Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">"Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração."
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Nas últimas semanas, viemos abordando aqui nesta coluna as relações entre a matemática, a geometria, a arte e o direito, descortinando o vínculo essencial de mesura e proporção que conecta essas disciplinas. A análise vem demonstrando logicamente a existência, de resto autoevidente, de um princípio permanente de ordem que está no topo e na base da estruturação do cosmos, quantidade, forma, beleza e justiça são aspectos inerentes à estrutura da realidade que é, em si, una, eterna e imutável.
A estrutura da realidade, assim, apresenta-se como um todo ordenado racionalmente, para o qual a matemática e geometria são meios aptos a descortinar as relações e os princípios fundamentais a partir do qual essa mesma estrutura se constitui e organiza. Esses princípios são os mesmos que servem de fundamento para a existência e o desenvolvimento da arte e do direito, para a criação de medidas e proporções que materializem a beleza e a justiça na realidade individual e concreta, circunscrita no tempo e no espaço.
A compreensão racional desses princípios fundamentais é mais fácil pela via do desenvolvimento da matemática e da geometria. As leis matemáticas são universais e necessárias, aplicáveis, portanto, a todas as coisas que podem ser quantificadas, incluindo substâncias materiais e imateriais. Da mesma forma a geometria, ciência dos espaços contínuos e que, como tal, é aplicável a todos os corpos materiais. A matemática e a geometria, assim, são linguagens universais que podem ser usadas para descrever e compreender a ordem e a estrutura da realidade.
A matemática e a geometria, dessa maneira, soem, mais frequentemente, serem usadas para facilitar a compressão e o desenvolvimento da arte e do direito, que não se compõem, esses últimos, apenas de elementos analíticos universais e necessários, mas também, e muitas vezes principalmente, de elementos subjetivos, particulares e contingentes.
Na concretização da arte e do direito, isto é, na passagem da proporção matemática abstrata e ideal para a realização de uma obra ou para a aplicação de uma regra a uma situação concreta, adentra um elemento de imprecisão, de perda de objetividade, mas de ganho de significado. As quatro disciplinas, no fundo, ocupam-se de relações de quantificação, medida e proporção. Duas, a matemática e a geometria, de maneira abstrato-teórica e duas, a arte e o direito, de maneira concreto-prática.
Como todas derivam de um mesmo e único princípio de ordem no cosmos, o inter-relacionamento delas pode levar a que uma necessidade de uma delas demande o desenvolvimento das outras, e vice-versa. Como, por exemplo, no caso de um problema jurídico demandar o desenvolvimento de toda uma área da matemática para auxiliar a encontrar a resposta justa e correta.
E foi exatamente isso que aconteceu para se encontrar a solução para o famigerado “problema dos pontos”, que embasbacou muitos matemáticos, especialmente nos séculos 16 e 17. O problema foi abordado por Fra Luca Paccioli, quem já encontramos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-pascoa-e-a-proporcao-aurea-09042023">na coluna da semana passada</a>, em sua Summa de arithmetica, geometria, proportioni et proportionalità (1494).
Paccioli, em sua obra, refere-se a uma partida de balla, um jogo de azar, que envolve um tabuleiro com uma série de alavancas e buracos, onde uma bola pode ser perdida se cair em algum dos buracos. O objetivo do jogo é encontrar a posição correta para a bola no tabuleiro, de forma que ela possa passar por todas as alavancas e chegar até o final sem cair em nenhum dos buracos.
O problema dos pontos surge na hipótese de o jogo ter de ser interrompido por uma ação externa. Suponha a leitora que dois jogadores, A e B, estão disputando diversas partidas de balla, com iguais chances de vencer cada uma, e que tenham apostado uma soma para a mesa. Os jogadores acordam que quem vencer seis partidas primeiro ganhará o valor total apostado na mesa. Na hipótese de Paccioli, contudo, o jogo é interrompido quando A vencera cinco partidas e B três. Como, então, deve-se dividir o prêmio de uma maneira justa, levando-se em consideração que A tinha maiores chances de completar seis vitórias do que B?
Paccioli apresentou uma solução que não foi considerada totalmente satisfatória, consistindo na divisão do bolo de apostas proporcionalmente ao número de vitórias de cada jogador, sem considerar o total de vitórias restantes para o fim do jogo. Essa solução poderia gerar uma injusta situação em que o ganhador de uma única partida, em caso de interrupção do jogo, levaria o prêmio inteiro, ainda que mesmo intuitivamente seja evidente que a vitória em uma única partida pouco diz acerca das chances reais de se ganhar mais cinco antes de que o oponente consiga ganhar seis.
