André Spinardi

Carolina Arzillo

No mercado imobiliário é corriqueira a situação em que uma construtora ou incorporadora, para viabilizar a construção de um empreendimento, contrata um empréstimo junto a uma instituição financeira, dando em garantia hipotecária as unidades imobiliárias que serão futuramente construídas.
E mesmo nessas situações, os terceiros adquirentes adimplentes não precisam se preocupar com o cumprimento do contrato de empréstimo por parte da construtora, uma vez que a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), publicada em 25/04/2005, protege-os em face da garantia hipotecária, ainda que anteriormente firmada, com a seguinte redação: “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
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No entanto, mostra-se temerária a aplicação indistinta e automática do verbete sumular a todos os casos em que há hipoteca firmada entre construtoras e agentes financeiros, restando a dúvida acerca da subsistência da súmula no caso de o adquirente ou compromissário comprador ter pactuado a compra e venda de um imóvel sem a finalidade de utilizá-lo para fins de moradia.
Para início de debate, importante se faz esclarecer que o STJ passou a entender pela ineficácia da hipoteca contra terceiros adquirentes em tutela do direito à moradia, ora garantido no artigo 6º da Magna Carta.
Bem por isso, a Corte Superior já tratou do tema para casos em que o imóvel é adquirido para fim comercial, optando por afastar a aplicação da súmula, sob o fundamento de que “não se tratando de aquisição de casa própria pelo Sistema Financeiro da Habitação, que dispõe de legislação protetiva especial, não há como dispensar o direito do credor hipotecário à sequela, tal e qual estampado na legislação civil”[1]. Desta feita, a aplicação da Súmula 308/STJ fica restrita apenas aos contratos submetidos ao Sistema Financeiro de Habitação (“SFH”), melhor dizendo, aos imóveis residenciais.
Passado o introito, remanesce questionamento no caso de imóveis residenciais (que, portanto, são abrangidos pelo SFH), mas adquiridos por terceiros para revenda, isto é, adquiridos com a finalidade de investimento/lucro e não de própria moradia. E para avaliar a questão, conveniente a análise da legislação e dos argumentos utilizados nos repetidos precedentes que deram azo à Sumula 308/STJ, com o fito de verificar se o julgador, ao interpretar e aplicar a legislação à espécie, visou limitar e/ou expôs a situação específica que buscava tutelar.
Primeiro no que toca à legislação específica, traz-se à luz da discussão que o SFH foi estruturado para ser aplicado em situações em que o adquirente compra um imóvel para sua própria residência, de sua família, ou de seus dependentes. Recorta-se o conceito introdutório positivado pelo artigo 9ª da Lei 4.864/65:
Art. 9º- Todas as aplicações do sistema, terão por objeto, fundamentalmente a aquisição de casa para residência do adquirente, sua família e seus dependentes, vedadas quaisquer aplicações em terrenos não construídos, salvo como parte de operação financeira destinada à construção da mesma.
Seguidamente, a despeito da primeira conclusão acerca da legislação, conveniente, ainda, analisar a interpretação e aplicação do tema pelo Superior Tribunal de Justiça, sobretudo pelo fato da Súmula 308 utilizar, tão somente e de forma genérica, o termo “imóvel”.
Como referência normativa, a súmula se respalda no artigo 1.420 do Código Civil, o qual preconiza que só aquele que pode alienar, poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese, assim como só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca. Até então, nada que interfira na discussão posta.
Já em atenção aos precedentes que serviram de sustento para o enunciado da súmula, algumas conclusões são preciosas. Por primeiro, o REsp nº 187.940/SP, de relatoria do ministro Ruy Rosado de Aguiar, afirma que o direito de crédito de quem financiou a construção das unidades não pode ser exercido contra terceiros adquirentes, “pois os adquirentes da casa própria não assumem a responsabilidade de pagar por duas dívidas [a sua dívida da promessa de compra e venda da sua unidade autônoma e a dívida da construtora pelo empréstimo junto ao agente financiador]”.
Veja-se que o ministro utiliza o termo “casa própria”, o que pode levar a excluir aqueles que adquirem o imóvel para revenda e não como sua moradia própria. É bem certo, todavia, que o termo “casa própria” é utilizado por diversas vezes em um sentido genérico (seja pela Lei 4.864/65, seja pelo precedente), simplesmente para diferenciar daqueles imóveis comerciais (e que, como dito, não são abarcados pelo SFH).
Indo além na análise dos precedentes, o pioneiro julgado do REsp 187.940/SP, de relatoria do mesmo ministro Ruy Rosado de Aguiar, em um voto extenso que, sob o norte do modo como estruturado o sistema financeiro habitacional, divaga sobre a finalidade precípua de se proteger o terceiro adquirente de boa-fé por meio da ineficácia da garantia hipotecária firmada em favor do agente financiador. Nesse sentido, o voto traz interessante passagem:
Dos três personagens que participaram do negócio: dois com intuito de lucro (portanto, correndo riscos) e um com o propósito de adquirir a casa própria, os dois primeiros negligentes e inadimplentes, – o primeiro por escolher mal o seu financiado e por deixar de adotar as medidas permitidas na lei para receber o seu crédito sem causar prejuízo a terceiros, o segundo por não pagar o financiamento recebido, – somente correu o risco e perdeu o terceiro, que adquiriu e pagou.
