No último dia 25 de janeiro, o governo brasileiro anunciou a carta da OCDE formalizando o convite para o Brasil dar início ao processo de adesão à organização. No mesmo dia, mais cedo, a Transparência Internacional publicou o seu Índice de Percepção da Corrupção (IPC 2021), com resultados muito negativos para o Brasil. Os dois eventos têm mais relação entre si do que a coincidência de datas.
Na escala de 0 a 100 do IPC, em que 0 é a maior percepção de corrupção e 100 a menor, o Brasil alcançou apenas 38 pontos. A nota foi a mesma do ano anterior, mas o país caiu duas posições e agora ocupa a 96ª colocação entre os 180 países e territórios avaliados.
O desempenho ruim do Brasil o coloca mais uma vez abaixo da média global, de 43 pontos, mas também abaixo da média dos BRICS (39 pontos), da média regional para a América Latina e o Caribe (41 pontos) e ainda mais distante da média dos países do G20 (54 pontos) e da OCDE (66 pontos).
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é hoje um dos organismos multilaterais mais efetivos para a disseminação de padrões regulatórios e melhoria de políticas públicas no mundo. Um de seus mais importantes instrumentos é a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Concluída em Paris em 1997, a Convenção tem hoje como signatários os 38 países membros da OCDE e seis não membros, entre eles o Brasil, que a ratificou no ano 2000.
Apesar de ter um número muito menor de signatários que os 140 países da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, a convenção da OCDE tem uma relevância tão grande ou maior que a da ONU como marco legal internacional anticorrupção. A principal razão é o seu foco sobre um ponto central do problema: o suborno pago por empresas multinacionais ou investidores de países ricos em suas transações com países pobres.
Este problema ainda é muito grave, mas já foi pior. Uma das bandeiras prioritárias da Transparência Internacional em seus primeiros anos de existência, no início da década de 1990, foi a responsabilização dos países ricos por fomentarem a corrupção nos países pobres, ao pagarem suborno em suas transações nestes mercados.
A convenção da OCDE contra o suborno transnacional foi um grande marco para o enfrentamento desta prática. A pressão de entidades como a Transparência Internacional foi importante para gerar conscientização sobre o tema, mas o mais determinante foram as pressões do próprio mercado.
Os primeiros esforços institucionalizados anticorrupção não surgiram pelo imperativo ético, mas pela pressão de agentes econômicos insatisfeitos com a perda de oportunidades de negócio quando um competidor subornou antes, subornou mais ou assumiu riscos maiores para subornar. Assim, grupos de pressão passaram a se organizar para confrontar a espiral da corrupção, que gera riscos e prejuízos que superam largamente as vantagens eventualmente alcançadas. Estas pressões foram catalisadoras dos primeiros movimentos para se coibir a trapaça em determinados setores, depois em nível nacional e, finalmente, nos mercados globais.
O famoso Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), promulgado em 1977 nos Estados Unidos, foi a primeira legislação no mundo que criminalizou o suborno de funcionários públicos estrangeiros para obtenção ou manutenção de negócios. Ela surge exatamente desta insatisfação de agentes econômicos que perdiam contratos em outros países pela corrupção de competidores. No entanto, quando a lei começou a ser efetivamente aplicada e elevou o risco de empresas dos EUA de se valerem do suborno em suas operações globais, o que ocorreu foi o surgimento de uma vantagem comparativa de seus competidores europeus, que ainda não estavam sujeitos a leis semelhantes em seus países.
Este prejuízo foi o principal indutor para que os EUA exercessem forte pressão para a criação de regramentos anticorrupção universalmente aceitos – e a OCDE foi o organismo multilateral que liderou este processo com sua Convenção contra o suborno transnacional de 2000. A partir daí um número crescente de países passou a se submeter a este marco internacional e promulgar suas próprias leis nacionais criminalizando a corrupção de funcionários públicos estrangeiros, como é o caso do UK Bribery Act de 2010 e a Lei Anticorrupção brasileira de 2013.
Desde quando ratificou a Convenção no ano 2000, o Brasil vinha consolidando uma reputação de país compromissado com o enfrentamento da corrupção transnacional, com esforços de aprimoramento de leis e fortalecimento das instituições de controle. Esses esforços começaram a produzir resultados concretos nas primeiras sanções a empresas brasileiras por suborno transnacional, como foram os casos da Embraer e da Odebrecht.
