Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Um artista valoroso de verdade sabe como pintar bem e imitar a natureza.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Michelangelo Merisi da Caravaggio.</footer>
</blockquote>
Na história da pintura ocidental, Caravaggio ocupa um lugar singular. Poucos gênios tiveram tanta influência no desenvolvimento posterior das artes plásticas sem, contudo, deixar uma escola própria.
Mestre da técnica do chiaroscuro, Caravaggio antecipou em cerca de três séculos a pintura moderna, ao trazer para o centro da arte a realidade do drama humano como vivenciado pelas pessoas comuns. Fruto sem dúvida de sua vida turbulenta, a arte de Caravaggio descortina as intrincadas relações entre a genialidade criativa, o direito e a diplomacia.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Nascido no dia 29 de setembro de 1571, em Milão, Michelangelo Merisi da Caravaggio conheceu o sofrimento humano cedo. Em 1576, sua família se vê forçada a mudar-se para a cidade que ele adotou de sobrenome – Caravaggio – para fugir de uma pandemia que devastava a população milanesa da época.
A leitora, certamente, pode imaginar o que eles passaram. Michalangelo perdeu o pai e o avô no mesmo dia em 1577. Tinha apenas cinco anos o menino. Menos de dez anos depois, com treze anos de idade, Caravaggio perderia a sua mãe, no mesmo ano de 1578, em que iniciaria a sua aprendizagem no estúdio de Simone Peterzano, pupilo de Ticiano. Uma árvore alta deita raízes no inferno.
E essa árvore não demorou muito para crescer e dar frutos. Frutos esses repletos de espinhos. Caravaggio tinha um espírito boêmio, irascível e violento. Entrou para história por sua notória incapacidade de controlar a sua agressividade. Para resumir, cara leitora, Caravaggio era arrogante, pavio curto e encrenqueiro.
Não levava desaforo para casa. Era o tipo perfeito de gênio indomável, o que o levou a desenvolver uma íntima relação com o sistema judicial da época. A primeira encrenca de que se tem notícia é a de que, em 1592, com vinte e um anos, Caravaggio teria agredido um policial em Milão. Isso o teria forçado a fugir para Roma, literalmente com a roupa do corpo.
Há males que vem para o bem, diz o ditado. Em Roma, Caravaggio, miserável, encontra abrigo com um sujeito sovina, conhecido como “Monsenhor Salada”, pela péssima provisão que oferecia aos seus hóspedes. Obviamente, Caravaggio se desentende com ele e vai literalmente para baixo da ponte. Tão forte era o gênio e o caráter de Caravaggio, que poucos meses após o incidente, ele já estava trabalhando no ateliê de Giuseppe Cesari, pintor predileto do Papa Clemente VIII. Era o início da sua conquista de Roma.
Em pouco tempo, Caravaggio cai nas graças de um dos principais diplomatas da época, o Cardeal Francesco Maria del Monte (1549-1627), que se torna o seu patrono. Em 1599, por influência do cardeal, Caravaggio é contratado para decorar a Capela Contarelli, na Igreja San Luigi dei Francesi, e apresenta duas obras-primas: “O Martírio de São Mateus” e “A Vocação de São Mateus”.
Recomento fortemente, cara leitora, que busque as duas telas na internet. São fantásticas e fizeram de Caravaggio o artista mais famoso de Roma.
A partir delas, em uma procissão impressionante de genialidade artística, Caravaggio pintou uma obra-prima atrás da outra até a sua morte em 1610. O seu sucesso, contudo, foi acompanhado de uma brutalidade crescente em sua vida de jogatinas, mulheres e brigas de rua. Caravaggio buscava, antes de tudo e em sua própria vida, uma liberdade sem limites, que seria a marca mesma da sua arte.
<blockquote class="jota-article__eye">Daí a sua relação simbiótica com o direito e o sistema judicial italiano da época. Os arquivos judiciais e policiais de Roma ainda estão sendo pesquisados para se reconstruir a história de Caravaggio.</blockquote>
Sabe-se já, contudo, que ele esteve presente em pelo menos 11 processos judiciais, a sua maioria por agressões e porte ilegal de armas. Um deles, cara leitora, referente a uma acusação de calúnia, é particularmente valioso. A
