Fábio Lima Quintas

Nos últimos anos, estamos vivenciando uma profunda mudança sobre a forma como vemos a gestão dos conflitos pelo Poder Judiciário que, ouso dizer, tem modificado nossa prática constitucional e processual de modo tão intenso que antigos referenciais teóricos estão perdendo o seu usual sentido descritivo e normativo. De fato, como em todas as esferas da vida e do Direito, a realidade se impõe e exige que a prática jurídica – conformada pelas diferentes peças do Direito (Constituição, legislação, atos administrativos e decisões judiciais e constrangida pela boa dogmática) – dê respostas a novos problemas. As mudanças que por essa razão se operaram no sistema jurídico acarretaram uma ruptura com a forma tradicional de compreender o acesso à jurisdição e o processo, a exigir dos juristas uma nova reflexão sobre a jurisdição e sobre a teoria geral do processo.
Há muito se diagnosticou que, sob a vigência da Constituição de 1988 e suas promessas de tutela de direito, o Poder Judiciário deparou-se com uma litigiosidade contida (para utilizar a precisa expressão cunhada pelo Prof. Kazuo Watanabe ainda nos idos de 1985) e tem enfrentado, dia a dia, uma litigiosidade crescente, em vista de sua expansão sobre espaços da vida social antes por ele não alcançados: a conversão de inúmeros interesses em direitos (juridicização) foi compreendida em nossa prática jurídica como judicialização. E o Poder Judiciário não tem conseguido dar conta das novas demandas que lhe foram impostas.
Os números lançam luzes sobre esse problema. Recente trabalho desenvolvido pelo Centro de Pesquisas sobre o Sistema de Justiça Brasileiro, vinculado ao Idp, a respeito do Índice de Desempenho da Justiça (IDJus), revela que houve uma queda de desempenho na gestão de processos em 2013 em relação ao ano de 2012
Constata o estudo que, “com mais de 93 milhões processos tramitando na Justiça Estadual, Justiça Federal e Justiça do Trabalho, o Judiciário enfrenta crise de congestionamento e lentidão da Justiça”. De forma analítica, “o Retrato IDJus Brasil nos indica que, de cada 100 processos que ingressaram em 2013, apenas 37 tiveram resolução, isto é, foram baixados, cada um com custo médio de R$ 2.369,73. Mesmo com uma produtividade média por magistrado de 1.766 processos por ano, caso as Justiças Estadual, Federal e do Trabalho parassem de receber processos, levaríamos 24 meses para julgar todo o estoque até então acumulado”. Essa situação pode ser facilmente apreendida pela observação do seguinte gráfico:
<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/07/Pasted-Graphic.tiff"><img class="aligncenter wp-image-12684 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/07/Pasted-Graphic.tiff" alt="Pasted Graphic" width="422" height="355" /></a>
Ainda segundo a pesquisa do CPJUS, a ampliação da produtividade do Poder Judiciário, que vinha sendo atribuído às políticas de estabelecimento de metas prioritárias anuais pelo CNJ, iniciado em 2009, não se perdurou ao longo dos anos, levantando-se a hipótese (ainda carente de estudos para sua validação), de que “o aumento progressivo da demanda processual pode ter levado os magistrados à fadiga, em 2013”; ou “O estoque de processos referentes às demandas de massa, julgados com mais agilidade, se esgotaram, e agora a maioria dos processos exige maior trabalho e reflexão, o que impacta na produtividade”, dentre outras possíveis razões.
É nesse contexto (que ratifica a visão corrente sobre a Justiça brasileira), e para fazer frente a essa realidade desafiadora, que foram implementadas recentemente importantes modificações legislativas, como se vê com o advento do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), com as alterações feitas na lei da arbitragem (por meio da Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015) e com o novo marco legal da mediação (Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, que se soma ao trabalho de vanguarda desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, do qual resultou, por exemplo, a Resolução nº 125, de 2010, que dispõe “sobre “a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”).
O que se propõe, nesse texto, é que as recentes alterações legislativas na esfera processual e jurisdicional (que vieram antecedidas, vale destacar, de uma rica construção jurisprudencial e doutrinária) demandam uma chave de leitura para o processo e para a jurisdição, que se constrói a partir da já anunciada ressignificação da gestão dos conflitos pelo Poder Judiciário. Um breve exame a respeito de algumas modificações normativas introduzidas no sistema processual para estimular as soluções de conflito autocompositivas permite compreender o argumento.
