Paulo Marcos Rodrigues de Almeida

A atual discussão sobre o teletrabalho de juízes está completamente fora de lugar. De um lado, defensores ardorosos do teletrabalho integral de magistrados e outros servidores públicos invocam a economia gerada para os cofres públicos e o aumento da produtividade. De outra parte, críticos fervorosos do trabalho à distância reivindicam a presença diária dos magistrados e servidores nos fóruns, apontando transtornos e prejuízos causados por audiências virtuais e fóruns ainda fechados.
Embora a discussão seja travada normalmente por especialistas em Direito, muitos parecem ter se esquecido da antiga lição de que a virtude está no meio. Também o mecanismo de funcionamento da tradicional balança da justiça parece ter sido esquecido, querendo cada um, segundo sua sincera convicção (ou particular conveniência), os dois pratos da balança para si. É preciso retomar o equilíbrio na discussão, jogando luz sobre o que realmente interessa e deixando de lado discussões estéreis que só fazem evaporar o debate jurídico relevante.
De início, parece ser preciso lembrar a alguns que os serviços judiciários se destinam a pessoas, e não a números e planilhas. Assim, o raciocínio econômico, embora valioso para medições e planejamentos, não é e não pode ser critério de avaliação da atividade jurisdicional. Acabar com o Poder Judiciário certamente proporcionaria “grande economia” ao contribuinte, mas a que preço? Já daí se vê que a “economia” gerada aos cofres públicos com prédios, equipamentos e mobiliário que se tornariam desnecessários pelo trabalho em casa dos magistrados não é, por si só, justificativa legítima para o teletrabalho de juízes.
Do mesmo modo, quando se fala em “aumento da produtividade” de juízes – com olhos vidrados em relatórios estatísticos – quase nunca se questiona a qualidade das decisões judiciais produzidas assim em maior número, seja no fórum ou em casa. Se os juízes produzissem parafusos ao invés de sentenças, certamente haveria alguma preocupação com a qualidade de cada parafuso, e não apenas com o número de peças produzidas. Não custa lembrar, então, que juízes não lidam com peças de metal, mas sim com a vida das pessoas, sua saúde, sua liberdade e seus bens.
De fato, eleger o “aumento de produtividade” como critério avaliador da atividade jurisdicional só se torna possível “no dia em que renunciamos à idéia de juiz. Porque uma justiça que julga 280 processos com um clique de computador, isto é, que possivelmente decide o destino de 280 vidas, age como administração; de justiça, definitivamente, não se cuida” (Luís Greco, “Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô”, São Paulo: Ed. Marcial Pons, 2020, p. 51).
Nesse contexto, parece um tanto evidente que a conveniência pessoal do trabalho remoto, embora não seja abertamente vocalizada – por natural constrangimento – é o que subjaz disfarçada nesses e outros argumentos “técnicos” e de “interesse público” para justificar o teletrabalho (como, por exemplo, a extravagante alegação de que o teletrabalho de servidores públicos seria ainda uma contribuição ao meio ambiente, pela “redução das emissões de carbono” dos veículos não mais utilizados para ir aos fóruns – e também a locais de mero lazer, espera-se).
Seja como for, também não faz o menor sentido sustentar que juízes têm que estar nos fóruns simplesmente porque “são servidores públicos”. Sem que se aponte o porquê de ser necessária a sua presença física, exigir que juízes “batam cartão” e estejam nos fóruns todos os dias, o dia todo, soa a mero capricho, ou mesmo ressentimento mal disfarçado contra uma instituição – a magistratura – que alguns supõem “privilegiada”.
A verdadeira questão sobre o teletrabalho de juízes, portanto, não é se o trabalho à distância é tecnicamente possível e mais econômico, nem se é mais ou menos conveniente. O cerne da discussão consiste em identificar e analisar quais funções, tarefas e obrigações a cargo de juízes comportam execução “à distância” (admitindo o teletrabalho) e quais aquelas que, inescapavelmente, exigem a presença física dos juízes nos fóruns (não podendo ser desempenhadas virtualmente).