Como se depreende do excerto, em uma situação em que se têm (i) dois agentes (construtora e instituição financeira) que apenas buscam o lucro (e, assim, assumem riscos), (ii) frente a um terceiro agente (adquirente da casa própria) que não tem vistas econômicas para o negócio (isto é, excluídos aqueles que adquirem o imóvel para revenda), deve-se tutelar este último sujeito de boa-fé, que não assumiu riscos do negócio financeiro anterior, de modo a retirar a eficácia do gravame hipotecário em face dele. A exegese, inclusive, já foi também alongada às situações que envolvem alienação fiduciária e não somente garantia hipotecária[2], o que externa ainda mais a manifesta intenção de proteção do consumidor ao não transferir a ele os riscos do negócio.
Na mesma linha, outro precedente relevante para a compreensão da real intenção do verbete sumular é o REsp 171.421/SP, em sede do qual o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira invocou a necessidade de atendimento aos fins sociais, às exigências do bem comum e o princípio da boa-fé, concluindo pela proteção do consumidor, isto é, adquirente da unidade imobiliária.
<blockquote class="jota-article__eye">A esse respeito, deve-se destacar que sob a ótica dos precedentes acima mencionados o adquirente é considerado consumidor e hipossuficiente, o qual não teria conhecimento para compreender as consequências e características de uma garantia hipotecária.</blockquote>
Nesse contexto, pela definição legal de consumidor (“toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”), a proteção da Súmula 308/STJ não pode ser estendida aos casos em que o sujeito adquire o imóvel residencial com o intuito de revendê-lo, por não se tratar de destinatário final.
Portanto, não se mostra razoável, a partir do estudo dos precedentes, que o entendimento sumulado seja aplicado de forma automática para situações não voltadas à moradia.
Para aplicar o verbete sumular, deve o julgador proceder ao cotejo analítico entre o paradigma e o caso a ser solucionado/julgado. A despeito de possuir força vinculativa, não se exige uma submissão cega e automática aos enunciados de súmula. O Código de Processo Civil importa o distinguishing, conceito do Common Law, e é expresso ao dispor que, aplicando ou não o entendimento, deverá o magistrado proceder ao cotejo entre os casos. A distinção é, afinal, um meio de justificação da decisão.
Nessa ordem de ideias, a interpretação jurisprudencial, além de estar em consonância com o espírito da lei do SFH, transparece uma razoabilidade e acerto ao defender a função social da moradia em detrimento do interesse financeiro. De igual modo, o posicionamento também demonstra razoabilidade ao não estender a perda da eficácia da garantia de forma desenfreada em situações em que não se pretende a manutenção da moradia pessoal do adquirente, eis que não se pode desconsiderar uma garantia legitimamente firmada entre uma instituição financeira e uma construtora, em um ambiente em que todos os agentes buscam o lucro e, portanto, assumem riscos (sob pena de uma tutela descompensada dos atuantes no negócio e reflexa afronta ao constitucional princípio da igualdade).
Ainda que a questão pareça clara, justa e em consonância com legislação especial e precedentes que subsidiaram a edição da súmula, é possível encontrar caso em que o magistrado entendeu que a proteção prevista na súmula abarcaria também imóveis apenas adquiridos como investimento e destinados à futura venda, como se pode ver em sentença prolatada por juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba/SP (processo nº 1035859-39.2019.8.26.0602).
No propalado caso, uma empresa de gestão e administração de propriedades adquiriu 51 (cinquenta e um) imóveis de uma construtora que havia financiado anteriormente o empreendimento junto à instituição financeira com a respectiva garantia hipotecária. Na decisão, em que pese o clarividente caráter de investimento da compra dos muitos imóveis, a magistrada entendeu pela aplicação da Súmula 308 e o cancelamento das hipotecas gravadas.
Entretanto, há que se consignar que a sentença foi genérica ao aplicar de forma literal o teor sumular e não esmiuçar a verdadeira e específica situação a que ele se subsume no exercício do comentado distinguishing. De toda forma, os autos pendem ainda de julgamento de recurso de apelação em face da sentença.
Portanto, legislação e jurisprudência (em sua maioria, pelo menos) parecem apontar que a hipoteca firmada entre construtora e agente financeiro somente não é oponível nos casos em que o adquirente adimplente compra o imóvel para sua própria moradia (de sua família, ou de dependentes) e não no caso de imóveis comerciais e imóveis que foram comprados em investimento para futura revenda, notadamente na busca de uma proteção específica de consumidores de boa-fé que não assumiram riscos de uma operação de investimento, assim como em atenção à primordial função social da moradia.
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O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
https://youtu.be/a6M2upbiCFY
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[1] STJ, RESP 651323 /GO Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES. T3 - TERCEIRA TURMA DJ 29/08/2005.
[2] STJ, REsp nº 1.576.164/DF (2015/0324836-0), MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, 14.05.2019.

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JOTA

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