Grupo de Pesquisa sobre Jurisprudência do TIT do NEF/FGV Direito SP

Dando seguimento à segunda fase do projeto Observatório do TIT-SP, em que são analisadas decisões recentes da Câmara Superior do Tribunal, o objetivo do presente texto é o de avaliar a recente decisão tomada na sessão temática do dia 24 de março, em que o tribunal pacificou seu entendimento no tocante à glosa de créditos de aquisições de mercadorias oriundas da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/zona-franca-de-manaus">Zona Franca de Manaus</a>.
Em apertada síntese, a discussão girou em torno da possibilidade ou não de as autoridades fiscais paulistas de glosar créditos nas referidas aquisições, considerando que os benefícios fiscais concedidos pelo estado do Amazonas por meio da Lei Estadual 2.826/2003 não foram previamente autorizados pelo Confaz.
Se por um lado a fiscalização fundamenta a glosa dos créditos, nessas aquisições, no art. 8º, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp24.htm">Lei Complementar 24/75</a>, bem como na legislação paulista que internaliza no estado tal possibilidade, por outro os contribuintes levantam o art. 15 da mesma lei como cláusula que excepciona a aplicação da LC 24/75, sobretudo das sanções impostas pelo art. 8º em casos de benefícios concedidos sem anuência unânime dos estados (regra imposta pelo art. 2º, § 2º, da referida lei).
O ponto fulcral da discussão, portanto, é a possibilidade ou não de o art. 15 bloquear a aplicação dos arts. 2º e 8º da LC 24/75 às aquisições de mercadorias originadas na ZFM. Para que não restem dúvidas quanto ao tema aqui tratado, tais dispositivos têm a seguinte redação:
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do governo federal.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">(...)</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">
<ul>
<li>2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.</li>
</ul>
</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta lei acarretará, cumulativamente:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Il - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 15 - O disposto nesta lei não se aplica às indústrias instaladas ou que vierem a instalar-se na Zona Franca de Manaus, sendo vedado às demais Unidades da Federação determinar a exclusão de incentivo fiscal, prêmio ou estímulo concedido pelo estado do Amazonas.</blockquote>
A tese fazendária sagrou-se vencedora por uma apertada vantagem, tendo sido computados 9 votos a seu favor e 7 contrários. Em termos bastante genéricos, enquanto os votos contrários à glosa coincidiam com a plena aplicabilidade do art. 15, no sentido de afastar a necessidade de aprovação unânime dos estados para que incentivos de <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/icms-entenda-os-aspectos-fundamentais-13052021">ICMS</a> fossem concedidos a empresas instaladas na Zona Franca de Manaus, com a consequente impossibilidade de glosa de créditos pelos estados de destino, a tese vencedora baseou-se em distintos fundamentos para manter os autos de infração, o que revela uma heterogenia nos posicionamentos de seus defensores. Os argumentos da tese vencedora podem ser resumidos da seguinte forma:
<table width="642">
<tbody>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Argumento</td>
<td style="width: 349.461px;">Fundamentação geral</td>
<td style="width: 132.195px;">Dispositivos invocados<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a></td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Temporal</td>
<td style="width: 349.461px;">Art. 15 somente pode ser aplicado aos incentivos existentes ao tempo da promulgação da CF/88, não sendo capaz, portanto, de legitimar créditos de aquisições beneficiadas por legislações posteriores, como é o caso da lei amazonense de 2003</td>
<td style="width: 132.195px;">Art. 40, caput, do ADCT; Art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Espacial</td>
<td style="width: 349.461px;">Art. 15 somente se aplica às operações internas e não às operações interestaduais, o que permite a glosa com base no art. 8º</td>
<td style="width: 132.195px;">Art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Não cumulatividade</td>
<td style="width: 349.461px;">Não cumulatividade apenas permite o crédito do ICMS efetivamente recolhido na origem (juíza Maria Augusta Sanches), sendo que a não incidência (ainda que parcial) do imposto na origem deve ensejar o estorno dos valores correspondentes no destino, ante a ausência de previsão legal excepcionadora específica para o caso das operações originadas na ZFM, nos termos do art. 155, § 2º, inciso II, da CF/88<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> (juiz Argos Campos Ribeiro Simões)</td>
<td style="width: 132.195px;">Art. 155, § 2º, inciso II, da CF/88</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Princípio federativo</td>
