Marco Alexandre Gonçalves dos Santos

Dia 19 de abril de 1873, estado da Louisiana, Paróquia de Carroll. Uma loja de bebidas de propriedade do Sr. William K. McMillen fora arrombada, e o invasor, o sr. Robert K. Anderson, levou consigo uma quantidade considerável de produtos. Convido o leitor a imaginar a repercussão de tal evento neste pitoresco cenário do mais remoto interior dos Estados Unidos da América.
Antes de adentrar propriamente neste evento, visando a melhor compreensão do contexto, merece destaque o fato de que em 1890 a Paróquia de Carroll inteira (que é uma região composta por algumas cidades e vilas ao norte do estado) possuía cerca de 15.000 habitantes.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
O estado da Louisiana é marcado por muitas peculiaridades latinas em relação aos seus 49 pares, que aproximam culturalmente aquele estado do Brasil. Dentre elas há a designação das subdivisões políticas estaduais: enquanto quase todo o resto dos Estados Unidos utiliza o termo condado (“county”), o antigo État de Louisiane recorre à expressão “paróquia” (“parish”) para esta finalidade, um reflexo da forte (e incomum) influência da Igreja Católica nesta área específica de um país profundamente protestante.
Honrando as tradições da França, país ao qual originalmente pertenceu, e do qual foi adquirido pelos Estados Unidos, o estado da Louisiana é uma ilha da Civil law num país onde todos os outros estados praticam a Common law.
Até a tradição de bebida alcoólica, pivô da história aqui contada, reflete uma peculiaridade latina da resistente Louisiana. Sua bebida mais tradicional é o rum, feito de cana-de-açúcar, que foi o grande sucesso na América do Norte colonial, mas acabou destronada (inclusive com políticas tributárias agressivas provenientes da Inglaterra), dando espaço ao subsequente império do whisky naquele país, feito majoritariamente de cereais.
Outra (triste) semelhança que liga a Louisiana ao Brasil, e que não poderia passar em branco, é a profunda e intensa mácula da escravidão. A Louisiana, que sempre possuiu uma grande população de pessoas negras escravizadas, integrou os Estados Confederados durante a Guerra da Secessão, que ocorreu entre 1861 e 1865.
O acontecimento ora narrado se passou apenas oito anos após o fim da guerra e, mesmo assim, a Louisiana viu acontecer um massacre contra a população negra, conhecido como o Massacre de Colfax, apenas seis dias antes do arrombamento da pequena loja de bebidas. O ambiente político era tenso, bélico e revoltoso naquele final de século.
Não obstante, a situação que nos interessa foi mais simples, menos dramática, e influenciou a jurisprudência constitucional processual tributária da Suprema Corte dos Estados Unidos.
O invasor da loja de bebidas era ninguém menos que o agente público responsável pela coleta de tributos na Paróquia de Carroll, e agiu no que entendeu ser o seu dever legal diante de um contribuinte em débito com o fisco. De acordo com o estado da Louisiana, o comerciante irresignado devia um total de cem dólares a título de taxa de licenciamento para venda de bebida alcoólica naquele estado.
O sr. McMillen, ultrajado pela circunstância, ajuizou uma ação na justiça estadual, obtendo liminar para impedir o anúncio e a venda da propriedade levada pelo sr. Anderson, bem como de ulterior invasão de sua propriedade sob a mesma fundamentação.
Entretanto, no julgamento de mérito o contribuinte sucumbiu, a liminar foi cassada, e sua pretensão foi integralmente negada. Insatisfeito com o resultado, recursos foram manejados até que o caso chegou à Suprema Corte Estadual, que manteve a decisão desfavorável ao jurisdicionado.
<blockquote class="jota-article__eye">Restava uma única opção ao bravo pagador de impostos: o improvável apelo aos poderosos justices da Suprema Corte dos Estados Unidos, feito por um pequeno comerciante, residente de uma pequena paróquia do interior da Louisiana.</blockquote>
Surpreendentemente, contudo, o caso fora admitido pela Corte Waite, liderada pelo justice Morisson Waite, cuja nomeação polêmica por parte do presidente Ulysses S. Grant, considerando se tratar de um advogado do estado de Ohio por muitos visto como de 2ª linha, relativamente desconhecido, causou espanto em muitos.
