Wallace Corbo

Em resposta à consulta formulada pela deputada Benedita da Silva, o Tribunal Superior Eleitoral avalia a possibilidade de determinar o financiamento proporcional das candidaturas negras.
O problema parece evidente: eleições após eleições, candidatos negros têm recebido financiamento substancialmente inferior ao percentual de candidaturas por eles representados. O recorte de gênero torna a questão mais gritante: em 2018, as mulheres negras chegaram a receber  quase dez vezes menos recursos para suas campanhas do que homens brancos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
A questão foi agravada a partir da <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/eleicoes/tse-partidos-devem-garantir-30-de-fundo-eleitoral-e-propaganda-para-mulheres-22052018">decisão do próprio TSE que determinou o financiamento proporcional de candidaturas femininas</a>. É certo que a decisão do TSE não falava nada sobre a questão racial. Apesar disso, como consequência da decisão, os partidos políticos parecem ter buscado “compensar” a transferência impositiva de recursos de candidaturas masculinas, reduzindo as verbas até então destinadas a candidatos negros. E mesmo entre as mulheres, cujas candidaturas eram agora financiadas proporcionalmente, a disparidade racial manteve-se gritante.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" sizes="(max-width: 1080px) 100vw, 1080px" srcset="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg 1080w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos-300x300.jpeg 300w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos-1024x1024.jpeg 1024w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos-150x150.jpeg 150w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos-768x768.jpeg 768w" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
O caso é uma hipótese evidente do que se tem denominado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/discriminacao-indireta-o-que-e-e-como-supera-la-09112017">discriminação indireta</a>: quando uma norma, política ou práticas sociais aparentemente neutras acabam por produzir o efeito de negar direitos a grupos historicamente vulnerabilizados. <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Tradicionalmente, imaginamos a discriminação como uma forma de negação de igualdade pela qual uma política ou uma norma jurídica expressamente exclui um grupo do gozo de direitos. Exemplo mais simples disso são as hipóteses de oferta de emprego que recusam a contratação de mulheres ou de pessoas negras.
Essa forma de discriminação vem de há muito sendo combatida no Brasil e no mundo, convertendo-se então em um “caso fácil” para o direito. Diante de uma discriminação direta, a consequência jurídica é a anulação do ato.
O problema é que a discriminação por gênero, raça, orientação sexual, religião ou tantos outros não desapareceu pelo mero combate à sua forma direta. Em uma sociedade que invisibiliza determinados grupos e que mantém estruturas sociais discriminatórias, é comum que práticas e normas que não parecem ser discriminatórias acabem produzindo idênticos efeitos de exclusão de grupos marginalizados.
Construir um belo prédio público com escadas modernas não parece ser uma medida discriminatória. Até que uma pessoa com mobilidade reduzida se veja impedida de acessar o estabelecimento. Implementar uma prova de resistência física em um concurso público para ingresso na polícia civil pode parecer uma medida adequada e neutra, até que se verifique que uma prova unificada desse tipo exclui sistematicamente mulheres da corporação.
A discriminação indireta pode ser fruto de atos intencionais e ocultos de alguns indivíduos racistas, machistas, homofóbicos. Mas em geral não é (nem precisa ser). Ela é consequência de uma combinação de limites epistêmicos institucionais e de um imaginário social que naturaliza a exclusão.
De um lado, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-supremo-problema-racial-29062020">instituições que historicamente não incorporaram grupos marginalizados têm dificuldade de considerar a posição e interesses desses grupos</a>, o que conduz a políticas e normas capazes de indiretamente prejudicá-los. De outro, o fato de existirmos em uma sociedade que naturalizou determinadas posturas racistas, machistas, homofóbicas e discriminatórias em geral permite que mesmo os mais bem-intencionados indivíduos reproduzam a naturalização da exclusão.
A dificuldade de lidar com a discriminação indireta reside no fato de que sua superação envolve variáveis múltiplas. E por vezes, como o caso julgado pelo TSE demonstra, resolver um determinado problema de discriminação pode dar causa a outro não antecipado. Assim, ao solucionar o problema do subfinanciamento de candidaturas femininas, o TSE acabou inadvertidamente acentuando o subfinanciamento de candidaturas negras (femininas e masculinas).
Qual é então, a solução adequada diante de um caso como esse? O julgamento no TSE evidencia uma das possíveis abordagens.
O primeiro passo envolve reconhecer a existência da discriminação indireta e suas causas. Não há  “vergonha” nem “embaraço” em admitir que políticas públicas bem intencionadas geram efeitos adversos sobre grupos marginalizados. Apenas reconhecendo, como fez o <a href="http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-consulta-0600306-47-voto-ministro-luis-roberto-barroso-30-06-2020/rybena_pdf?file=http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-consulta-0600306-47-voto-ministro-luis-roberto-barroso-30-06-2020/at_download/file">Ministro Roberto Barroso em seu substancioso voto</a>, é possível passar para a análise das soluções.