Pense-se nas audiências, por exemplo. A prova oral produzida em audiência é, muitas vezes, determinante para o desfecho da ação, podendo interferir decisivamente na vida, na liberdade e no patrimônio das partes envolvidas na causa. Seja uma pensão para a viúva, seja a liberdade ou prisão do acusado da prática de um crime, o que está em jogo numa audiência judicial é importante demais para ser tratado através de telas de computador. A simples presença de todos na sala de audiências já revela a seriedade do ato e a importância que todos (juízes, procuradores, advogados e defensores públicos) dão ao que acontece ali.
E isso sem falar das audiências de custódia, em que, devendo-se investigar também eventual prática de violência ou tortura contra pessoas presas em flagrante, sequer se poderia cogitar da participação remota do preso, do juiz, do Ministério Público e, com razão maior, de advogados e defensores públicos (vez que cabe a estes, em primeiro lugar, o contato direto e a verificação das condições pessoais do custodiado).
Além disso, a tomada de depoimentos em audiência é procedimento técnico-jurídico de pura comunicação, que exige interação intensa entre juízes, partes, testemunhas, advogados e procuradores e cuja dinâmica é impossível de ser captada digitalmente. Numa audiência virtual, parte significativa da comunicação é perdida; não por limitações tecnológicas (como equipamentos ou conexões de internet ruins, por exemplo), mas simplesmente porque o ato humano de comunicar-se é muito mais do que a mera troca de palavras, envolvendo um leque enorme de mensagens não verbais veiculadas por gestos, olhares, posturas, tremores e perturbações, comportamentos juridicamente relevantes que uma câmera de computador jamais transmitiria.
Demais das audiências, também a administração dos cartórios judiciais (chamados “Secretarias” na Justiça Federal) é atividade simplesmente incompatível com o teletrabalho. Não se treina, gerencia e motiva uma equipe de pessoas à distância, remotamente. Pode-se tentar fazê-lo, é verdade; mas a experiência e a literatura especializada advertem de que as chances de sucesso são, estas sim, remotas. Desde Sêneca, já se sabe que “Os progressos obtidos por meio do ensino são lentos; já os obtidos por meio de exemplos são mais imediatos e eficazes”.
Por outro lado, o estudo de processos e a elaboração de sentenças e outras decisões, sendo tarefas intelectuais e naturalmente solitárias, admitem perfeitamente o trabalho remoto, podendo um ambiente mais sereno contribuir para melhores decisões (não para mais decisões, mas para melhores decisões, note-se).
Nesse contexto, a solução adotada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/trf3">TRF3</a>) parece bastante sensata e razoável, ao autorizar que juízes e servidores se utilizem do teletrabalho por até dois dias na semana (Resoluções 514/2022 e <a href="https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-normativa-ans-n-566-de-29-de-dezembro-de-2022-455439257">566/2023</a>). Nesse modelo, juízes federais e seus auxiliares podem se organizar para desempenhar nos fóruns, presencialmente, os atos processuais que exigem sua presença ali (como audiências e a supervisão da equipe de auxiliares, por exemplo), ao mesmo tempo em que reservam alguns dias para retirar-se para um ambiente mais tranquilo, em casa, para o estudo cuidadoso de processos e a preparação mais refletida de decisões.
É certo que há outros aspectos do teletrabalho de juízes a serem discutidos, e mesmo os pontos brevemente abordados acima comportam aprofundamento. Diante dos limites do espaço, porém, este ensaio se propõe apenas a convidar os leitores à reflexão sobre o que ainda não tem sido objeto de atenção nas acaloradas discussões sobre o teletrabalho de juízes. Se “a virtude consiste em saber encontrar o meio-termo entre dois extremos”, como ensinava Aristóteles, não há melhor momento para tentarmos todos ser virtuosos.

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JOTA

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