fama de Caravaggio e o seu estilo único de pintura sem preparo – ele pintava diretamente na tela, sem fazer estudos preparatórios –, como não poderia deixar de ser, atraiu uma série de imitadores. Caravaggio os detestava. Chegou mesmo a fazer circular versos ofensivos, no qual ridicularizava a Giovanni Baglione como um plagiarista. Baglione, que seria mais tarde o seu primeiro biógrafo, o processou por calúnia, em 1606, oferecendo a Caravaggio uma oportunidade, talvez não conscientizada, de registrar para a posteridade os princípios da sua teoria da arte.
A leitora pode imaginar a importância histórica de um processo judicial bem conduzido e registrado como esse. Os Arquivos de Estado em Roma, de fato, contêm a história mais vívida daquele período artístico, sem a qual não se poderia compreender a contento as motivações, alianças e relações que geraram algumas das maiores obras de arte da humanidade.
Caravaggio nada escreveu, nem sobre si, nem sobre arte. Mas, em julgamento, deu declarações imortais como a seguinte: “ser um homem de valor é entender profundamente a pintura, como eu, é ser capaz de reproduzir a realidade, o natural (...) deixo a arrogância das palavras vazias para os outros, deixo as minhas obras falarem por mim”.
Caravaggio, de fato, inventou a humanização da arte, reproduzindo os santos e personagens bíblicos na nudez mais brutal da sua humanidade mais sincera e verdadeira. E isso era inédito e escandaloso até então.
E é precisamente nesse ponto que a leitora poderá ter a dimensão do imenso impacto diplomático da obra de Caravaggio. Era o período da Reforma Protestante, época em que o Ocidente havia se fragmentado com as guerras de religião, que eclodiram, dentre outras razões, porque a Igreja Católica havia se alienado do cotidiano das pessoas comuns.
Em reação às revoltas protestantes, a Igreja lançou a Contra-Reforma, um movimento de renascimento e de reestruturação, que visava a reaproximar Roma da experiência humana tal qual vivida por nós neste mundo. O embate tornou-se uma verdadeira guerra cultural, na qual ninguém compreendeu e representou a visão de mundo da Contra-Reforma melhor do que Caravaggio.
Na sua obra, os santos são retratados na fragilidade de seu aspecto mais humano, criando uma identificação tão forte com o espectador, que muitos, na época, não aguentavam sequer olhar para as suas telas. Caravaggio foi o gênio absoluto da diplomacia cultural da Contra-Reforma.
Há um ponto extra, que conecta Caravaggio ao mundo jurídico em um tema sempre atual. Por uma dívida de jogo, em 28 de maio de 1606, Caravaggio envolveu-se em um duelo com Ranuccio Tommassoni, que terminou com a morte deste. O episódio obrigou Caravaggio a fugir para Malta e depois para a Sicília, onde foi comissionado para realizar outras tantas obras-primas.
O caso, contudo, foi a julgamento, e Caravaggio foi condenado in absentia à pena de morte, que em seu caso seria, provavelmente, por decapitação. Caravaggio, então, em busca de misericórdia, pinta a obra-prima “David com a Cabeça de Golias”, na qual o herói bíblico é retratado com um olhar de misericórdia para a cabeça extraída do gigante, que é, em realidade, um auto-retrato de Caravaggio com a marca dos condenados na testa. A obra é, talvez, o maior manifesto da história da arte contra a pena de morte. Para Caravaggio, a morte não é um castigo, mas, sim, uma libertação.
O aniversário de 450 anos do nascimento de Caravaggio, por fim, nos convida a uma pausa para refletir sobre as intrincadas relações entre arte, direito e diplomacia.
A obra de Caravaggio era tão intensa, que ficou afastada do grande público por três séculos, tendo sido reabilitada somente no século XX, a partir do momento em que Picasso, ao pintar a “Guernica”, declarou que queria conseguir retratar o cavalo em toda a sua animalidade, como Caravaggio o havia feito na “Conversão de São Paulo”.
Caravaggio atuou, cara leitora, como um baixo-contínuo, influenciando os artistas, mas longe do público. O tempo, como sói, lhe fez justiça. Tandem obtinet.

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JOTA

Um exemplo brutal das relações entre arte, justiça e diplomacia

Os 450 anos do nascimento de Caravaggio

Um exemplo brutal das relações entre arte, justiça e diplomacia