, a variedade dos temas e a sua inconteste preocupação não só em ajustar as contas do município, mas também em instaurar padrões de integridade e transparência na própria Administração Pública o deveriam.
Embora seja verdadeiramente difícil afastar o sentimento de ceticismo em relação a mudanças efetivas, uma leitura mais atenta do referido Diário Oficial mostra o inegável esforço técnico que existe por detrás dos novos atos normativos. Não estamos falando aqui de decretos que ignoram a péssima situação da gestão pública carioca ou que propõem medidas inalcançáveis.
O maior mérito desse primeiro dia de governo não foi o de rasgar tudo que o que foi feito anteriormente e começar do zero, como é habitualmente feito por muitos gestores públicos, mas sim o de tentar organizar o caos e sistematizar o que já existe, de forma a aprimorar a eficiência na gestão da coisa pública.
Na área econômica, por exemplo, são 44 decretos que consubstanciam diversas medidas já esperadas, como:
(i) a suspensão de concursos públicos novos e em andamento (Decreto Municipal nº 48.374/2021);
(ii) a suspensão da eficácia dos atos normativos que criam despesa obrigatória de caráter continuado sem observância dos requisitos legais (Decreto Municipal nº 48.361/2021);
(iii) a redução de despesas com gratificações e cargos de confiança (Decretos Municipais nº 48.353/2021 e 48.354/2021);
(iv) o condicionamento de Restos a Pagar em 2021 à prévia ratificação da regularidade da contratação pelos atuais ordenadores de despesa (Decreto Municipal nº 48.364/2021);
(v) a obrigação de prorrogações contratuais com valor igual ou superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) serem previamente submetidas à aprovação da Secretaria Municipal de Fazenda, ainda que exista orçamento disponível para a sua contratação (Decreto Municipal nº 48.357/2021); e
(vi) a criação da Coordenadoria de Análise e Controle de Gastos – CACG (Decreto Municipal nº 48.387/2021).
As maiores inovações, contudo, escapam à área econômica, estando diretamente ligadas ao tema que é o “calcanhar de Aquiles” dos governos cariocas, a corrupção.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, as propostas em questão buscam instituir maior integridade, transparência e eficiência na Administração Pública Municipal.</blockquote>
O Decreto Municipal nº 48.349/2021, por exemplo, cria o “Programa Carioca de Integridade Pública e Transparência – Rio Integridade”, o qual se delineia em três frentes:
(i) a ideia de desenho institucional (será feita a normatização do Programa e a criação do Sistema Carioca de Integridade Pública e Transparência);
(ii) a estruturação de um arcabouço normativo (revisão e consolidação das normas sobre integridade pública e transparência);
(iii) a implementação de ferramentas de integridade (estabelecimento de mecanismos de monitoramento e fomento de ações de integridade e transparência).
Nesse sentido, a despeito do que comumente tem se tornado uma tendência no Direito Administrativo contemporâneo, no qual atos normativos costumam estabelecer diretrizes mais abstratas e gerais aos gestores públicos, dando maior espaço a discricionariedade dos Chefes do Poder Executivo por meio de comandos abertos, o Decreto Municipal nº 48.349/2021 mostra que, previamente à sua edição, existiu um estudo efetivo sobre a regulação da integridade pública e da transparência ao determinar que os quatorze decretos municipais citados no art. 4º serão submetidos ao chamado “Processo Especial de Revisão Normativa – PREN”.
Repisa-se: se esse direcionamento, clareza e preocupação com a sistematização não são comuns em leis municipais, quiçá em decretos municipais.
Outras positivas surpresas inauguradas no 1º de janeiro de 2021 são:
(i) o Decreto Municipal nº 48.351/2021, que obriga os órgãos e entidades do Poder Executivo Municipal a transmitir, por meio eletrônico de acesso amplo e gratuito, as sessões dos procedimentos licitatórios de bens e serviços realizados sob forma presencial;
(ii) o Decreto Municipal nº 48.371/2021, que amplia o já existente projeto SOFIA (Solução Fiscal baseada em Inteligência Artificial);
(iii) o Decreto Municipal nº 48.390/2021, que determina o prazo de até 30 (trinta) dias para que a Secretaria Municipal de Educação elabore e apresente Plano de Ação para implementar o “Programa Conect@dos”, com a distribuição de tablets e internet móvel para todos os alunos da rede municipal até o final de 2022;
(iv) o Decreto Municipal nº 48.396/2021, que institui o Comitê de Avaliação para prévia aprovação na nomeação dos cargos e empregos de confiança, isto é, até mesmo em cargos de confiança, que normalmente são de livre nomeação e exoneração, será necessária a prévia ratificação de um Comitê formado por representantes da Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública, da Controladoria Geral do Município e da Procuradoria Geral do Município.
Ademais, cita-se o Decreto Municipal nº 48.383/2021, que, seguindo a tendência de se fomentar a coleta e o tratamento de dados cria o “PENSA – Núcleo de Ciência de Dados”, no âmbito do Instituto Fundação João Goulart.
O PENSA terá como objetivo cruzar os diversos bancos de dados disponíveis dentro e fora da Prefeitura, para subsidiar os titulares de órgãos e agentes da Administração direta e indireta na tomada de decisão baseadas em evidências e, para isso, deverá:
(i) aplicar técnicas estatísticas tradicionais, machine learning e de inteligência artificial na obtenção de soluções inovadoras;
(ii) identificar padrões e tendências na aplicação de algoritmos supervisionados, não-supervisionados, semisupervisionado ou por reforço; e
(iii) capacitar servidores públicos dos diversos órgãos em Ciência de Dados tendo como foco casos práticos da Administração Pública Municipal.
Finalmente, como se todas essas mudanças normativas já não fossem suficientes para mexer com o já esgotado coração dos cariocas, o Decreto Municipal nº 48.362/2021 parece responder à ânsia pela responsabilização pessoal daqueles que deixaram a cidade com um rombo fiscal gigantesco e à beira do colapso, ao determinar a instauração de auditoria, sob competência da Controladoria Geral do Município, para análise da legalidade das contratações diretas sem licitação.
Quem sabe com a análise desses processos administrativos seja possível entender porque durante o ápice da pandemia de Covid-19 houve tantos atrasos e problemas com os hospitais de campanha?
Enfim, a pergunta que fica é: será que estão permitindo que os cariocas voltem a sonhar? Obviamente, não se está negando o papel instrumental e limitado da regulação, já que essa depende de ações práticas para proporcionar mudanças efetivas. Contudo, mesmo com essas limitações, é possível ter esperança? A melhor resposta aqui é: talvez.
Não acho que seja justo com a saúde cardíaca dos cariocas fomentar uma crença total na melhoria da situação da cidade, afinal, são 4 anos de governo e muito problema antigo para resolver. Neste momento, o mais saudável que temos a fazer é parar de pensar que pior do que está não fica, afinal o que a recente e traumática experiência de 2020 nos deixa é que, na loucura do Rio de Janeiro, tudo dá para piorar.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;file:///C:/Users/Cliente/Downloads/rio_de_janeiro_2021-01-01_completo.pdf&gt;. Acesso em 04 de janeiro de 2021.

Rio de Janeiro

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Os 74 decretos do município do Rio de Janeiro no primeiro dia do ano

O carioca pode voltar a sonhar?