O segundo passo envolve suprir as lacunas que permitiram a produção do impacto desproporcional analisado. Em geral, a solução das causas da discriminação indireta exige complexas políticas públicas – como políticas de promoção da educação, da saúde, do emprego. Mas os efeitos discriminatórios podem (e devem) ser enfrentados por meio de medidas específicas e pontuais que decorrem dos próprios princípios da igualdade e da vedação à discriminação (art. 3°, IV, CRFB/1988).
Nesse sentido, apesar de a solução da disparidade do financiamento de candidaturas negras exigir o combate, em nível profundo, do racismo brasileiro, é possível dar resposta ao efeito do subfinanciamento na forma do proposto pelo Ministro Roberto Barroso.
Ou seja, exigindo-se diretamente que os partidos políticos sejam compelidos a manter a proporcionalidade no financiamento de candidaturas negras (de homens e de mulheres negros), considerando o percentual de candidatos negros em dada eleição.
Por fim, o terceiro passo envolve evitar uma contradição performativa na análise das medidas de combate à discriminação indireta. Ou seja, deve-se evitar, ao máximo, que uma medida antidiscriminatória produza novos efeitos discriminatórios não antecipados.
Nesse sentido, a relevante preocupação apontada pelo ministro Alexandre de Moraes com o objetivo de evitar que, em resposta à decisão do TSE, os partidos políticos simplesmente reduzam drasticamente suas candidaturas negras, para manter o sobrefinanciamento de candidatos brancos. Ainda que não haja dados empíricos demonstrando que esse resultado viria a se produzir – em que nível –, levar a preocupação a sério é relevante para pensar medidas de contenção destes efeitos.
A preocupação com os efeitos adversos de uma medida antidiscriminatória não deve conduzir, contudo, à imobilidade. Pelo contrário, sempre que um potencial efeito discriminatório adverso for verificado, exige-se do intérprete (judicial ou legislativo) pensar as soluções para evitar ou mitigar tal efeito.
Assim, chega em boa hora a proposta apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes no sentido de criar uma regra de transição, para evitar novos efeitos adversos decorrentes da possível decisão do TSE. Segundo o ministro, seria necessário determinar um piso para o financiamento de candidaturas negras nas próximas eleições.
Nos termos de seu voto, o piso do financiamento de candidaturas negras aplicável em 2020 deverá seguir o percentual do número de candidaturas negras apresentadas nas últimas eleições municipais. Dessa forma, seriam reduzidos os incentivos para que partidos rejeitassem candidatos negros, ao passo que os recursos destinados a essas campanhas seriam aumentados.
A proposta do ministro Alexandre de Moraes receberá, ainda, a consideração de seus pares, até mesmo de forma a compatibilizá-la com as mudanças sofridas pelo sistema eleitoral desde 2016. Não só isso, ainda que dê uma resposta imediata para as eleições de 2020, a proposta ainda parece deixar em aberto quais seriam os próximos passos, a serem aplicados nas eleições de 2022 e seguintes. Se por um lado essa indeterminação abre caminho para a atuação legislativa, por outro surge o risco de perpetuar-se uma lacuna problemática após as próximas eleições, caso o parlamento se mantenha omisso sobre o tema.
O fato é que, até o momento, três ministros (ministros Luis Roberto Barroso, <a href="http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-consulta-060306-47-voto-ministro-edson-fachin-30-06-2020/rybena_pdf?file=http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-consulta-060306-47-voto-ministro-edson-fachin-30-06-2020/at_download/file">Edson Fachin</a> e Alexandre de Moraes) já reconheceram este grave cenário e propuseram a reparação necessária. Deu-se um largo passo adiante, então, no sentido de combater um grave cenário de discriminação indireta na política. Uma discriminação que tem contribuído para manter níveis reduzidos de participação de pessoas negras (homens e, especialmente, mulheres negras) no espaço democrático representativo.
Resta ao TSE, portanto, concluir o julgamento – o que se espera que aconteça na próxima terça-feira, após vista do ministro Og Fernandes. E, sem prejuízo de que leve a sério as preocupações com a efetividade e efeitos sistêmicos de sua decisão, o TSE já aponta que não permitirá a solução da inércia e do imobilismo discriminatório.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os dados são encontrados no voto do ministro Roberto Barroso, a partir de estudo publicado pela FGV Direito São Paulo, cf. Catarina Helena Cortada   Barbieri, Luciana de Oliveira Ramos (coords.), Democracia e Representação nas Eleições de 2018:campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero: Relatório Final (2018-2019). São Paulo: FGV Direito SP, em parceria com o Centro de Economia e Política do Setor Público (FGV CEPESP), 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sobre o tema, confira-se ainda: Wallace Corbo. Discriminação indireta: conceito, fundamentos e uma proposta de enfrentamento à luz da Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

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JOTA

Discriminação por gênero, raça, orientação sexual, religião não desapareceu pelo mero combate à sua forma direta

O TSE e a discriminação racial indireta nas eleições

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