<td style="width: 349.461px;">Embora o art. 15 permita a concessão de benefícios à ZFM sem anuência dos demais estados, princípio federativo não permite a transferência do ônus desse não recolhimento para outros estados</td>
<td style="width: 132.195px;">Não há citação de dispositivos constitucionais</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 124.172px;">Consequen-cialista</td>
<td style="width: 349.461px;">Deve ser aplicado o art. 20 da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, no sentido de que a manutenção do auto de infração é necessária diante da possibilidade de julgamento favorável da ADI 4.832, cujo objeto é o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei 2.826/2003 do Amazonas</td>
<td style="width: 132.195px;">Art. 20 da LINDB</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Como visto, embora a questão da não recepção do art. 15 da LC 24/75 sempre tenha permeado as discussões no TIT-SP quanto ao tema, bem como fundamentado algumas decisões das chamadas “câmaras baixas” de modo desfavorável aos contribuintes, esse argumento restou definitivamente afastado pelos juízes que mantiveram as glosas, porquanto nenhum desses votos adotou esse fundamento como razão de decidir. Nem poderia ser diferente, pois o afastamento da aplicabilidade do art. 15, em função de uma eventual não recepção desse dispositivo pela CF/88, encontraria óbice no art. 28 da Lei 13.457/2009<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Nessa linha, à exceção do argumento consequencialista, é possível concluir que os demais fundamentos, de alguma forma, reconhecem a recepção do art. 15 pela CF/88, sendo que alguns dos votos enfrentaram diretamente a questão. Entretanto, em função da invocação de regras e princípios constitucionais como vetores interpretativos (conforme quadro), essas linhas de argumentação atribuem ao art. 15 da LC 24/75 um sentido que bloqueia a previsão de não aplicação da totalidade da LC 24/75 às aquisições originadas na Zona Franca de Manaus, em interpretações que poderiam ser classificadas como interpretações conforme a Constituição.
Nesse contexto, há de se indagar se a interpretação conforme a Constituição encontraria óbice no já citado art. 28, da Lei 13.457/2009, considerando que o art. 15 determina que os arts. 1º a 14 da LC 24/75 não se aplicam às empresas situadas na ZFM, sem distinção, e a decisão do TIT-SP excepciona dessa não aplicação o art. 8º, que autoriza as glosas de créditos.
Em apertadíssima síntese, a interpretação conforme a Constituição visa alcançar o único sentido da norma que seja compatível com a Constituição, entre as diversas interpretações possíveis, ou ainda afastar aqueles que claramente com ela colidam.
Trata-se de técnica interpretativa que, além de valorizar a interpretação sistemática – no caso, necessariamente envolvendo o texto constitucional –, também termina por preservar e até mesmo valorizar a atividade legislativa, ao evitar a declaração de inconstitucionalidade de determinado texto e sua exclusão do ordenamento. Seu cabimento, portanto, se volta à interpretação de textos normativos que ensejem distintas interpretações, não tendo cabimento quando o texto a ser interpretado tiver um único e claro sentido.
Foi o caso, por exemplo, do julgamento da ADI 1.945, em que o STF deu interpretação conforme a Constituição ao art. 2º da LC 87/1996, que arrola as diversas hipóteses de incidência do ICMS, de modo a impedir a incidência do imposto sobre o licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador. Tratou-se, sem sombra de dúvida, da exclusão de uma possível interpretação do aludido dispositivo, por parte do STF, para que não houvesse uma incompatibilidade dessa interpretação com a CF/88, mantendo-se integralmente o texto em análise (o art. 2º).
Outro exemplo ocorreu no julgamento da ADI 3.142, que analisou a constitucionalidade do subitem 3.04 da lista anexa à LC nº 116/03 (Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza). Neste caso, o STF também lhe atribuiu interpretação conforme à Constituição, a fim de admitir a cobrança do ISS apenas nos casos em que as situações descritas no subitem integrem relação mista ou complexa em que não seja possível claramente segmentá-las de uma obrigação de fazer, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira. Essa interpretação teve a finalidade de evitar interpretações colidentes com a Súmula 31 do STF, que veda a incidência do ISS sobre locações de bens móveis (puras obrigações de dar).
Por outro lado, até mesmo por ser um método que preserva a atividade legislativa, o mesmo STF já decidiu que “se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo”. Essa foi a decisão do STF no julgamento da Representação 1.417, de relatoria do ministro Moreira Alves (DJ 15/04/1988).
No caso específico do tema objeto deste texto, fica a dúvida se o texto do art. 15 da LC 24/75, realmente, permite distintas interpretações a ponto de subtrair o art. 8º da regra excepcionadora de aplicação total da LC 24/75 à ZFM, pois parece clara a intenção do legislador de manter a condição beneficiada da região, especificamente no tocante ao ICMS, e bloquear a aplicação desse dispositivo (art. 8º) quando as operações envolverem aquisições de empresas estabelecidas na Zona Franca de Manaus.
