Luiz Roberto Peroba

Luiz Paulo Romano

Não é nova a problemática acerca do voto de qualidade a que alude o artigo 25, § 9º do Decreto nº 70.235/72, que atribui ao Presidente de Turma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) o poder de decidir a demanda em caso de empate. Como essa presidência é necessariamente ocupada por Conselheiro indicado pela Fazenda Nacional, diversas vozes se levantaram questionando se haveria desequilíbrio de forças e, entre outros ponderáveis argumentos, a mitigação do princípio in dubio pro contribuinte positivado pelo artigo 112 do Código Tributário Nacional (CTN).
Em março do ano passado, o legislador decidiu inverter essa lógica com a aprovação de lei no sentido de que o empate em julgamento de processos de exigência de crédito tributário deve ser resolvido a favor do contribuinte (art. 19-E da Lei nº 10.522/02, na redação dada pela Lei nº 13.988/20). A partir daí, outras vozes passaram a defender a inconstitucionalidade desta nova norma legal, tanto no aspecto formal como material, por meio de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs).<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Não obstante entendermos que a nova legislação configure opção legítima do legislador, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República dentro dos contornos exigidos pela Constituição Federal, não é o escopo deste artigo a discussão em torno dos argumentos contra a procedência das ADIs.
O que se pretende abordar é a solução proposta pelo voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso no sentido de declarar a constitucionalidade da norma, mas com a ressalva de que a Fazenda Nacional passaria a ter o direito de ingressar em juízo contra as decisões do CARF proferidas em favor do contribuinte a partir de empate em votação, como forma de “resguardar o equilíbrio entre as relações entre o ente público e o sujeito passivo”.
A possibilidade de a Fazenda Nacional judicializar decisões do CARF, todavia, desperta diversas questões interessantes. Inicialmente, é preciso ter em mente que o CARF foi criado pelo art. 25 da Lei nº 11.941/09 com a finalidade de julgar recursos voluntários e de ofício que versem sobre aplicação da legislação tributária e aduaneira. É um órgão especializado, paritário e integrante da estrutura do Ministério da Economia, portanto, componente da estrutura da própria União Federal.
Trata-se um órgão de vital importância para a mediação de conflitos entre o Fisco e o contribuinte, por meio de regras processuais que perseguem a informalidade e a verdade material com a finalidade de revisar o ato de lançamento tributário. Independentemente da discussão sobre o modelo ideal do voto de qualidade (ou mesmo sua extinção), o papel do CARF na composição de litígios deve ser prestigiado, inclusive como importante vetor de redução de processos judiciais tributários.
Nesse cenário, se a própria administração pública decide, em processo administrativo regular, que o lançamento tributário deve ser cancelado, não há razão para que essa mesma administração pública busque a revisão judicial de seu ato. Essa alternativa, de resto, esbarraria em óbices legais e dificuldades sistêmicas, necessariamente a serem previstas em regramento positivo próprio. Além disso e, acima de tudo, acabaria por retirar a efetividade prática na novel modalidade de solução de empate estabelecida pelo legislador que declaradamente pretendeu resgatar o princípio do in dubio pro contribuinte, ante a impossibilidade de uma segurança razoável em torno da constituição do crédito tributário.
A Exposição de Motivos da emenda que resultou no artigo 28 da Lei nº 13.988/20 atesta cabalmente que o legislador pretendeu deixar evidente que a existência de empate gera dúvida em torno da determinação do crédito tributário, o que deve sempre beneficiar o contribuinte:
“O Código Tributário Nacional consagra o princípio in dubio pro reo, em matéria de penalidade, em seu art. 112: (...)
Assim, o artigo dá concretude efetiva (prática) ao que prevê o art. 112 do CTN, máxime em matéria de multa qualificada, que demanda a ocorrência de dolo como elemento subjetivo do tipo. Mesmo as demais multas de ofício têm indiscutível caráter apenatório, de modo que também em relação a elas o artigo somente dá concretude real ao que estatui o art. 112 do CTN.” (não destacado no original)
Portanto, trazendo a Lei nº 13.988/20 uma regra material que reitera e dá concretude ao princípio in dubio pro reu, deve ser tida como um verdadeiro reforço ao que já era mandatório no Sistema Jurídico Tributário e, dessa forma, deve auxiliar o intérprete da norma a atribuir vigência efetiva ao artigo 112 do CTN, decidindo-se favoravelmente ao contribuinte os julgamentos que terminem empatados, a significar efetiva dúvida do colegiado em relação à incidência tributária.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse contexto, a possibilidade de revisão judicial de uma decisão proclamada a favor do contribuinte deve ser evitada até mesmo para não mitigar a eficácia da norma introduzida no mundo jurídico para definir e pacificar os conflitos administrativos tributários.</blockquote>