Contudo, os graves retrocessos vividos hoje na luta contra a corrupção no Brasil, que vão muito além de correções necessárias de rumo, foram percebidos pelos foros especializados internacionais e afetaram fortemente a imagem positiva que o país vinha consolidando.
A situação se tornou tão crítica que, em 2019, o Grupo de Trabalho contra o Suborno da OCDE (WGB/OECD, que monitora o cumprimento da Convenção), aprovou o envio de uma missão de alto nível ao Brasil para verificar o descumprimento de compromissos assumidos pelo país e estabelecer diálogo com as autoridades competentes para reversão de retrocessos. O principal retrocesso naquele momento foi, de fato, revertido, que era a paralisação do Coaf, a partir de uma decisão liminar do então presidente do STF, Dias Toffoli, acolhendo um recurso da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Mas o quadro geral de retrocessos e descumprimentos não se atenuou, ao contrário, agravou-se e, em 2020, o WGB adotou outra medida gravosa e inédita, com a criação de um sub-grupo ad hoc para monitorar exclusivamente a situação do Brasil.
Hoje, portanto, o Brasil se encontra submetido a um regime de monitoramento especial na OCDE, graças ao desmanche de sua capacidade de cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da Convenção contra o suborno transnacional.
Esta situação muito provavelmente se agravará em 2022 e poderá resultar em sanções concretas, já que está prevista uma avaliação geral (4ª Fase de Revisão) do Brasil no âmbito da Convenção da OCDE. Além disso, será a vez também de o Brasil passar pelo segundo ciclo de revisão periódica da Convenção contra a Corrupção da ONU e a quarta rodada de avaliação mútua do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) – o principal organismo internacional de coordenação de esforços contra os fluxos ilícitos de capitais e lavagem de dinheiro.
Pode ter surpreendido a muitos que, diante de um quadro como este, o Brasil tenha recebido uma carta-convite da OCDE para iniciar seu processo de adesão. Mais surpreendente ainda por esse quadro se completar com os graves retrocessos na proteção do meio ambiente, a deterioração democrática e a gestão desastrosa da pandemia. Contudo, para quem conhece os procedimentos de adesão e, principalmente, acompanha a política interna da OCDE, não foi uma surpresa tão grande.
O processo de adesão é longo e criterioso. Nos últimos casos durou mais de três anos, já chegou a ultrapassar cinco anos e pode ser interrompido a qualquer momento. Trata-se de um processo rigoroso porque um dos principais objetivos da expansão do número de membros é justamente que mais países adotem as cartilhas da organização.
Considerações geopolíticas certamente pesaram muito na decisão da OCDE em convidar o Brasil neste momento, fazendo vista grossa às atrocidades do governo Bolsonaro. Entre estas considerações, talvez a principal seja a China. A OCDE também é um vetor importante na tentativa do Ocidente de mitigar sua perda de influência no mundo frente ao crescimento chinês.
O Brasil é, obviamente, um palco relevante desta disputa e as incertezas que trazem o processo eleitoral muito provavelmente influenciaram na decisão de não postergar o convite de adesão. Dando início ao processo formal, a OCDE “amarra” o país na trajetória de adesão, gerando mais dificuldade para uma possível reversão com a eleição de um novo governo menos entusiasta do “clube dos ricos” e mais pragmático (ou hábil) no uso da alternativa chinesa como elemento de barganha.
E mesmo no cenário mais improvável de reeleição, a OCDE também ganha, já que o processo de adesão possibilitará o avanço de sua agenda de reformas no país e, caso essa possibilidade não se realize e o custo político da proximidade com Bolsonaro se torne insustentável, ela pode sempre se utilizar da suspensão do processo, como já o fez com a Rússia, na ocasião da invasão da Ucrânia em 2014.
Ainda que se possa criticar o pragmatismo inconsequente da OCDE com o passo inicial precipitado, o processo de adesão não será um jogo de cena. Portanto, trará oportunidades para impulsionar reformas e melhoria de políticas públicas – ou ao menos frear novos retrocessos – em áreas como a proteção do meio ambiente, a transparência fiscal e a integridade pública. Quanto maior for o espaço de participação da sociedade civil, do setor privado e de setores variados da administração pública neste processo, maiores as chances de que prevaleça o interesse público.
O pragmatismo da OCDE vem muito de seu foco, mais restrito que outros organismos multilaterais, no desenvolvimento econômico. Mas não se deve esquecer que ela surgiu para a reconstrução de um continente arrasado pelo colapso da democracia. Este pragmatismo, portanto, tem limites.