Também nessa linha, no plano espacial, não parece que o legislador pretendeu apenas permitir que os benefícios fossem preservados internamente, pois o art. 15 cita as demais unidades federativas e as inibe de tomar medidas que pudessem amesquinhar os incentivos de ICMS concedidos à ZFM.
Por outro lado, no plano temporal fica a dúvida se o legislador constitucional, realmente, teve a intenção de apenas preservar os incentivos vigentes em 1988, pois, além do art. 40 do ADCT, a mesma intenção foi manifestada posteriormente pela EC 42/2003, que prorrogou o prazo fixado no artigo 40 por mais dez anos, e pela EC 83/2014, que acrescentou mais 50 anos ao tratamento diferenciado conferido à ZFM. Assim, é possível notar que o tratamento diferenciado da Zona Franca, com suas características de área de livre comércio e de incentivos fiscais, foi reiteradamente preservado pelos constituintes original e derivado, razão pela qual permanecerá vigente até o ano de 2073.
Por sua vez, embora a não cumulatividade pareça ser preservada pelo art. 8º da LC 24/75, que autoriza a glosa de créditos indevidamente beneficiados ante a falta de recolhimento de ICMS nas operações anteriores, fato é que o art. 15, textualmente, excepciona a aplicabilidade dessa regra, constituindo dispositivo que, a contrario sensu e expressamente, preserva a manutenção dos créditos correspondentes, usando de faculdade presente na própria CF/88 (art. 155, § 2º, inciso II).
No mais, partindo da premissa de que interpretar e aplicar a lei são sinônimos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, ao afastar uma interpretação possível por sua incompatibilidade com a Constituição, o tribunal acaba por violar o art. 28 da Lei 13.457/2009, que peremptoriamente o proíbe de afastar a aplicação (interpretação) de lei sob alegação de inconstitucionalidade. Não que o julgador não seja livre para, diante de um texto legal, adotar a interpretação que lhe pareça a mais adequada. O ponto é que essa interpretação não pode reduzir o âmbito de aplicação do texto (no plano interpretativo) com base em um dispositivo constitucional, a ponto de excluir hipóteses que estão claramente nele presentes, pois, ao assim fazer, há juízo de inconstitucionalidade (não do texto, mas da interpretação) incompatível com a legislação do contencioso administrativo tributário paulista.
Embora a interpretação conforme a Constituição seja bem-vinda nos julgamentos administrativos, porquanto ela garante uma interpretação sistemática que valoriza o texto constitucional, ela deve ser utilizada com parcimônia na interpretação de textos que tenham muita objetividade, sobretudo quando suportados por outros princípios e regras constitucionais que dão pleno suporte à interpretação desprezada, como o são, no presente caso, o objetivo fundamental de redução das desigualdades regionais (art. 3º, inciso III, da CF/88) e a reiterada regra de preservação dos incentivos da Zona Franca de Manaus, cuja proteção é incontestável diante de diversos precedentes do STF sobre o tema. Com isso, se evita o afastamento de normas por inconstitucionalidade, limite sabidamente intransponível nesse tipo de julgamento.
Autor:
Maurício Barros<a href="#_ftn6" name="_ftnref1">[6]</a>
Coordenação:
Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Lina Santin
Kalinka Bravo
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Não necessariamente por todos os julgadores que seguiram a corrente.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 155. (...) II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação: (...) b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Artigo 28 - No julgamento é vedado afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a inconstitucionalidade tenha sido proclamada: I - em ação direta de inconstitucionalidade; II - por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em via incidental, desde que o Senado Federal tenha suspendido a execução do ato normativo; III – em enunciado de Súmula Vinculante.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 178; Métodos de Trabalho de Direito Constitucional, 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn1">[6]</a> Maurício Barros é sócio de Demarest Advogados, doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-juiz contribuinte do Tribunal de Impostos e Taxas do estado de São Paulo e pesquisador sênior do NEF-FGV.

Divulgação/Suframa

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JOTA

Quais os limites da interpretação conforme a Constituição nos julgamentos administrativos?

Observatório do TIT: Guerra fiscal e aquisições da Zona Franca de Manaus

Tributos na Zona Franca de Manaus: Quais os limites da interpretação conforme a Constituição nos julgamentos administrativos?