Zillá Oliva Roma

Corajoso o constituinte de 1988 ao dispor que a saúde é direito de todos e dever do Estado, atribuindo-lhe status de direito fundamental social (arts. 6º e 196, CF). Mas esse dever prestacional estatal não engloba (ao menos não deveria englobar) todo e qualquer tipo de pretensão, independentemente das circunstâncias do caso concreto. E mesmo ante a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inc. XXXV, CF), inviável e equivocado o quase que invariável acolhimento automático da pretensão autoral.
De início, não se pode olvidar que, sim, a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas que deve ser garantido, a priori, “mediante políticas sociais e econômicas” que devem visar “ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Claro que a caracterização do direito à saúde como direito social, a ser prioritariamente concretizado por meio de políticas públicas, não afasta sua titularidade individual. Assim, embora desejável priorizar um manejo coletivo na efetivação do direito à saúde, inclusive por meio de tutela jurisdicional coletiva se o caso, mantém-se paralelamente a titularidade individual para buscá-lo.
Porém, como sabido, o provimento jurisdicional concedido em sede de ação individual viola o princípio da isonomia, porque apenas os cidadãos que logram superar os custos do processo (físicos, culturais, financeiros, sociais, de informação etc.) têm acesso a muito mais que o fornecido administrativamente pelo SUS (no caso, tratamentos médicos não constantes das listas oficiais).
Assim, a judicialização do direito à saúde, nos moldes em que tem massivamente ocorrido, além de onerar desproporcionalmente o erário, é incapaz de promover justiça distributiva, criando uma injustificada discriminação entre cidadãos com sentença/com liminar e sem sentença/sem liminar, mesmo em havendo situações fáticas de absoluta igualdade.
Assim, em que pese possível a busca judicial por tratamentos diversos em face do Estado, um dos grandes papéis da advocacia pública nessas demandas é justamente de frear, ao menos em parte, abusos e irrazoabilidades, em prol do interesse público e da higidez do SUS.
Nesse diapasão, quanto aos pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos não incorporados pelo SUS, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a> firmou tese vinculante no Tema 106 (REsp 1.657.156/RJ) contendo requisitos para que o Estado possa ser condenado a tanto, a saber: (i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e (iii) existência de registro na Anvisa do medicamento, observados os usos autorizados pela agência”.
No caso, o STJ modulou os efeitos da tese para que incidisse apenas nas ações distribuídas a partir de 04/05/2018. Contudo, engana-se quem entende que tais requisitos devem ser observados tão somente nas ações ajuizadas a partir dessa data, justamente porque, na verdade, seus fundamentos já existiam.
Com efeito, se a Constituição Federal determina que o direito social à saúde deve ser prestado mediante políticas sociais e econômicas, entende-se que o fornecimento individualmente considerado seria exceção e desde que o tratamento previsto nos protocolos oficiais do SUS não se mostrasse eficaz (requisito i). Nesse caso, mantêm-se hígidos, de preferência, os PCDTs (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas), previsto no art. 19-N, inc. II, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm">Lei 8.080/90</a>.
Quanto ao segundo requisito, em sendo permitida a assistência suplementar à saúde (art. 199, CF), espera-se que cidadãos com situação financeira mais privilegiada devem lá buscar por atendimento. Por exemplo, imagina-se que aqueles que possuem plano privado de saúde não seriam, a priori, pessoas hipossuficientes nesse aspecto (claro que tudo depende do tratamento demandado).
Ou seja, embora o art. 196 da CF preveja ser a saúde dever do Estado, são finitos os recursos públicos, sendo incoerente e injusto limitar o direito de quem realmente depende do SUS para custear tratamento de quem possui plano privado de saúde, no qual, em tese, pode buscar por atendimento, ainda que judicialmente.
Por fim, quanto ao último requisito, atendendo-se ao disposto nos arts. 197 e 200, incs, I e II, da CF, criou-se a Anvisa por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9782.htm">Lei 9.782/1999</a>, com a finalidade institucional de proteger a saúde da população por meio do controle sanitário da produção/comercialização de produtos/serviços submetidos à vigilância sanitária (art. 6º). Compete-lhe, pois, conceder registros de medicamentos/produtos de saúde, após análise de sua segurança e eficácia.
Por isso, a legislação brasileira possui diversas regras que vedam a comercialização e o consumo de produtos de saúde sem registro nacional, como a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6360.htm">Lei 6.360/76</a>. Da mesma forma a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6360.htm">Lei 8.080/90</a>, que dispõe serem vedados em todas as esferas de gestão do SUS: (i) o pagamento/ressarcimento/reembolso de medicamento/produto/procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Anvisa; (ii) a dispensação/o pagamento/ressarcimento/reembolso de medicamento/produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa (art. 19-T).
Além do registro, mister que a indicação do prescritor se enquadre dentre aquelas previstas na bula aprovada pela Anvisa, vedando-se, assim, os tratamentos off label.
Tudo isso para dizer que, independentemente da tese fixada no Tema 106 do STJ e da modulação dos efeitos desse julgado, o Judiciário sempre teve o dever de pautar-se em razões técnicas para decidir, ainda mais em se cuidando de tratamentos mais complexos e de elevado custo.
Ou seja, para além e independentemente dos requisitos fixados (que, frise-se, se pautaram em fundamentos já existentes, conforme exposto), sempre foram limites básicos à intervenção judicial em políticas públicas: (i) a razoabilidade da pretensão deduzida perante o Poder Judiciário (análise do mínimo existencial), (ii) a irrazoabilidade da conduta da Administração Pública e (iii) a suficiente disponibilidade orçamentário-financeira (cláusula da reserva do possível), parâmetros esses já expostos na ADPF 45.
Infelizmente, no âmbito da farmacialização do Judiciário<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a maioria das decisões judiciais ainda é frequentemente proferida mais por automatismo, ante a exacerbada e repetitiva litigiosidade, e também por pressão ético-moral que por razões técnicas, também em se tratando de doenças mais graves e/ou avançadas (alegação de iminente risco de morte ou de conferir sobrevida ao paciente).
Um dos papéis mais relevantes da advocacia pública nesse ponto é justamente combater essa justiça de misericórdia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, pela qual o juízo determina o fornecimento do tratamento buscado de forma quase que automática, mais por motivos emocionais e de elevado volume de processos, que por razões técnicas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em suma, o Estado não pode financiar tratamento diverso, não oficialmente fornecido, a qualquer custo e sem evidências científicas suficientes para tanto, sendo imprescindível trilhar um caminho coerente com o princípio da universalidade, exatamente da forma prevista na CF, sendo exatamente essa uma das principais linhas de defesa empregadas pela advocacia pública nessa seara.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ROMA, Zillá Oliva. Tutela jurisdicional e direito à saúde – Análise crítica da farmacialização do Judiciário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 42-44.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ROMA, ib., p. 45.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “A imagem de que o juiz, ao conceder um tratamento, está salvando um paciente da omissão estatal não corresponde à realidade do que é a judicialização da saúde. [...] Em outras palavras, os juízes estão concedendo tratamentos cuja necessidade, segurança e eficácia são, no mínimo, duvidosas.” FERRAZ, Octávio Luiz Motta; WANG, Daniel Wei Liang. Fosfoetanolamina – A proteção judicial à medicina sem base em evidência. JOTA, 08 nov. 2015. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-protecao-judicial-a-medicina-sem-base-em-evidencia-08112015">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-protecao-judicial-a-medicina-sem-base-em-evidencia-08112015</a>. Acesso em: 27 fev. 2022.

Saúde

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JOTA

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