José Roberto Afonso

Leonardo Ribeiro

Equacionar a crise fiscal exigirá cada vez mais lidar com pessoas. Tomada a despesa do chamado governo geral (que consolida as três esferas) nas contas nacionais, depois dos benefícios da seguridade e da assistência social (R$ 856 bilhões ou 15.1% do PIB em 2014), a maior categoria é dos salários, vencimentos e encargos pagos aos servidores em atividade (R$ 710,3 bilhões ou 12.5% do PIB).[1] Estas grandezas, por si só, evidenciam que limitar a expansão do gasto público exigirá lidar com quem recebe aposentadorias, auxílios e proventos. 
O Brasil é novamente um ponto fora da curva nas comparações internacionais. De acordo com recente estudo do FMI[2], a folha de pagamento nos países avançados e nos emergentes corresponde, em média, a 10,2% e 9,4% do PIB, respectivamente. Como o Brasil gasta acima dessas médias, se computados os encargos patronais, é urgente discutir como controlar o peso da folha salarial no orçamento e, sobretudo, como melhorar a produtividade da força de trabalho no setor público. 
A proposta desta breve análise é apontar medidas para uma maior flexibilidade e eficiência na gestão pública de recursos humanos, matéria quase sempre ignorada. Além da reforma da previdência, há muito o que se aprimorar na gestão pública, ainda mais em tempos de crise fiscal. É preciso abandonar a ideia equivocada de que uma despesa de caráter duradouro e mandatório não mereça atenção e revisão. 
* * *
Um desafio já posto na agenda nacional é o da reforma previdenciária. A gravidade da crise fiscal de muitos governos estaduais e grandes municípios torna ainda mais premente mudança profunda dos seus regimes próprios de previdência. Não bastará apenas retardar o acesso aos benefícios, como exigir mais idade ou tempo de contribuição para se aposentar. Cada vez mais parece inevitável revisitar o custeio dos benefícios já concedidos. 
A própria Constituição Federal assegura aos servidores , no caput do art. 40, “regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial...” (negritos nossos)[3]. 
Estes preceitos constitucionais da previdência dos servidores sempre foram solenemente ignorados e a folha de inativos tem sido tratada como mais um compromisso líquido e certo do estado a ser pago com recursos orçamentários sem merecer qualquer questionamento – quando muito, objeto de auditorias esporádicas. É notório que os regimes próprios de cada ente federado acumulam déficit enorme e crescente financiado apenas pelo empregador, o que, sendo o governo, significa a conta do déficit sendo paga pelo resto da sociedade. Para atender aos próprios preceitos constitucionais, deveria valer o mesmo aplicado ao setor privado, como no caso dos grandes fundos de pensão. Diante do déficit, estão a exigir aportes extraordinários de seus beneficiários, inclusive assistidos, para recuperar o equilíbrio do respectivo plano previdenciário. 
Para equacionar o déficit atuarial, o ente federativo poderia instituir contribuição extraordinária segregando as massas de seus segurados vinculados ao regime próprio de previdência, separando-se os planos financeiros dos planos previdenciários.[4]
Alternativa seria atender o disposto no art. 249 da Constituição Federal e assegurar recursos para custear aposentadorias por meio da constituição de fundo integrado por contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza.
* * *
Diante da atual crise fiscal, será enorme desafio garantir a sustentabilidade fiscal dos orçamentos e ao mesmo tempo manter funcionários bem qualificados trabalhando de forma eficiente. Não importa apenas a ótica dos empregadores, responsáveis pelas medidas de redução dos gastos com folha, mas também a ótica dos próprios empregados públicos, que precisam ter garantia de que receberão pelo trabalho que fazem. Ainda que este direito pareça elementar, na prática, não representa uma garantia certa diante de uma crise financeira tão acentuada, especialmente no âmbito dos governos locais, que já levou ao atraso de pagamentos de salários ou até mesmo seus parcelamentos.
Em momentos de crise fiscal, experiências internacionais apontam para congelamentos salariais (wage freeze) e restrições à contratação de novos funcionários para recompor cargos vagos. No entanto, tais medidas podem não se sustentar no longo prazo.  
No Brasil, a Constituição (art.169) e a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (arts. 18 a 23) chegam até a prever a exoneração de servidores, mesmo estáveis, depois de reduzidos gasto com comissionados, vedando-se, também, contratações e reajustes. Tais restrições, que devem ser aplicadas quando superados os limites definidos na LRF, foram infelizmente evitadas e postergadas pela criatividade na apuração das contas que reduziu o tamanho registrado da folha. Como a mágica não fez brotar no caixa dos entes o recurso necessário para o efetivo pagamento da folha, os desembolsos tiveram que ser postergados até o ponto de comprometer a garantia de serem pagos integralmente.  
