Marco Túlio Reis Magalhães

A concretização do desenvolvimento sustentável no Brasil encontra uma série de desafios, que devem ser enfrentados por meio de um esforço contínuo e compartilhado do Poder Público (Legislativo, Executivo e Judiciário), da iniciativa privada e da sociedade em geral.
De um lado, existe a dificuldade de conjugar aspectos econômicos, sociais, políticos e jurídicos. De outro lado, existe a dificuldade de fixar parâmetros ambientais e técnicos, que sejam necessários e suficientes para viabilizar atividades e empreendimentos e, ao mesmo tempo, alcançar as finalidades legais e constitucionais de promoção do desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, a questão do licenciamento ambiental sempre ganhou destaque como um gargalo (ou empecilho) muito grande no contexto do desenvolvimento socioeconômico, seja em relação à confusão gerada pela sobreposição de fiscalização ambiental federal, estadual e municipal sobre um mesmo empreendimento ou atividade (questão político-jurídica ligada ao modelo federativo brasileiro de três níveis), seja  pelo simples fato de ser difícil precisar, com razoável clareza e segurança jurídica, que normas de proteção ambiental deveriam ser observadas.
Em suma, a ausência de legislação coesa e melhor detalhada (crítica quanto à limitação das disposições da Lei 6.938/81), a falta de indicação clara e prévia sobre que ente federativo deveria ser o agente fiscalizador e a insegurança jurídica decorrente desse contexto eram vistas como grandes problemas (1).
Uma das soluções muitas vezes apontada e desejada era a necessidade de edição de uma lei complementar que viesse a estabelecer, a depender do tipo de empreendimento ou atividade, que ente federativo seria competente para fiscalização e, por conseguinte, que normas jurídicas (federais, estaduais ou municipais) estritamente ligadas ao  licenciamento ambiental deveriam ser observadas. Tratava-se da necessidade de se dar cumprimento ao disposto no art. 23, incisos III, VI e VII, e parágrafo único, da Constituição federal, que assim dispõe:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
(...)
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
(...)
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)” 
Pois bem, para enfrentar essa questão entrou em vigor a Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011 [2], que tratou de diversos temas ligados à atuação cooperativa dos entes federativos, em termos de ações administrativas derivadas da competência comum relativa à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora. O art. 2º da referida lei enumerou conceitos legais importantes (tal como a definição de licenciamento ambiental). O art. 3º da mencionada lei indicou os objetivos fundamentais a serem alcançados por meio da sua aplicação – os quais buscavam superar, em síntese, as dificuldades antes mencionadas.
O que há de interessante, entretanto, é a sistemática definida na LC 140/2011 para uma atuação coordenada dos entes federativos, a fim de se evitar a sobreposição de atuação estatal ou a deficiência de fiscalização em termos de licenciamento ambiental. Vale destacar, inicialmente, que é a primeira lei complementar editada nos termos do parágrafo único do art. 23 da Constituição, desde 1988.
Em síntese, a nova legislação definiu que, como regra, caberá a apenas um ente federativo a competência para o licenciamento ambiental e para as ações administrativas que lhe sejam correlatas (art. 13) [3]. Assim, de forma sequencial, o art. 7º, incisos XIII e XIV (União), o art. 8º, incisos XIII e XIV (Estados), o art. 9º, incisos XIII e XIV (Municípios) e o art. 10 (Distrito Federal), da LC 140/2011, enumeraram atividades que devem ser licenciadas por cada federativo.
É preciso ressaltar que a sistemática estabelecida em lei não é isenta de críticas e há, inclusive, ação judicial questionando a sua constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI 4757) – com impugnação expressa aos artigos acima mencionados [4]. Também se impugnou judicialmente a validade do processo legislativo junto ao Congresso Nacional.
Contudo, a despeito do embate jurídico sobre a constitucionalidade da sistemática legal adotada, o fato é que a lei permanece em vigor até decisão final a ser proferida pelo Poder Judiciário e, desse modo, merece atenção e análise.