De fato, nos termos do artigo 45 do Decreto nº 70.235/72, é definitiva a decisão final do CARF, cabendo à autoridade preparadora exonerá-lo da obrigação, sendo ela extintiva do crédito tributário (artigo 156, IX, do CTN).
Tal possibilidade demandaria diversos ajustes processuais – todos dependentes de aprovação legislativa – como, por exemplo, questões de legitimidade ativa e passiva, pois a União Federal seria ao mesmo tempo autora e ré na demanda, o que lhe retira interesse processual. Além disso, seria necessário ponderar a atribuição dos ônus de custas judiciais e sucumbência, a posição do contribuinte nessa eventual ação anulatória, os efeitos da procedência de tal ação, fluência de juros, negativação do contribuinte em face de sentença de procedência sujeita a recurso, entre outros.
Recorde-se que nada disso ocorre na hipótese inversa, pois o ordenamento jurídico já prevê os caminhos e percalços de uma ação anulatória ajuizada pelo contribuinte, a quem cabe buscar, por sua conta e risco, uma ordem judicial suspensiva da exigibilidade, assim como oferecimento de garantia, além de todos os ônus de um processo ordinário, sob pena de ver a cobrança seguir mediante uma execução fiscal em que novamente há regramento específico do respectivo procedimento.
Ademais, é preciso ter em mente que as demandas judiciais tributárias já são hoje um fardo pesadíssimo para o Poder Judiciário, segundo números coletados pelo Conselho Nacional de Justiça, que apontam as execuções fiscais como o principal fator de morosidade, representando cerca de 39% do total de casos pendentes e 73% das execuções pendentes, com taxa de congestionamento de 90% no ano de 2018<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Somado o tempo médio de um processo administrativo no CARF (cinco a dez anos<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>) com o tempo a ser consumido em sua eventual confirmação judicial, não é exagero dizer que o contribuinte poderá ficar de 15 a 20 anos para ter uma solução final sobre uma autuação fiscal, em contrariedade ao princípio da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII da CF), o que só prejudicaria a já abalada segurança jurídica e o ambiente de negócios no Brasil.
A solução para essa questão já foi dada pelo Poder Judiciário, que possui sólida jurisprudência no sentido de que a Fazenda Nacional somente teria interesse jurídico contra decisão do CARF no caso de vício formal, preterição das regras processuais no processo administrativo ou evidente desvio de poder no julgamento pelo CARF - mas nunca para rever o mérito da decisão, afinal, a intepretação das normas tributárias pela administração pública não pode ser considerada uma ilegalidade<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Da mesma forma, mutatis mutandi, o STJ rechaçou o controle do Ministro da Economia sobre decisões do CARF, ratificando que eventual controle “tem como escopo e limite o reparo de nulidades” (MS 8810/DF, ministro Gomes de Barros). Com efeito, eventual judicialização de decisões do CARF deve ser restrita aos casos de nulidade, não havendo previsão em nosso ordenamento jurídico para a revisão de ato definitivo da administração pública por ela própria, sob argumento de erro em interpretação jurídica de norma tributária.
Daí conclui-se pela necessidade de restrição de acesso da Fazenda Nacional ao Poder Judiciário para rediscutir acórdãos em que o CARF tenha entendido assistir razão ao contribuinte, acima de tudo, como forma de prestigiar a opção constitucional e consciente do legislador ao prever que empate significa dúvida e, nessa circunstância, o lançamento tributário não pode ser mantido, devendo ser cancelado em definitivo na instância administrativa, sem necessidade de confirmação judicial.
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<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ADI 6399 (MPF), ADI 6403 (PSB) e ADI 6415 (ANFIP)
<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>Justiça em Números 2019. Disponível em: &lt;<a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf</a>&gt;
<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Relatório de Auditoria 201504396 da CGU e TCU
<a href="applewebdata://4D816B3C-FFCE-4548-AD3F-0680C9B0F9F1#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TRF/1ª Região, Processo 01135-13.2013.4.01.3400, Des. Fed. Maria do Carmo

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JOTA

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