O problema dos pontos foi submetido ao matemático e pensador francês Blaise Pascal (1623-1662), que longamente o discutiu com o seu amigo jurista – e matemático amador – Pierre de Fermat (1607-1665). A dupla concebeu uma solução verdadeiramente revolucionária para o problema, que está na base da teoria da probabilidade, em uso até os dias atuais.
Para Pascal e Fermat, o problema dos pontos, acima de tudo, envolvia uma questão que em essência não era simplesmente matemática, mas verdadeiramente moral e jurídica. Segundo o matemático francês, “a primeira coisa a se considerar é o fato de que o dinheiro que os jogadores apostaram no jogo não lhes pertence mais (...), mas eles receberam, em troca, o direito de esperar ganhar aquilo que a sorte lhes trará, de acordo com as regras que eles acordaram no início.” No caso de uma interrupção no jogo, prossegue Pascal, “a regra que determina como será feita a partilha deve ser proporcional ao que cada jogador tinha direito a esperar da fortuna.” Para uma divisão justa, assim, era necessário desenvolver um método de cálculo baseado não tanto no passado, isto é, na quantidade de partidas vencidas por cada jogador, mas, principalmente, baseado no futuro, isto é, na probabilidade que tinha cada jogador de encerrar a disputa como o vencedor.
Para encontrar um método de cálculo justo para o problema dos pontos, Pascal revisitou uma antiga figura de geometria algébrica que entrou para a história posteriormente como o “Triângulo de Pascal”. Trata-se de uma matriz triangular de números, que é construída de forma recursiva, na qual a primeira linha contém apenas o número 1 e cada linha subsequente sendo construída pela adição dos números da linha anterior em pares adjacentes, e adicionando um 1 no início e no final de cada nova linha.
Assim, a segunda linha do Triângulo de Pascal é 1 1, a terceira linha é 1 2 1, a quarta linha é 1 3 3 1, e assim por diante. A matriz resultante é triangular porque cada número na linha seguinte é construído a partir dos dois números adjacentes da linha anterior, formando um triângulo com os números na diagonal.
O Triângulo de Pascal pode ser usado para calcular o número de combinações possíveis de elementos em um conjunto, através do chamado "binômio de Newton", que é uma fórmula matemática que usa os números do Triângulo de Pascal. Essa fórmula é útil para calcular as probabilidades de certos eventos ocorrerem em experimentos aleatórios, o que também pode ser aplicado ao problema dos pontos.
No caso da hipótese de Paccioli, para se dividir o prêmio de forma justa, é possível usar o Triângulo de Pascal para determinar as probabilidades de A vencer a sexta partida antes de B. Dessa maneira, se A venceu cinco partidas e B venceu três, ainda há quatro partidas restantes para jogar. A precisa vencer apenas uma das quatro partidas restantes para alcançar a marca de seis vitórias e ganhar o prêmio total. B, por outro lado, precisa vencer três partidas restantes para ganhar, sem perder nenhuma.
Assim, a probabilidade de A ganhar a sexta partida e, portanto, o prêmio total é a soma das probabilidades de A ganhar uma das quatro partidas restantes. O Triângulo de Pascal, na quarta linha (número de partidas) nos mostra que há 16 combinações diferentes para 5 resultados possíveis: A vencer todas as quatro partidas, A vencer três das quatro partidas, A vencer duas das quatro partidas, A vencer uma das quatro partidas e A não vencer nenhuma das quatro partidas
Arredondando o cálculo, A, portanto, tem uma chance de 4 em 5 (ou 0,8) de vencer uma partida. Por outro lado, a probabilidade de B completar as seis vitórias e, portanto, ganhar o prêmio total, é o complemento dessa probabilidade, isto é 1 - 0,8 = 0,2. Assim, grosso modo, para dividir o prêmio de forma justa, A deveria receber cerca de 80% do prêmio total e B deveria receber cerca de 20% do prêmio total.
O desenvolvimento da análise do Triângulo de Pascal foi revolucionário. Para além de fornecer as bases da teoria da probabilidade e do próprio desenvolvimento posterior da matemática como um todo, o trabalho de Pascal foi crucial para lançar as bases da indústria de seguros, que, como se sabe, foi fundamental para possibilitar o investimento nas Grandes Navegações e na própria concepção do sistema capitalista, entre os séculos 15 e 17.
Note a leitora que na base dessa revolução matemática estava um problema jurídico, de natureza contratual. O desenvolvimento da matemática para oferecer uma solução jurídica somente foi possível porque ambas as disciplinas compartilham de uma mesma realidade, isto é, derivam dos mesmos princípios de ordem e de estruturação do cosmos, que são, em última análise, os verdadeiros fundamentos da legitimidade lógica, jurídica e internacional. Latet enim veritas, sed nihil pretiosius veritate.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A verdade está de fato escondida, mas nada é mais precioso do que ela.

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JOTA

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