Em verdade, a nomeação fora a 3ª opção do presidente Grant, já que as duas tentativas anteriores fracassaram em razão de escândalos de corrupção, e de acusações de ligação do candidato com os Confederados.
O julgamento do caso <a href="https://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/95/37.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">McMillen v. Anderson, 95 U.S. 37</a> ocorreu em 1877, curiosamente o ano em que a Paróquia de Carroll sofreu um desmembramento, quando foram criadas as atuais Paróquias de Carroll do Leste e do Oeste, com sede nas cidades de Lake Providence e Oak Grove, respectivamente.
Os argumentos do contribuinte nos são familiares. Argumentou-se perante a Suprema Corte Americana que a lei do estado da Louisiana que permitia a privação da propriedade, e sua tomada pelo estado à força, sem conferir ao contribuinte o direito de se defender previamente num processo administrativo, feria de morte o devido processo legal, e, portanto, a décima-quarta emenda da Constituição Americana, cujo teor muito se assemelha ao inciso LIV do art. 5º de nossa Constituição.
Para todos aqueles que militam na área do direito tributário na condição de advogados, é fascinante perceber que no fim do século XIX já existiam vozes levando às cortes de justiça os mesmos argumentos que hoje apresentamos em defesa de nossos clientes:
"Em que pese o fato de que tributos podem ser coletados de forma sumária e sem o auxílio do judiciário, ainda assim é imperativo algum devido processo legal. Não está em poder da legislatura estadual atribuir a qualquer processo a qualidade de “devido processo legal”.
[...]
A lei supramencionada priva este requerente de sua propriedade sem o devido processo legal, porque o obriga sem oportunidade de defesa. [...] Ninguém deve ser obrigado sem ter a oportunidade de defender-se.
Se o procedimento do cobrador de impostos for autorizado pela lei, e o Judiciário estadual decidiu que ele é, então a lei confere ao agente público um mandado de busca e apreensão genérico.
[...]
O Legislativo não pode inverter o ônus da prova. Não pode prever que um indivíduo deve ser considerado culpado de um crime, ou possuidor de um débito em particular, sem que se prove o contrário.
A lei não permite ao requerente a impugnação judicial do crédito tributário sem que este seja integralmente garantido, o que é condição para o exercício do direito de defesa.
A lei, desta forma, estabelece uma lei para o rico e outra para o pobre. Àquele que não é rico nem possui amigos ricos, não é permitido defender-se da tributação sob nenhuma circunstância. Isso não é devido processo legal".<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Fica evidente da leitura deste trecho que mesmo o obstáculo de garantia do crédito tributário como condição para exercício do direito de defesa, também existente no Brasil por força do art. 16, § 1º de nossa Lei de Execuções Fiscais, cuja disposição muito semelhante já vigia na Louisiana de 1873, foi objeto de forte insurgência por parte do contribuinte.
No Brasil, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando jurisprudência que mitiga esta vedação nas hipóteses em que a parte comprovar hipossuficiência, prestigiando o acesso à justiça, com fundamentação muito similar àquela apresentada pelo contribuinte no caso em questão, séculos atrás, e acima reproduzida<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A opinião da Suprema Corte dos Estados Unidos ao apreciar o caso foi entregue pelo justice Samuel Freeman Miller, uma figura de grande proeminência na história do Tribunal.
Miller era médico de formação. Foi um proprietário de escravos em razão do casamento, embora tenha posteriormente aderido ao movimento pela abolição da escravidão, libertando os cativos que possuía. Cansado da carreira médica, foi autodidata em Direito e mudou de profissão, tendo sido aprovado na Ordem dos Advogados de seu estado (Kentucky) sem ter cursado qualquer faculdade.
Miller era muito respeitado na comunidade jurídica, tendo sido amplamente reconhecido como favorito para vaga de chief justice que veio a ser ocupada por Waite.
