José Reinaldo Guimarães Carneiro

Recentemente, no mês de agosto, a 6ª Turma do STJ decidiu que a Guarda Civil Metropolitana não pode fazer abordagens à população nas ruas (<a href="https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&amp;termo=202103914460&amp;totalRegistrosPorPagina=40&amp;aplicacao=processos.ea">Resp. 1977119/SP</a>). Segundo os ministros envolvidos na decisão, a incursão, tida por ilegal, invade tarefa privativa da polícia e, assim, não pode ser tolerada. É evidente que a decisão em questão, não sumulada, não tem caráter vinculante ou mesmo representa o entendimento de toda a corte. Espero, sinceramente, que seja revista brevemente. Porém, como é igualmente evidente, suas consequências já são sentidas na jurisprudência brasileira, no dia a dia das varas criminais, país afora.
Nesta semana, atuando como promotor de Justiça, passei por uma experiência assim. O debate posto em julgamento se referia à atuação de um traficante de cocaína e maconha. Ele foi surpreendido pela Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, trazendo aproximadamente 300 porções individualizadas das duas drogas, para venda. Tentou fugir correndo. A Guarda Civil não havia se deparado acidentalmente com ele. Nada disso. Ela atuava de forma protetiva a um Centro de Acolhimento de Pessoas em Situação de Rua e Drogaditos, em Guaianases. Os dois guardas esclareceram isso em juízo. Falaram que o centro de acolhimento atrai os traficantes exatamente em razão da situação de seus frequentadores. Esclareceram, também, que o tráfico em questão é muito explorado em lugares dessa natureza e que o traficante em julgamento se prevalecia dessa situação.
No momento da prisão, vendia a um usuário. O acusado, por sinal, não negou os fatos. Confessou tudo, na polícia e em juízo. Disse que cumpria turnos de venda da droga, das 6h às 18h, em razão de necessidades financeiras. Tabelou os preços cobrados: cocaína a R$ 10, por porção. Maconha, a R$ 5. Disse, durante o julgamento, que não correu. Vou parafraseá-lo: “Os senhores acham que se eu tivesse percebido a aproximação da guarda ou da polícia teria ficado ali parado cheio de drogas para venda? Claro que não. Não entendem isso? Teria corrido antes”.
Pois bem, depois de tudo dito e esclarecido, ele terminou absolvido. O magistrado entendeu cabível de aplicação a decisão recente do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>, que abre o presente artigo. Ao mesmo tempo em que apelava da decisão, fiquei pensando no Centro de Acolhimento em questão. Fui buscar informações sobre ele. Nasceu da gestão municipal em São Paulo em 2018 e representava, segundo disse o governante da época, “um projeto de vida nova, com atendimento humanitário, treinamento e documentação, para que as pessoas tenham a esperança do trabalho, do estudo e de uma vida de felicidade”.
A decisão que colhi no julgamento referido, na minha avaliação, mata um pouco a felicidade e o projeto de vida nova. Se o traficante não pode ser abordado e contido por guardas municipais, se há necessidade de se esperar a ação da polícia, caiu por terra a proteção que o projeto concebeu. E ela era boa. Muito boa mesmo. O referido centro de acolhimento, em um local carente ao extremo, está preparado para receber 120 drogaditos e pessoas em situação de rua por dia. E outros 50 para atividades diurnas. Há outros espalhados no país todo. E há a percepção de traficantes — tenham certeza — de que não podem mais ser abordados por guardas municipais. Farão disso uma nova orientação. Distribuirão as estratégias do tráfico levando tudo em consideração. Tudo. Nada escapa ao poder de narcotraficantes.
Embora tenha apelado da decisão, é evidente que a preocupação é enorme. Muito grande mesmo. Tenho medo de que o traficante absolvido volte ainda hoje, ou em breve, a levar cocaína para pessoas que precisam de acolhimento e desintoxicação. Tenho medo de que o novo entendimento acabe incentivando ainda mais o tráfico de drogas, em paradoxo completo com a vontade da lei, expressada em 2006, trazendo mecanismos muito bons para proteção da saúde pública, que, em última análise, é o que está em julgamento.
São medos diários, os que colhemos no sistema de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/justica-criminal">Justiça Criminal</a>. Os que dizem respeito aos direitos e garantias individuais, os do direito à proteção à intimidade, enfim. Um mundo à parte, onde os julgamentos ocorrem, em um sentido ou em outro, aos milhares por mês. Porém, é inegável, há uma preocupação maior com os hipossuficientes. Sem casa, sem saúde, sem tratamento. Miseráveis, dominados pelos efeitos deletérios da cocaína e do crack, envolvidos em ambiente de desolação e abandono, inclusive do Estado.
Escrevo o presente artigo porque gostaria, sinceramente, de ver a população, inclusive a GCM, voltar a protegê-los. Se qualquer um do povo pode prender em flagrante, se o tráfico é crime permanente (tudo que a lei afirma expressamente), os agentes do Estado também podem fazê-lo. Mesmo que não sejam integrantes das forças policiais. Em última análise, basta pensar no salutar princípio de proporcionalidade, tão festejado no Direito brasileiro: o direito à intimidade é sensivelmente menor quando comparado com a obrigação que o Estado tem de proteger a saúde pública. Há uma devastação em curso. Na saúde pública e na segurança das pessoas.

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JOTA

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