Eliardo França Teles Filho

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<p>As eleições de 2014 revelaram que o país parece estar passando por uma fase de recuo do apoio social ao ideário progressista de esquerda, que dominou a cena jurídica e política no Brasil durante muitos anos. O surgimento dessa fase, que chamamos de recuo conservador, no entanto, tem sido visto de maneira negativa, como se representasse necessariamente um retrocesso ou mesmo um golpe. Aqui, propomos uma visão diferente desse cenário. O recuo conservador de 2014 parece ser apenas uma reação legítima da sociedade contra uma situação que ela estaria percebendo como perigosa e como resultante de excessos na adoção de políticas progressistas.</p>
<p>Entre os anos de 1990 e 2010, as pautas progressistas avançaram significativamente no país, tanto no âmbito do direito positivo quanto no das teorias do direito.</p>
<p>No direito positivo, é possível citar diversas leis, que abraçando ideias aparentadas ao progressismo, abrandaram penas, criaram benefícios processuais penais, liberalizaram costumes, ampliaram o acesso a benefícios sociais, criaram sistemas de proteção aos vulneráveis e estreitaram o controle do Estado sobre a economia, e possibilitaram a virtual universalização de diversos serviços públicos, como a Lei 9.099, de 1995, a Lei 11.343, de 2006, a Lei 8.096, de 2005, as Lei 8.078, de 1990, e 8.884, de 1994, e a Lei 9.472, de 1997, respectivamente.</p>
<p>Evidentemente, o Congresso Nacional também decretou leis que aumentavam penas e restringiam benefícios processuais penais, entre outras medidas legislativas identificadas como conservadoras, das quais o exemplo mais citado é a Lei 8.072, de 1990, a Lei dos Crimes Hediondos. Mas isso não invalida a predominância da tendência liberalizante e progressista da legislação do período.</p>
<p>Ainda no âmbito do direito positivo, o Supremo Tribunal Federal proferiu importantes decisões, de eficácia contra todos e efeito vinculante, que ajudaram no avanço das causas identificadas com o progressismo, como as decisões nas arguições de descumprimento de preceito fundamental no 54 e 186 (ADPF sobre o aborto de feto anencefálico e sobre a política de cotas universitárias para estudantes negros) e na ação direta de inconstitucionalidade no 4.277 (ADI que tratou da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar).</p>
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<p>Outra decisão importante, também identificada com causas progressistas, foi aquela proferida na Petição 3.888, que validou o decreto presidencial que demarcou a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol.</p>
<p>Já no espaço universitário, as teorias do direito que deram sustentação às ideias progressistas praticamente dominaram o debate dos anos de 1990 até meados dos anos 2010. Dessa predominância, dão testemunho a grande popularidade das ideias da teoria crítica do direito (cujos principais expoentes eram Michel Miaille e André‐Jean Arnaud) e das obras de juristas críticos brasileiros ou portugueses, como Roberto Lyra Filho e Boaventura de Souza Santos.</p>
<p>Essas mudanças nos instrumentos jurídicos está associada ao crescimento político do progressismo. Desde 1994, o país é governado por partidos socialdemocratas ou socialistas. O PSDB, partido inspirado nos socialdemocratas europeus, obteve dois mandatos presidenciais com Fernando Henrique Cardozo. Em seguida, o PT obteve quatro mandatos à frente da Presidência da República. No ano de 2002, quando ganhou as eleições presidenciais pela primeira vez, chegou a eleger 91 deputados, e os partidos de esquerda em geral aumentaram suas bancadas significativamente [1].</p>
<p>Essa tendência, no entanto, parece ter chegado a um ponto de esgotamento. Não que ela tenha sido suficiente para solucionar todos os problemas sociais, culturais e econômicos do Brasil, mas a sociedade dá sinais de ter atingido seu limite de apoio a essas pautas. As eleições para a Câmara Federal em 2014 e a produção legislativa mais recente o demonstram.</p>