A agenda de reformas fiscais, neste contexto, poderia resgatar duas mudanças da emenda da reforma administrativa do governo FHC (Emenda n. 19/1998): a supressão do regime jurídico único e a possibilidade de exoneração de servidor no caso de insuficiência de desempenho. A primeira exige reverter a suspensão liminar decretada pelo STF e a segunda demanda regulamentação por lei complementar. 
A administração pública não deveria ser obrigada a estabelecer e manter um único regime para todos os servidores (art. 39, caput)[5]. É preciso abrir a possibilidade da contratação por regime celetista em parte da gestão. Essa medida, no entanto, foi suspensa liminarmente pelo STF e, hoje, qualquer servidor contratado acaba por gozar de estabilidade independentemente da atividade que esteja realizando no setor público. No dispositivo liminarmente suspenso, vale destacar também a previsão de um conselho, formado por representantes de todos os poderes, para definir a política de administração e remuneração de pessoal no setor público. 
Aliás, outra liminar concedida pelo Supremo suspendeu a regra da LRF 
(§ 2o do art. 23)[6] que permite, quando excedido o limite de gasto com pessoal, reduzir jornada de trabalho e proporcionalmente salários, em caráter provisório, no lugar de demitir servidores, inclusive estáveis, em caráter permanente. Há expectativa de que o STF venha a julgar o mérito da ação do PT contra a LRF (passados 16 anos muitos esquecem que ainda falta a decisão final da Corte) e, nessa oportunidade, possa resgatar a possibilidade de oferecer a autoridades e aos próprios servidores uma alternativa mais justa e equilibrada: reduzir excesso da folha salarial com redução de jornada e vencimentos no lugar da exoneração permanente.[7] 
Ousou também a emenda da reforma administrativa ao prever a possibilidade de exoneração de servidor público no caso de insuficiência de desempenho no trabalho realizado (art. 41, § 1º, III)[8]. Sua eficácia depende de lei complementar e já existe projeto (PLP nº 248/1998) na Câmara, embora engavetado desde 2007. Aplicado aos três níveis de governo, essa proposta exige avaliação anual de desempenho funcional do servidor quanto à qualidade e à produtividade do trabalho, além do aproveitamento em programa de capacitação e assiduidade no trabalho. No caso de insuficiência de desempenho funcional atestada em mais de uma avaliação, e depois assegurada ampla defesa, a estabilidade do servidor não garantiria sua permanência no serviço público. 
* * *
É preciso resgatar as inovações da reforma administrativa do governo FHC, como o contrato de gestão voltado para uma maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira na administração pública. Não deve ser visto como pecado transferir a gestão de serviços públicos para entidades de direito privado, mesmo no setor da saúde ou da educação, pois o caráter público pode ser mantido no contrato. 
No campo da gestão da folha salarial, também é preciso que os órgãos de todos os poderes, inclusive os ditos independentes, integrem a folha salarial em um sistema unificado de controle em cada ente federado (no caso federal, conhecido como SIAPE), incluindo servidores ativos e inativos e abrangendo toda e qualquer remuneração (não só salário clássico). Auditorias automáticas e permanentes devem ser feitas para checar a integridade e a pertinência dos proventos devidos e pagos. 
Estas mesmas condições devem ser exigidas de todos os poderes, na União, em cada estado, e em cada prefeitura. O ideal era organizar um único e nacional banco de dados de servidores para cruzar informações em diferentes órgãos e esferas de governo. Mais eficiente ainda seria a criação de uma identidade única de pessoas físicas para mapear todas as movimentações e eventos funcionais de cada servidor público. Não faltariam recursos financeiros e tecnológicos (big data), bem como mão de obra qualificada no País. É possível repetir na gestão de servidores a recente experiência bem-sucedida da justiça eleitoral, que lançou mão de uma fiscalização inteligente e integrada (por vários órgãos de governo) para acompanhar as doações e a sua aplicação pelos candidatos.[9] 
Outra mudança, talvez das mais urgente, seria promover uma ampla e geral desvinculação de qualquer espécie remuneratória no serviço público. É preciso quebrar, de forma permanente, qualquer forma de paridade salarial entre ativos e inativos e, especialmente, entre carreiras (por vezes até distintas) no âmbito de diferentes esferas de governo e, dentro de um governo, entre os diferentes poderes. 