Ainda segundo a LC 140/2011, o que se pretender definir como de competência da União ou dos Municípios, mas que não esteja expressamente estabelecido no seu texto como de competência deles, deverá ser estipulado de comum acordo entre os entes federativos, por meio da atuação de Comissões paritárias que definirão quem deverá ser o ente federativo competente para conduzir a atividade de licenciamento ambiental, com base nos critérios legais técnicos e ambientais diversos (art. 4º, inciso III,  §§ 2º a 5º) [5].
Dessa forma, se uma atividade ou empreendimento exigir licenciamento ambiental e envolver interesses comuns da União, dos Estados e/ou Distrito Federal e dos Municípios, por exemplo, caberá à Comissão Tripartite Nacional decidir sobre a questão, sendo constituída por representantes de todos os interessados. E a decisão da mencionada Comissão estipulará um parâmetro (tipologia) que será definido com base nos seguintes critérios: porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento.
Assim, a depender da configuração desses critérios variáveis, a serem estabelecidos em uma tipologia definida pela Comissão responsável, o licenciamento ambiental ficará a cargo da União (art. 7º, inciso XIV, alínea “h”), dos Municípios (9º, inciso XIV, alínea “a”) ou, de forma residual, aos Estados e/ou Distrito Federal (art. 8º, inciso XIV; art. 10), nos termos da LC 140/2011 [6].
Portanto, a definição da tipologia de atividades e empreendimentos a serem licenciados pela União torna-se um elemento de consideração muito importante, pois o que ali não estiver estabelecido, caberá aos Estados e/ou Distrito Federal de forma residual, resguardada a competência municipal (que certamente tem um espectro muito menor do que a competência estadual).
Nesse sentido, merece destaque a recente regulamentação federal da LC 140/2011 (quanto ao art. 7º, caput, inciso XIV, alínea “h”, e parágrafo único), por meio do Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015 (DOU 23.4.2015, p. 4), que estipulou a tipologia de empreendimentos e atividades cujo licenciamento ambiental será de competência da União.
O que chama a atenção e merece destaque é que o referido decreto deu concretude aos critérios técnicos e ambientais de porte, potencial poluidor e natureza das atividades ou empreendimentos que terão a União como ente competente para o licenciamento ambiental.
O Decreto 8.437/2015 traz em seu artigo 2º uma série de definições para termos técnicos e ambientais que deverão ser considerados para efeitos legais (técnica legislativa comum em legislação de matéria ambiental, a fim de melhor fixar o sentido jurídico que se pretende estabelecer).
Ademais, a regulamentação da tipologia a cargo da União (art. 3º do Decreto 8.437/2015) restringiu-se a alguns setores de infraestrutura: ferrovias, rodovias e hidrovias federais; sistemas de geração e transmissão de energia elétrica (usinas hidrelétricas, termelétricas e eólicas); portos organizados e instalações portuárias; exploração e produção de petróleo, gás natural e outros fluidos hidrocarbonetos. Mas a natureza e/ou especificação da atividade não é suficiente para definir a competência da União, pois o porte e o potencial poluidor definidos no referido decreto é que definem se realmente a União irá atrair para si a competência do licenciamento ambiental [7].
Ao se investigar o histórico de elaboração do Decreto 8.437/2015, verifica-se que houve a necessidade de um trabalho coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, com a colaboração do Ministério de Minas e Energia, Ministério dos Transportes, Secretaria de Portos da Presidência da República, Advocacia-Geral da União, Casa Civil (Presidência da República) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
Também houve a instauração da Comissão Tripartite Nacional, composta de dez membros, sendo 3 representantes da União, 3 representantes dos Estados e do Distrito Federal, 3 representantes dos Municípios e 1 representante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), os quais deveriam decidir e propor ao Poder Executivo federal a tipologia a cargo da União [8].