<p>Efetivamente, a composição resultante das eleições de 2014 tem sido vista como uma das mais conservadoras das últimas décadas [2]. O Departamento Intersidical de Assessoria Parlamentar (DIAP) afirmou que as bancadas sindicais e ligadas aos movimentos sociais, ambas tradicionalmente associadas às ideias progressistas, caíram pela metade, em relação à última legislatura [3]. O PT, com todas as vantagens que lhe dão o controle da Administração Pública Federal, teve seu pior desempenho em eleições para a Câmara dos Deputados desde 1998, perdendo quase vinte deputados [4]. Outros analistas interpretam o novo conservadorismo no Poder Legislativo pelo ângulo da eleição de parlamentares ligados ao que eles identificam como movimentos conservadores, como as bancadas ruralista, evangélica e policial. De fato, essas bancadas vistas como conservadoras aumentaram sensivelmente [5].</p>
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<p>O funcionamento interno da nova Câmara dos Deputados também parece refletir esse movimento. Ela é presidida por um representante do Rio de Janeiro, Eduardo Cunha, que se declara um político “conservador de costumes” [6]. Sob sua presidência, a Câmara dos Deputados passou a dedicar boa parte de sua pauta ao exame de proposições comumente associadas a ideias conservadoras. Assim, foram examinadas ou votadas em tempo recorde proposições que criam novos tipos penais ou aumentam as penas para diversos crimes, como, por exemplo, o PL 5.586, de 2005, que tipifica o crime de enriquecimento ilícito, o PL 789, de 2015, que aumenta as penas para o crime de utilização de menores para o cometimento de crime, o PL 6.701, de 2013, que aumenta as penas dos responsáveis pela administração penitenciária que permitam a entrada de telefones celulares em presídios, o PL 3.131, de 2008, que aumenta as penas para crimes cometidos contra alguns tipos de agentes do Estado no exercício da função, e o PL 779, de 1995, que aumenta as penas para o crime de receptação.</p>
<p>No meio desse pacote de medidas reforçando a autoridade do Estado, também se destacam propostas de emenda à Constituição, algumas das quais estão causando muita polêmica. Entre essas, está a PEC 171, de 1993, que reduz a idade limite da inimputabilidade penal para 16 anos. Outra proposta identificada com pautas conservadoras é a PEC 352, de 2013, que constitucionaliza o financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas. Essa proposta, especificamente, tem sido vista como uma reação do Poder Legislativo contra uma iminente intervenção motivada pelo suposto ativismo judicial progressista do Supremo Tribunal Federal, configurado na ADI 4.650, ainda em julgamento.</p>
<p>As análises predominantes sobre a nova composição da Câmara e a condução de sua agenda legislativa não têm sido exatamente positivas [7]. Alguns políticos ou colunistas ligados às causas progressistas criticam abertamente a guinada conservadora, e propõem, como solução, a radicalização em defesa da sua pauta [8].</p>
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<p>Apesar disso, parece‐nos que a situação atual está mais próxima de um recuo conservador, nos moldes defendidos por Bernardo Pereira de Vasconcelos em seu famoso discurso do regresso, do que da ascensão de uma ultradireita descomprometida com a ordem constitucional.</p>
<p>O discurso de Bernardo Pereira de Vasconcelos foi proferido em algum momento entre 1837 e 1838, marcando o início da “fase regressista” do liberalismo monárquico brasileiro. A situação política do Brasil era delicada. O estado do Rio Grande do Sul tinha se separado do Império e havia o risco de que outras províncias se lhe seguissem. Vasconcelos considerava que o país vivia uma crise de autoridade, responsável pela anarquia que punha em risco a própria existência do Império.</p>
<p>O movimento do regresso conservador trouxe de volta, por meio de atos da Assembleia Geral do Império, o exercício do poder moderador, recriou o Conselho de Estado e estreitou o controle das autoridades locais pela administração central do Império. Juntas, essas medidas efetivamente estabilizaram a situação política do Império e ajudaram na reintegração do Rio Grande do Sul ao país.</p>
<p>O discurso de Vasconcelos, considerado por José Murilo de Carvalho a mais bem escrita “profissão de fé” da história política do país, expunha à Nação as razões por que o orador aderia, então, ao conservadorismo:</p>
