Carolina Cardoso Guimarães Lisboa

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<p>A questão da forma congressual pela qual são apreciadas as contas do Presidente da República ganhou relevo e atenção nos dias de hoje, em razão da expectativa quanto às contas presidenciais de 2014. Isso porque o clima político em torno da possibilidade de instauração de processo de impeachment, exatamente em razão da eventual rejeição dessas contas, colocou tal procedimento sob holofotes.</p>
<p>Nesse sentido, percebe-­se que de certo ponto de vista, a conjuntura política atual leva à conclusão de que há maior ou menor risco de rejeição das contas em razão da forma pela qual elas são apreciadas (sessão conjunta ou separada). E, principalmente, a alteração dos personagens responsáveis pela definição do momento em que a matéria será objeto de deliberação é questão crucial, tendo em vista as alianças políticas formadas no Poder Legislativo.</p>
<p>Portanto, há, como nunca, grande interesse em se definir, preferencialmente de maneira cogente, o modo pela qual as contas devem ser apreciadas. Daí a impetração do Mandado de Segurança 33.729, com o objetivo de se obter, do Supremo Tribunal Federal, decisão que determine a apreciação das contas pelas duas Casas do Congresso Nacional em sessão conjunta.</p>
<p>Contudo, o Ministro Roberto Barroso, Relator do mencionado mandado de segurança, ao indeferir tecnicamente o pedido liminar, apenas “sinalizou” ao Congresso Nacional que as votações futuras de contas presidenciais (o que inclui as de 2014) devem ocorrer em sessão conjunta.</p>
<p>Desse modo, reconheceu o Ministro a existência de “uma prática estabelecida no sentido da apreciação das contas anuais do Presidente da República em sessões separadas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”. Reconheceu ainda que essa dinâmica parlamentar “nunca gerou questionamentos porque, na vigência da Constituição de 1988, não houve um único episódio de rejeição das contas presidenciais.” Porém, concluiu que tal forma de atuação seria contrária às normas constitucionais, razão pela qual se imporia a fiscalização do STF na qualidade de guardião da Constituição.</p>
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<p>Nesse quadro, cabe perquirir quais são as hipóteses constitucionais em que o Congresso Nacional se reúne em sessão conjunta, para se concluir se a prática parlamentar é, efetivamente, inconstitucional.</p>
<p>O parágrafo 3o do art. 57 da Constituição Federal estabelece precisamente que “além de outros casos previstos nesta Constituição, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal reunir­se­ão em sessão conjunta para: I – inaugurar sessão legislativa; II – elaborar o regimento comum e regular a criação de serviços comuns às duas Casas; III – receber o compromisso do Presidente e do Vice­Presidente da República; IV – conhecer do veto e sobre ele deliberar.”</p>
<p>Dessa disposição constitucional se extrai a conclusão de que o rol ali previsto dos casos de reunião conjunta é exemplificativo. Todavia, também se extrai que qualquer outra hipótese, além daquelas relacionadas, deve ser encontrada, igualmente, no texto constitucional, e tão somente nele.</p>
<p>Nesse sentido, para além dos casos arrolados no § 3o do art. 57, é possível identificar constitucionalmente a necessidade de reunião conjunta para a apreciação dos projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais. Isso porque o art. 166 da Constituição determina que tais proposições devem ser apreciadas “pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum”. É a própria Constituição que remete ao regimento comum a definição da forma de deliberação do assunto. E, no caso, do regimento se retira a informação de que a apreciação será realizada em sessão conjunta.</p>
<p>No entanto, no que toca à apreciação das contas, apesar de o inciso I do §1o do art. 166 da Constituição atribuir à Comissão mista do orçamento a competência para examinar e emitir parecer sobre as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República, não se pode concluir que, necessariamente, o parecer dessa comissão, por ser mista, deva ser deliberado em sessão conjunta. O simples fato de ser a comissão mista a elaborar o parecer pode até ser considerado um indício de que a sessão deliberativa seria conjunta, mas não se pode afirmar de maneira peremptória que assim o seja.</p>
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<p>Em primeiro lugar, tal conclusão não advém de uma disposição literal como ocorre com a que determina a apreciação dos projetos de lei do orçamento (art. 166, caput). E, não sendo assim, o §3o do art. 57 da Constituição parece vedar que outras hipóteses de realização de sessão conjunta sejam fixadas por espécies normativas distintas da própria Constituição. [1]</p>
<p>Portanto, ainda que se pudesse considerar que a disposição regimental sinaliza que a apreciação deva ser conjunta, tal disposição deveria ser tida por inconstitucional já que não encontra respaldo no §3o do art. 57 da Constituição, o qual exige norma constitucional a fixar outros casos de sessão conjunta.</p>
<p>Ademais, o fato de ser uma comissão mista a examinar e emitir parecer sobre as contas, não enseja, como dito, a conclusão de que a deliberação seja em sessão conjunta. Nesse sentido, a própria Constituição, ao dispor sobre as medidas provisórias, estabelece, no §9o do art. 62, que cabe “à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.” Sendo assim, um parecer elaborado por uma comissão mista será apreciado em sessão separada pelo plenário das Casas.</p>