Como largamente divulgado, o novo Código de Processo Civil, além de conferir ao juiz a função de promover, a qualquer tempo, a autocomposição, (como já fazia o CPC-73 – art. 125, inciso V), instituiu a audiência de conciliação como ato anterior ao oferecimento da defesa pelo réu (art. 334 Novo CPC). Essa determinação é reforçada pelo disposto no art. 27 da Lei nº 13.140, segundo o qual “se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de mediação”.
Ainda para estimular as formas de autocomposição, merece menção o novo marco legal da mediação (a Lei nº 13.140, de 2015), que estabeleceu a validade da cláusula compromissória negocial como inibidora do acesso à jurisdição ao dispor que “na hipótese de existir previsão contratual de cláusula de mediação, as partes deverão comparecer à primeira reunião de mediação” (art. 2º, § 1º, Lei 13.140). Instituiu-se, portanto, um novo pressuposto processual (art. 267, inciso IV, CPC73, e 485, inciso IV, NCPC). Não obstante esse tipo de pressuposto processual tenha gerado no passo muita discussão sobre sua convivência com a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV), parece correto concluir que está ela superada a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal firmado a respeito da legitimidade constitucional da cláusula compromissória arbitral, porque assentada na prévia manifestação de vontade das partes (STF, Tribunal Pleno, SE 5206 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 12/12/2001, DJ 30/4/2004).
Com esse mesmo espírito, a Lei nº 13.140, ao estabelecer a necessidade de os Tribunais criarem centros judiciários de solução consensual de conflitos, previu sessões e audiências de conciliação e mediação pré-processuais (art. 24). Vale destacar que a solução de conflito pré-processual pode ser submetida à homologação judicial (art. 28, parágrafo único, da Lei nº 13.140) e tem aptidão para gerar título executivo judicial (art. 515, incisos III e IV, do novo CPC). A implicação dessa novidade (que se inaugurou em inúmeros tribunais no País sob o pálio da Resolução nº 125 do CNJ) traz pesados incômodos para a teoria geral do processo, na medida em que a possibilidade de homologação judicial traz a assustadora constatação de que haverá manifestação do Estado-Juiz (jurisdição, mesmo que enfraquecida) sem que tenha havido processo nem ação. Isso, certamente, exige uma nova reflexão sobre o conceito de lide e o seu papel na teoria do processo.
Pois bem. O que nos dizem essas novidades? Uma conclusão possível seria que esse novo acervo normativo busca conferir maior celeridade à prevenção ou eliminação de conflitos. Essa, no entanto, é uma leitura pouco generosa do novo regime processual.
Na verdade, esse novo regime põe em evidência uma nova perspectiva para compreender o que significa o escopo da jurisdição de alcançar a pacificação social e de dirimir conflitos, qual seja a de obter o “tratamento adequando dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário” (para utilizar a expressão da Resolução CNJ nº 125, de 2010).
Com efeito, esse novo marco normativo favorece leitura de que o conflito – entendido como oposição de interesses manifestada por meio de ações incompatíveis entre si – pode ser dirimido de forma mais eficiente se identificado o nível em que ele se manifesta, que pode tanto se limitar aos meios para alcançar um objetivo comum, quanto pode abranger os objetivos a serem alcançados. No primeiro caso, fala-se em conflito cooperativo, porque as partes comungam de objetivos convergentes, mas divergem da forma de alcançá-los; enquanto no segundo, identifica-se um conflito competitivo, porque há oposição dos objetivos perseguidos pelas partes. Considerando os diferentes níveis de conflito (e sendo certo que dificilmente há conflitos cooperativos ou competitivos puros), devem ser pensadas distintas formas de gestão, que potencializem efeitos positivos para os participantes na solução do conflito.
Isso porque conflitos cooperativos podem ser mais facilmente resolvidos por meio de processos construtivos, entendidos esses, na tipologia de DEUTSCH, como aqueles em que a relação processual é encerrada com um fortalecimento da relação social preexistente à disputa e que se caracterizam pela possibilidade de compatibilização dos interesses aparentemente contrapostos a partir de soluções criativas, concebidas pelas partes (ou pelo mediador), motivadas a resolver o conflito de forma abrangente e sem atribuição de culpa. Em oposição a isso, conflitos competitivos tendem a gerar processos destrutivos, caracterizados pelo enfraquecimento ou rompimento da relação social preexistente à disputa em razão da forma pela qual a relação processual é conduzida, de modo que há uma tendência à expansão do conflito.