Em seu voto, representando toda a Corte, Miller negou provimento à pretensão do sr. McMillen, afirmando a constitucionalidade da lei estadual impugnada. Fê-lo em primeiro momento sob a fundamentação pragmática de que, se inconstitucional a lei da Louisiana pelos motivos invocados, também todas as leis de todos os Estados teriam de ser reconhecidas inconstitucionais e, portanto, nulas, já que foram editadas no mesmo sentido.
Observa o acórdão que o modo de coletar tributos naquele país é necessariamente sumário, pois só assim se atinge a velocidade e efetividade imprescindíveis para a arrecadação tributária. Menciona que “devido processo legal” não significa processo judicial. Para suportar esta afirmação, Miller alude ao direito inglês quando diz:
"A nação da qual herdamos a frase “devido processo legal” nunca contou com os tribunais para coletar tributos, embora tenha passado por uma revolução em resistência à tributação abusiva".
Para a Corte, neste julgado, basta que haja uma lei regulamentando o procedimento, instituindo o tributo, e que seja expedida uma notificação direcionada ao contribuinte de acordo com esta lei, capaz de cientificá-lo que um crédito tributário contra ele fora lançado pela autoridade competente, prevendo um determinado prazo para pagamento, findo qual o estado poderá realizar a constrição patrimonial.
Por outro lado, a mera possibilidade de ajuizar uma ação de repetição de indébito após o pagamento é o bastante para que haja devido processo legal, não sendo necessário outorgar ao contribuinte o direito de questionar judicialmente o crédito tributário antes de pagá-lo (ou de garanti-lo).
Enfrentando a objeção do contribuinte quanto ao pagamento do crédito tributário ou de sua garantia integral como condição para exercício de sua defesa, a Suprema Corte em seu acórdão apenas argumentou que não seria necessário sequer responder a um argumento que tem por consequência a exclusão do conceito de “devido processo legal” de um sem-número de ações judiciais que exigem a garantia como condição para o ajuizamento.
Neste ponto a Corte Suprema seguiu a tradição dos Estados Unidos, que sempre teve na vedação da judicialização do crédito tributário antes de sua quitação uma tradição da Common law, que fora positivada em âmbito federal com uma lei aprovada no parlamento no ano de 1867.
Vale notar que o registro legislativo desta norma – o que inclui sua exposição de motivos – não existe, e suas razões são até hoje desconhecidas. Contudo, os Tribunais rapidamente assimilaram a lei, e rejeitaram as impugnações que contra ela foram levantadas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Tal disposição do judiciário norte-americano é em tudo condizente com a tendência da Suprema Corte daquele período em considerar o direito de propriedade merecedor de menos proteção constitucional que as liberdades individuais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Também é interessante notar que o referido acórdão não ignora que, naquela época, já era prática corriqueira nos estados a formação de um órgão administrativo de julgamento com competência para julgar impugnações oferecidas pelo contribuinte ao lançamento. No entanto, o voto assevera que:
“O fato de que a maioria dos estados agora possuem órgãos administrativos de julgamento revisores do lançamento tributário não prova que os tributos lançados sem a existência destes órgãos são nulos”.
Desta forma, concluiu a corte que a presença do contribuinte e a oportunidade de exercer o direito de defesa quando do lançamento do tributo não é, e nunca foi, condição para sua validade nos Estados Unidos.
Na perene e paulatina tensão entre contribuinte e o estado, onde o primeiro demanda o devido processo legal, e o segundo a eficiência arrecadatória, o fisco da nação que jogou cargas de chá ao mar em protesto ao abuso da tributação levada a cabo pela Inglaterra sagrou-se vencedor nesta batalha em particular.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> As traduções do referido acórdão neste artigo foram feitas pelo autor, de forma livre.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A título de exemplo, ver o REsp nº 1.487.772/SE.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Enjoining the Assessment and Collection of Federal Taxes despite Statutory Prohibition.” Harvard Law Review, vol. 49, n. 1, 1935, pp. 109–116. JSTOR. Disponível em: &lt;www.jstor.org/stable/1333225&gt;. Acesso em 26 de abril de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Além do caso ora relatado, ver também Springer v. United States, e Hagar v. Reclamation District n. 10811.

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