O que há de interessante nesse formato de regulamentação legal é a relevância normativa e prática que ele tem para a aplicação e concretização da LC 140/2011.
Em primeiro lugar, pode-se inferir que as atividades e empreendimentos não listados no Decreto 8.437/2015, ou no art. 7º, inciso XIV, alíneas “a” a “g”, da LC 140/2011, serão licenciados pelos demais entes federativos (que não a União). Esse parece ser o entendimento do Poder Executivo Federal [9]. E como houve a participação de representantes dos demais entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios) na Comissão Tripartite Nacional, não se espera contestações por parte deles quanto aos critérios técnicos e ambientais – pelo menos num período de curto prazo.
Ao mesmo tempo, não só com a edição da LC 140/2011, mas, sobretudo agora, com a edição do Decreto 8.437/2015, é preciso rever em que medida ainda haverá espaço para aplicação de algumas Resoluções do CONAMA, que sempre serviram de baliza interpretativa para temas ligados ao licenciamento ambiental, tais como a Resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997, e a Resolução nº 001, de 23 de janeiro de 1986.
Destaca-se como positiva, ainda, a estipulação de normas de transição para fins de orientação dos entes federativos e daqueles que tenham pleiteado licenciamento ambiental junto aos órgãos e entidades competentes. Tal preocupação, prevista no Decreto 8.437/2015, também está estipulada na LC 140/2011. Trata-se de importante mecanismo legislativo de fomento à previsibilidade normativa e ao fortalecimento da segurança jurídica.
É possível indagar, ainda, sob o ponto de vista do controle de legalidade e do âmbito de relação entre lei e regulamento, sobre a adequação do decreto em questão. Ou seja, em que medida ele atende (ou não) as exigências das normas estipuladas na LC 140/2011. A limitação a determinados setores de infraestrutura impede uma posterior modificação do referido decreto para extensão da competência da União? Não parece haver problema para tanto, desde que exigida nova análise da Comissão responsável, com base nos critérios legais e desde que se estipulem, claramente, regras de transição.
Ademais, ainda que tecnicamente estejamos a falar de ato normativo infralegal, expedido pelo Poder Executivo federal, será melhor alterar o decreto existente ou editar um novo ato normativo? Em que medida isso poderia impactar a sistemática prevista na LC 140/2011? Esses exemplos ajudam a ilustrar a importância de maior análise e acompanhamento jurídicos para uma uniformidade e clareza da legislação.
Outro questão que se pode ressaltar é que, embora, em termos gerais, a regulamentação da LC 140/2011 não fuja aos padrões clássicos de regulamentação legal (especificar, esclarecer e disciplinar aspectos secundários da lei, sem alterações ou inovações estranhas ou contrárias a ela), fato é que esse tipo de decreto federal acaba por estabelecer novas hipóteses típicas de competência da União para o licenciamento ambiental. E tais hipóteses, em termos concretos, têm praticamente o mesmo status das demais hipóteses previstas nas alíneas “a” a “g” do inciso XIV do artigo 7º da referida lei complementar, embora definidas por um procedimento específico e autorizado pela própria LC 140/2011 (instauração de Comissão paritária, decisão de novas hipóteses de tipologia com base em critérios técnicos e ambientais). Tais elementos demonstram a interessante engenharia formada para esse setor normativo.
Outra ponto de consideração é o caráter propositivo da decisão tomada pela Comissão Tripartite Nacional, em relação ao seu acolhimento (na forma de decreto regulamentar) pelo Poder Executivo federal. Embora a opção legislativa tenha sido expressamente a de que haverá tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, fica a dúvida em caso de não acolhimento ou modificação parcial da proposta da mencionada Comissão. Deverá o Poder Executivo exigir nova análise, ou simplesmente decidir de forma distinta. Deverá ele fundamentar a divergência com base em critérios técnicos e ambientais ou em razões comuns de conveniência e oportunidade? A falta de participação dos demais representantes de entes federativos enfraqueceria essa tomada de decisão, em termos jurídicos e políticos?