<p>Enfim, ainda que se pudesse extrair do regimento que a deliberação deveria ser conjunta, a prática parlamentar que se estabeleceu, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, com a apreciação e aprovação das contas presidenciais nos anos de 1989, 1990, 1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997,1998, 1999, 2000 e 2001,2 foi no sentido da deliberação em sessões separadas. Essa prática, como visto, não contraria o texto constitucional, sendo que o consenso prevalecente em torno dela autoriza a afirmação de que estamos diante de uma convenção constitucional, ou seja, uma norma constitucional não escrita, consolidada pelas partes envolvidas em razão do acordo em se proceder de tal forma. [3]</p>
<p>Com efeito, as convenções da constituição, ao lado dos costumes constitucionais, são originárias do direito britânico e podem ser encontradas também em ordenamentos jurídicos de matriz distinta, como o brasileiro. São elas normas resultado do consenso entre os titulares dos órgãos constitucionais, que dão origem a acordos tácitos por eles mesmos respeitados nas suas relações recíprocas, dentro do quadro fixado pela constituição. Desses acordos nascem regras de comportamento não escritas que disciplinam a forma do exercício de competências, quando essa regulação não consta do texto constitucional ou, ainda, quando há disciplina normativa a respeito, mas esta é de natureza discricionária e seu cumprimento pode ser pormenorizado por meio de uma convenção estabelecida pelos próprios executores. [4]</p>
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<p>Os elementos constitutivos de uma convenção, quais sejam, a existência de uma série de precedentes, a consciência de obrigatoriedade na prática da conduta, e, por fim, a presença de uma razão suficiente que justifique a regra, podem ser claramente identificados na prática da aprovação das contas em sessões separadas.</p>
<p>Como se viu, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, as contas presidenciais têm sido aprovadas, por diversos anos, em sessões separadas. Numerosos, portanto, são os precedentes. Além disso, tratando­se a convenção de um acordo tácito entre os sujeitos constitucionais, deve haver entre eles um consenso sobre os termos do comportamento a ser adotado na aplicação da constituição. É a partir desse consenso gerador do acordo que tais operadores desenvolvem a convicção de sua obrigatoriedade. No caso, o consenso existente em torno da prática era tão amplamente reconhecido que se chegou a demandar do Supremo Tribunal Federal decisão para legitimar o não cumprimento do acordo. Por fim, a razão suficiente a justificar a prática está no entendimento de que há ganho de agilidade nos trabalhos de ambas as casas legislativas.</p>
<p>Assim a prática de apreciação das contas separadamente pelos Plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, segundo ordem estabelecida alternadamente com outros projetos de decreto legislativo, [5] foi objeto de consenso pelos atores envolvidos na execução da competência constitucional durante praticamente 27 anos.</p>
<p>É verdade que tal convenção até pode vir a ser modificada para que se passe a efetuar a deliberação em sessão conjunta. Porém, o fim da vigência do acordo deve decorrer de outro acordo, “celebrado” entre as mesmas partes, em sentido diverso, e não por determinação de órgão exterior à formação da convenção, o qual não pode contribuir com as razões para a formação da norma.</p>
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<p>Com isso, a decisão proferida monocraticamente pelo Relator do Mandado de Segurança 33.729, em que este apenas “sinalizou” na direção de que as próximas deliberações deveriam ocorrer em sessão conjunta, apesar de considerar inconstitucional a prática da deliberação em sessões separadas, demonstra a compreensão acima referida no sentido de que a questão deve ser preferencialmente resolvida no âmbito do próprio Parlamento, o que é salutar para a separação de poderes e para a democracia.</p>
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<p><em>Carolina Cardoso Guimarães Lisboa é advogada e procuradora do Município de Belo Horizonte em Brasília, Doutora em Direito do Estado pela USP, Mestra em Ciências Jurídico­ Internacionais pela Universidade de Lisboa, professora de direito constitucional no Centro Universitário de Brasília.</em></p>
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<p>[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 523.</p>
<p>[2] http://www.congressonacional.leg.br/portal/atividade/contasPresidente</p>
<p>[3]  Sobre o tema das convenções constitucionais ver, em maior extensão, LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. Normas constitucionais não escritas. Costumes e convenções da constituição, São Paulo: Almedina, 2014.</p>
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<p>[4] AVRIL. Pierre. Les conventions de la Constitution. Normes non écrites du droit politique. Paris: PUF, 1997, p. 105.</p>
<p>[5] Conforme regra geral do art. 142 do Regimento Comum: Art. 142. Os projetos elaborados por Comissão Mista serão encaminhados, alternadamente, ao Senado e à Câmara dos Deputados.</p>
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Observatório da Legislação - Apreciação das contas presidenciais em sessões separadas

Uma prática parlamentar constitucional