A definição do valor do salário, ou do seu reajuste, por exemplo de um Ministro do STF, não pode significar, mesmo que por lei estadual, correção automática dos proventos dos juízes e desembargadores estaduais. Também não deve existir vinculação salarial em outras carreiras, como de procuradores, de delegados de polícia ou de deputados. 
Talvez seja preciso emenda à Constituição da República para revogar os efeitos de vinculações definidas em legislação local ou até mesmo em Constituição Estadual. 
* * *
Se hoje há consenso, ou unanimidade, de que todos os governos precisam urgentemente reequilibrar suas contas públicas, o momentum representa oportunidade para reflexão sobre uma antiga tese defendida por muitos governadores e prefeitos: medidas impopulares, como aumento de impostos e corte de gastos, custam apoio popular, quando não a própria eleição, e não geram qualquer incentivo ou reconhecimento público. 
Lógico que a disciplina fiscal é uma ação que traz ganhos a longo prazo, mas é bom momento para se discutir inovação e novos mecanismos que, primeiro, premiem quem promove o ajuste (em oposição às federalizações de dívida que sempre constituíram um prêmio a quem desajusta contas públicas) e, segundo, que também estimulem equilíbrios orçamentários.
Em seu art, 67, a LRF prevê dentre as atribuições do Conselho de Gestão Fiscal, até hoje não regulamentado, que experiências bem-sucedidas de gestão fiscal sejam disseminadas e premiadas.
Nesse novo arranjo institucional, não seria difícil desenhar fórmulas que ponderasse a saúde fiscal dos governos locais como um determinante de parcelas, por menores que sejam, de repartições constitucionais. Algo parecido poderia ser adotado para concessão de transferências voluntárias e garantias para empréstimos.
Caminho muito efetivo também seria a União dar suporte financeiro a fundos estaduais de desenvolvimento local. Geridos pelas agências estaduais de fomento, tais fundos financiariam investimentos privados produtivos, sobretudo em infraestrutura, inclusive por meio de parceiras público privadas e concessões. Seria uma alternativa mais eficiente e moderna à guerra fiscal e, invertendo sua lógica, vincularia diretamente a melhor eficiência na administração governamental a maior disponibilidade de fontes de recursos.  
* * *
Enfim, o debate sobre gestão de pessoas no setor público não deve estar ancorado somente em questões fiscais. É preciso discutir medidas para conferir flexibilidade e eficiência na gestão pública de modo a se buscar prestação de serviços públicos com qualidade. Não faltam iniciativas nessa direção, por vezes no âmbito parlamentar, ora no judicial, ora no executivo – como algumas aqui apontadas. 
O desafio é prestar serviço público com qualidade e manter no setor público servidores e funcionários qualificados trabalhando de forma eficiente, seguros de que ao final do mês receberão em dia seus salários, sem perder de vista o equilíbrio das contas públicas.
------------------------------ 
[1]  Os dados se referem a 2014 e estão publicados no relatório Estatísticas de Finanças Públicas - Conta Governo, publicado pelo IBGE em parceria com o Tesouro Nacional e o Banco Central. Ver em: https://goo.gl/IyV0io
[2] Managing goverment compensation and employment – Institutions, Policies and Reform Challenges. FMI, 2016. 
[3] De acordo com o art. 2º da Portaria MPS 403/2008, considera-se equilíbrio financeiro a garantia de equivalência entre as receitas auferidas e as obrigações do RPPS em cada exercício financeiro, ao passo que equilíbrio atuarial a garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo de receitas estimadas e das obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo prazo. 
[4] Frederico, Amado. Curso de Direito e Processo Previdenciário, Editora Jus Podivm, 8º edição, p. 1287. 
[5] Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.  (Vide ADIN nº 2.135-4) 
[6] Art 23, §2º. É facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária. (Vide ADIN 2.238-5) 
[7] Vale ver a defesa da revisão da liminar do STF no artigo de Luciano Fuck e José R. Afonso, “A LRF e o STF: redução de jornada de trabalho”, ConJur, out./2016; ver em: <a href="http://bit.ly/2fdYI5z">http://bit.ly/2fdYI5z</a> 
[8] “Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.
............................
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.” 
[9] Vide artigo “Inteligência: da eleição para todo governo”, de um dos autores, no Estado de S.Paulo, edição de 7/10/2016 – ver em: http://bit.ly/2e1rkKi

hourglass-1703349_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

É preciso resgatar as inovações da reforma administrativa do governo FHC


Observatório da Legislação: Gerenciar Crises e Pessoas

É preciso resgatar as inovações da reforma administrativa do governo FHC