<p>Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Os perigos da sociedade variam, o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir o seu país? [9]</p>
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<p>Da mesma forma, o momento atual não parece ser o de um conservadorismo irresponsável ou desconectado da opinião dos eleitores, como algumas análises à esquerda parecem sugerir [10]. Ao contrário, o recuo conservador dos últimos meses pode ser um fenômeno similar ao do regresso de 1837, quando os atores políticos percebiam as dificuldades políticas do momento como resultado da adoção irrefletida de políticas liberais. Por isso, conforme Vasconcelos, alguns desses atores propuseram as medidas conservadoras.</p>
<p>O próprio avanço das ideias progressistas desde os anos 1990 pode ter levado a um esgotamento do poder de sedução que elas tiveram sobre a sociedade brasileira durante todo esse tempo. Isso teria levado a sociedade a balançar‐se para a direita. Ocorre que isso não seria porque a sociedade teria assumido um compromisso radical contra os grupos sociais identificados com as pautas progressistas, levando a um retrocesso político e jurídico perigoso. Ao contrário, o movimento em direção à direita pode ser uma forma de a sociedade reagir ao que ela percebe como riscos de piora na sua situação em razão dos excessos da política progressista.</p>
<p>Nesse sentido, trata‐se de um movimento saudável, ao qual o Congresso Nacional deve responder, como de fato vem respondendo. Quanto aos riscos que essa resposta representaria para os direitos conquistados sob a influência predominante da ideologia progressista, podemos confiar que a nossa Constituição está dotada de instrumentos aptos a evitar que o recuo conservador que a sociedade legitimamente parece estar solicitando se degenere em retrocesso.</p>
<p>* Assessor jurídico na Câmara dos Deputados e doutorando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Fui Marie Curie Fellow na EHESS e na London School of Economics (LSE) de 2006 a 2009.</p>
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<p>[1] Notícia disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u41606.shtml</p>
<p>[2] Reportagem do jornal O Estado de São Paulo afirmou que se trata do Congresso mais conservador desde 1964. Cf. reportagem disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso‐eleito‐e‐o‐mais‐ conservador‐desde‐1964‐afirma‐diap,1572528</p>
<p>[3] Notícia disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,bancadas‐sindical‐e‐de‐ movimentos‐sociais‐na‐camara‐perdem‐50‐dos‐deputados,1572424</p>
<p>[4] Notícia disponível em http://www.valor.com.br/eleicoes2014/3723858/pt‐ mantem‐maior‐bancada‐na‐camara‐mas‐tem‐pior‐resultado‐desde‐1998</p>
<p>[5] Notícia disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1529052‐mais‐conservadora‐ camara‐deve‐barrar‐acoes‐liberalizantes.shtml</p>
<p>[6] Entrevista disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/eduardo‐cunhaa‐ gente‐finge‐que‐esta‐no‐governo‐eles‐tambem‐15726084</p>
<p>[7] Marco Antônio Teixeira vê nesse conservadorismo não apenas um obstáculo ao avanço da agenda progressista, mas um “risco de retrocesso”, conforme veiculado pela reportagem da Folha de São Paulo mencionada acima.</p>
<p>[8] Ver, por exemplo, os textos de Luciana Genro e Guilherme Boulos, disponíveis nos endereços http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O‐Brasil‐caminha‐ para‐a‐direita‐/4/33189 e http://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilhermeboulos/2014/10/1529543‐ onda‐conservadora.shtml, respectivamente.</p>
<p>[9] Bernardo Pereira de Vasconcelos. Organização e introdução de José Murilo de Carvalho – São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 9, 20 e 26.</p>
<p>[10] Ver, por exemplo, o seguinte texto, publicado no site marxismo.org.br: http://www.marxismo.org.br/content/nao‐existe‐onda‐conservadora‐no‐brasil‐ nem‐em‐sp</p>
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Brazilian National Congress in Brasilia, Brazil

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JOTA

Movimento parece ser reação legítima da sociedade

Observatório da Legislação: O recuo conservador de 2014

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