As considerações e observações feitas a respeito desse novo horizonte legislativo e normativo do tema do licenciamento ambiental no Brasil buscaram não apenas dar notícia sobre a  LC 140/2011 e sua sistemática, mas também apontar para a novidade e complexidade trazidas pela sua regulamentação federal, por meio do Decreto 8.437/2015. Além disso,  buscou-se apontar pontos da nova legislação que merecem maior atenção e acompanhamento, seja para verificar como se dará a sua aplicação, seja para verificar em que medida correspondem aos objetivos traçados na LC 140/2011 ou, mesmo, para acompanhar que desfecho terá a impugnação de sua constitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal.
<hr />
&nbsp;
[1] Não se pretende aqui adentrar a fundo nas discussões desse tema, embora não se olvide aqui a complexidade acerca da compreensão político-jurídica da questão federativa brasileira e das teses jurídicas concernentes ao significado e à extensão da competência comum de proteção ambiental entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, especificada, sobretudo, no artigo 23 da Constituição de 1988.
[2] Utilizaremos a abreviação “LC 140/2011” no restante do texto.
[3]  Há possibilidade de outros entes participarem no processo de licenciamento ambiental com o intuito de colaborar com o ente condutor do procedimento administrativo – atuação subsidiária –, para muni-lo de informações ou de elementos técnicos, por exemplo. Vide, por exemplo, o art. 2º, inciso III, e o art. 13, §1º, da LC 140/2011.
[4] O pedido de mérito da ADI 4757, ajuizada pela Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (ASIBAMA), tem o seguinte teor: “a procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade para confirmar a liminar eventualmente concedida e declarar a inconstitucionalidade integral da LC nº 140/2011, com efeitos erga omnes, ou, pelo menos, a declaração de inconstitucionalidade dos seguintes artigos: arts. 4º, V, VI; 7º, XIV, “h” e parágrafo único; 17, cabeça e §§ 2º e 3º; 7º XIII e XIV; 8º XIII e XIV; 9º XIII e XIV; 14, §§ 3º e 4º; 15; 20; 21 da LC nº 140/2011.”
[5]  De acordo com o entendimento do governo federal, a decisão de comissão nacional (que venha a integrar) terá caráter propositivo para aprovação do Poder Executivo federal. Conforme Nota SAJ nº 657/2015 – URJ, de 21/04/2015 (Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República).
[6]  Há, ainda, possibilidade de delegação de atribuições (competências para licenciamento) ou atuação subsidiária, em casos excepcionais, o que confere certa flexibilidade ao modelo legal proposto.
[7]  Por exemplo, no caso dos sistemas de geração e transmissão de energia elétrica, há que se observar os seguintes parâmetros: usinas hidrelétricas com capacidade instalada igual ou superior a trezentos megawatt; usinas termelétricas com capacidade instalada igual ou superior a trezentos megawatt; e usinas eólicas, no caso de empreendimentos e atividades offshore e zona de transição terra-mar.
[8] Portaria nº 204, de 7 de junho de 2013, do Ministério do Meio Ambiente, (DOU de 10 de junho de 2013, Seção I, p. 76- 77). A representação dos Estados e Distrito Federal e dos municípios foi estabelecida por indicação da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente-ABEMA e da Associação Nacional dos Órgãos Municipais de Meio Ambiente-ANAMMA, respectivamente; sendo o representante do CONAMA - eleito pelos conselheiros daquele Conselho.
[9] Vide Nota SAJ nº 657/2015 – URJ, de 21/04/2015 (Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República).

Observatório-de-legislação

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A recente regulamentação federal da Lei Complementar 140/2011 pelo Decreto 8.437/2015

Observatório da Legislação: um avanço para o licenciamento ambiental no Brasil?

A recente regulamentação federal da Lei Complementar 140/2011 pelo Decreto 8.437/2015