Pedro Magalhães Batista

Apesar de historicamente as instituições financeiras terem detido exclusividade quanto aos dados financeiros de seus usuários, com o aumento da inovação tecnológica nos serviços financeiros, os consumidores agora têm mais opções de escolha de seus prestadores de serviços nos mercados de pagamentos e bancários.
Esse maior fluxo de dados foi auxiliado por inovações regulatórias. O <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/open-finance">open finance</a> facilitou a entrada de novos atores, obrigando o compartilhamento de dados em posse das instituições incumbentes com entrantes, além de reforçar as políticas de segurança cibernética e proteção de dados. Ao dar maior controle aos clientes sobre seus dados transacionais e ampliar a interoperabilidade, o open finance fortalece o poder de barganha dos clientes e reduz o impacto da concentração de dados nas mãos das grandes instituições financeiras.
Essa nova regulação, porém, também tem facilitado a entrada de atores atípicos ao mercado financeiro, em especial, as grandes empresas de tecnologia (conhecidas como big techs)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Pela natureza de seus modelos de negócios, as big techs têm uma relação bem diversa com os dados pessoais de seus consumidores, quando comparadas com as instituições financeiras, acostumadas com o sigilo bancário. Essa dinâmica tem sido tema de debate internacionalmente devido aos riscos à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/privacidade">privacidade</a>, à competitividade, à segurança cibernética e à estabilidade financeira<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Aproveitando a quantidades de dados gerados em suas plataformas e se beneficiando do acesso a informações viabilizado pelo open finance, as big techs têm elevado sua participação no mercado financeiro, usualmente começando pelos pagamentos digitais.
O direito de portabilidade introduzido pela <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">Lei Geral de Proteção de Dados</a> (LGPD) — também presente no open finance — busca fomentar a concorrência entre as plataformas digitais, diminuindo os custos de transação incorridos pelos consumidores. Entretanto, alguns estudos especializados nas experiências da Revised Payment Services Directive 2 (PSD2) — a norma europeia que inspirou o open finance — e a General Data Protection Regulation, de 2016 — a norma europeia que inspirou a LGPD — têm questionado a eficácia da portabilidade de dados no aumento da concorrência e suas limitações atuais em relação a plataformas digitais<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Com a PSD2, as instituições financeiras passaram a ser obrigadas a permitir que instituições autorizadas tenham acesso às informações das contas de seus clientes e que possam fazer pagamentos a partir destas contas, dando efetividade à portabilidade. Logo, essas instituições são capazes de competir com as instituições financeiras oferecendo serviços de iniciação de transação de pagamento. Ao revés, de acordo com o GDPR, essas empresas, incluindo as big techs, são obrigadas a facilitar a portabilidade de dados apenas quando tecnicamente viável, de certa forma criando uma assimetria e vantagem competitiva para as big techs.
A LGPD e o open finance compartilham preocupações quanto aos riscos em relação à concentração de dados. Porém, ao passo que a LGPD almejou limitar mais diretamente o abuso quanto ao uso de dados por toda e qualquer instituição, sem ter mercados ou atores específicos em seu desenho inicial, a agenda do open finance imputa obrigações de compartilhamento de dados apenas para as instituições financeiras incumbentes.
Nesse cenário, cria-se uma potencial afronta ao princípio da reciprocidade do open finance. Isso porque as instituições financeiras e de pagamento precisam ser transmissoras de dados para serem receptoras de dados. Ao revés, as big techs são receptoras de dados financeiros, quando autorizadas, mas não possuem dados financeiros de monta para transmitir, sendo que não são obrigadas a transmitir os demais dados pessoais que tratam e possuem relevância financeira.
Surge uma preocupação concorrencial relevante. Apesar de os serviços financeiros ainda constituírem apenas uma pequena parcela dos negócios globais das big techs, elas podem rapidamente concentrar o setor financeiro<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, os quais possivelmente virão a ser alavancados com condutas anticompetitivas de self-preferencing, discriminação no acesso à plataforma e recusa de contratar. Como as big techs já desfrutam de economias de escala e escopo e efeitos de rede em seus mercados principais, ao adicionar serviços de pagamentos e financeiros a seus ecossistemas, acabam alavancando sua posição estratégica na relação com seus usuários contra outros competidores<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
É importante lembrar também que uma estratégia comum das big techs é explorar as informações coletadas das empresas que operam em suas plataformas ou com as quais fazem parcerias para futuramente competir contra elas<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Portanto, há um risco presente de que, ao se intensificar as conexões entre plataformas digitais e serviços financeiros, a tendência não será apenas de ampliação da concorrência como almeja o open finance, mas de maior concentração na outra ponta, em relação às big techs<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Por isso, toda atenção das autoridades regulatórias é importante nesse estágio inicial.
Ainda mais problemático será compreendermos o impacto sob a privacidade desses consumidores. Como nos mercados típicos em que atuam as big techs, a compensação usualmente não se dá pela cobrança direta do consumidor, mas pela comercialização de seus dados pessoais para publicidade ou outros serviços paralelos, uma maior concentração nos mercados digitais e financeiro tenderá a ampliar o poder dessas plataformas no desenho dos acordos de privacidade.