Em certa medida, a forte institucionalização, no âmbito do Poder Judiciário, de formas consensuais de resolução de conflitos permite afirmar que a jurisdição deixa (precisa deixar) de visar tão-somente a eliminação do conflito, trazendo para o seu campo de preocupações a oferta da forma mais adequada de solução do conflito.
Isso significa que a boa e adequada prestação jurisdicional exige hoje que o juiz (e demais operadores do direito) (i) compreenda o conflito a partir de uma tipologia mais rica, que ajude a identificar o foco da oposição de interesses entre as partes, (ii) reforce, na medida do possível, o processo construtivo, para que a resolução do conflito tenha aptidão de proporcionar resultados positivos para ambos os participantes, e (iii) destaque aqueles conflitos de natureza eminentemente competitiva que demandarão uma solução heterocompositiva, materializada pela sentença de procedência ou improcedência.Doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Universidade de São Paulo (2013) e Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (2005). É professor da Escola de Direito de Brasília, do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP (Brasília-DF), vinculado ao programa de mestrado, e Editor-Chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional (www.idp.edu.br/observatorio).
[1] Para uma boa descrição dessa expansão do Poder Judiciário, confira­se: TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 2005.
[2] Videos resultados detalhados da pesquisa “Índice de Desempenho da Justiça – IDJus, 4a edição, apresentado em junho de 2015 (Brasília), na página do CPJus: http://cpjus.idp.edu.br/idjus/ . A pesquisa foi coordenada por Neide De Sordi, com a participação de Ana Carolina Aires Cerqueira Prata, Guilherme Viana Ferreira, Jeovan Assis Silva e direção de Ricardo Morishita (Diretor de Pesquisa e Projetos do IDP).
[3] Conforme apresentação IDJUS, 4a edição, disponível no site : http://cpjus.idp.edu.br/idjus/ (último acesso em 5/7/2015)
[4] Sumário Executivo do IDJUS, 4a ed p. 11, disponível no site : http://cpjus.idp.edu.br/idjus/ (último acesso em 5/7/2015)
[5] Conforme apresentação IDJUS, 4a edição, disponível no site : http://cpjus.idp.edu.br/idjus/ (último acesso em 5/7/2015)
[6] A respeito do assunto, vale destacar o seguinte fragmento da ementa do julgado:
“Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofendem o artigo 5o, XXXV, da CF. Votos vencidos, em parte ­ incluído o do relator ­ que entendiam inconstitucionais a cláusula compromissória ­ dada a indeterminação de seu objeto ­ e a possibilidade de a outra parte, havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, recorrer ao Poder Judiciário para compelir a parte recalcitrante a firmar o compromisso, e, conseqüentemente, declaravam a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.307/96 (art. 6o, parág. único; 7o e seus parágrafos e, no art. 41, das novas redações atribuídas ao art. 267, VII e art. 301, inciso IX do C. Pr. Civil; e art. 42), por violação da garantia da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário.“ (SE 5206 AgR, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/2001, DJ 30­ 04­2004 PP­00029 EMENT VOL­02149­06 PP­00958)
[7] Tal norma reproduz comando já disposto na Resolução CNJ no 125, de 2010, que determinava aos Tribunais a criação de “Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania ("Centros")”, compreendidos esses como “unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão” (art. 8o), que “deverão obrigatoriamente abranger setor de solução pré­processual de conflitos, setor de solução processual de conflitos e setor de cidadania” (art. 10). Por força do novo Código de Processo Civil, as normas do CNJ, em conjunto com aquelas estabelecidas pelos Tribunais, devem continuar regulando a composição e a organização dos Centros (art. 165, § 1o).
[8] DEUTSCH, Morton. A resolução do conflito: processos construtivos e destrutivos. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.), Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação Vol. 3, Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2004. pp. 29­98 
[9] AZEVEDO, André Gomma de. Autocomposição e Processos Construtivos: uma breve análise de projetos­piloto de mediação forense e alguns de seus resultados. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.), Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação Vol. 3, Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2004. pp. 137­160, especialmente pp. 139­141.
[10] AZEVEDO, André Gomma de. Op.cit., p 141.

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Da resolução da lide para a busca da solução adequada para o conflito

Observatório da Legislação: Repensando a prestação jurisdicional

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