Acertadamente, para compensar essa consequência não intencional da política do open finance, o Banco Central também fortaleceu as políticas de segurança cibernética e riscos operacionais no mercado financeiro. Logo, as normas do BC e sua interação com a LGPD cresce sua importância com o aumento da participação das big techs nos mercados financeiros.
É interessante relembrar que os dados financeiros têm uma complexidade adicional aos demais dados pessoais, visto que eles não se limitam aos dados daqueles que expressamente consentiram com o serviço prestado, mas também incluem dados daqueles com quem transacionam. Na linguagem da norma europeia de proteção de dados, estes têm sido denominados como “dados da parte silenciosa”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Devido à complexidade dos temas relacionados à obtenção de consentimento — por interagirem com atores dominantes e por incluírem dados de terceiros — e a assimetria quanto à interoperabilidade e aos dados que devem ser compartilhados, é essencial que BC e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">ANPD</a> atuem, nas respectivas esferas de competência, na supervisão das big techs para a proteção da privacidade, competitividade e estabilidade do mercado.
Como as instituições de pagamento (IPs) têm servido como porta de entrada para as big techs no mercado financeiro, Banco Central e ANPD têm que atuar de forma robusta no que diz respeito às limitações de transação de dados, proporcional ao risco da instituição. O BC, por exemplo, limita as IPs, quando da prestação de serviço de iniciação de transação de pagamento, a utilizar, armazenar ou acessar esses dados para outra finalidade que não a prestação do serviço de iniciação expressamente solicitado pelo usuário, conforme o inciso III do artigo 4˚ da <a href="https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&amp;numero=80">Resolução BCB n˚ 80 de 25 de março de 2021</a>.
Outra razão importante para a atuação da ANPD se dá pela diversidade da relação que as big techs e as instituições financeiras e de pagamento possuem com os dados de seus consumidores. As instituições financeiras e de pagamento possuem como um diferencial seu modelo de discrição e sigilo quanto às operações de seus clientes, tal qual estabelecido pela Lei de Sigilo Bancário<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Ou seja, a proteção de dados dos consumidores está alinhada com os interesses das instituições.
Os modelos de negócios típicos das big techs, em contraste, frequentemente se encontram em conflito com a manutenção da privacidade de seus usuários já que usualmente são baseados na comercialização dos dados de seus usuários. É exatamente quando os incentivos das empresas se conflitam com os direitos de seus usuários que os papéis da regulação e supervisão se tornam ainda mais prementes.
Assim, a ANPD e o Banco Central devem se concentrar no compromisso de nivelar o campo de jogo em termos de acesso a dados, tecnologias e infraestruturas, tal qual feito no passado pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a> e BC em relação a condutas anticompetitivas de grandes conglomerados bancários<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Em suma, o open finance traz oportunidades, mas também riscos de nova concentração de mercado, dessa vez nas mãos das big techs, que possuem vantagens competitivas no atual arranjo de compartilhamento de dados. A competitividade, inovação e desenvolvimento econômico almejados pelo open finance só poderão ser alcançados quando esse modelo caminhar rumo a um open data, obrigando que big techs compartilhem os dados pessoais que tratam com as instituições financeiras e de pagamento, o que traz benefícios diretos para os titulares.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Basel Committee, Implications of FinTech developments for Banks and Bank Supervisors (2018). Tradução livre.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Miguel de la Mano e Jorge Padilla, Big Tech Banking, 14 Journal of Competition Law and Economics 494 (2018).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Miguel de la Mano e Jorge Padilla, n.2; Michal Gal e Oshrit Aviv, "The Unintended Competitive Effects of the GDPR", 16 Journal of Competition Law and Economics 349 (2020)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Juan Carlos Crisanto, Johannes Ehrentraud, Marcos Fabian, "Big techs in finance: regulatory approaches and policy options", BIS/FSI Brief N. 12, 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Raghuram Rajan, por exemplo, argumenta que…, All Eyes on Digital Payments, https://www.project-syndicate.org/commentary/digital-payments-bitcoin-stablecoins-central-banks-by-raghuram-rajan-2021-03.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Khan, “Amazon’s antitrust paradox”, 126 Yale Law Journal (2017), at 710 (arguing that: “This dual role also enables a platform to exploit information collected on companies using its services to undermine them as competitors.”)
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Aqui relembramos as válidas preocupações do CADE com a parceria entre Facebook e Cielo no mercado de pagamentos com o WhatsApp Pay.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> European Data Protection Board, Comments to the Guidelines 06/2020 on the interplay of the Second Payment Services Directive (PSD2) and the GDPR, https://edpb.europa.eu/sites/default/files/webform/public_consultation_reply/comments_to_the_guidelines_on_gdpr_and_psd2_interplay.pdf
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Tri Vi Dang, Gary Gorton, Bengt Holmström, Guillermo Ordoñez, "Banks as Secret Keepers", American Economic Review, Vol. 107, No. 4, April 2017
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Pazarbasioglu, C., Mora, A. G., Uttamchandani, M., Natarajan, H., Feyen, E., &amp; Saal, M. (2020). Digital Financial Services. World Bank, April, 54.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>

cartao

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JOTA

ANPD deverá regular proteção de dados proporcionalmente aos riscos da entrada das big techs no mercado

Open finance, LGPD e big techs

ANPD deverá regular proteção de dados proporcionalmente aos riscos da entrada das big techs no mercado de open finance