Matias Falcone

Em 14 de março passado, o jornal inglês The Telegraph veiculou a seguinte matéria: "Italianos com mais de 80 anos 'serão deixados para morrer' em meio ao surto de coronavírus no país".
O Departamento de Proteção Civil da região do Piemonte, uma das mais afetadas, elaborou um documento determinando que pacientes com mais de 80 anos ou com a saúde muito debilitada não serão levados às UTIs, já sobrecarregadas. Com isso, não terão acesso a um ventilador mecânico, ficando à própria sorte ou a cuidados paliativos.
A justificativa é que o crescimento desenfreado da epidemia levou a um desequilíbrio entre as necessidades clínicas das vítimas do COVID-19 e os recursos disponíveis. Segundo o documento, nessa situação excepcional "os hospitais serão forçados a focar nos casos em que a razão custo/benefício é mais favorável ao tratamento clínico". Ou seja, quando houver maior chance de sobrevivência. Um típico argumento de reserva do possível e da melhor alocação de recursos escassos em uma crise.
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Roberto Testi, presidente do Comitê Técnico-Científico para o Coronavirus no Piemonte, conclui: "Queremos adiar o máximo possível o momento em que teremos de escolher entre quem vive e quem morre. Às vezes, na medicina temos de fazer escolhas difíceis, mas é importante que haja um sistema que preveja como fazê-lo".
<a href="https://www.nytimes.com/2020/03/20/us/coronavirus-in-seattle-washington-state.html">A mesma discussão foi levantada em 20 de março pelo jornal The New York Times, em reportagem sobre o estado de Washington.</a>
Há chance de vivermos algo assim no Brasil? Em outras palavras, se chegarmos a esse ponto, o SUS poderá escolher entre "quem vive e quem morre" exclusivamente com base na idade? E mais: o argumento da reserva do possível é uma boa justificativa para assumir a idade como critério explícito de admissão (ou não) em unidades de terapia intensiva? Spoiler: não é.
A saúde é direito de todos e dever do Poder Público, segundo os artigos 6 e 196 da Constituição Federal. Ainda, o serviço de saúde oferecido pelo ente público deve assegurar "atendimento integral", o que inclui o tratamento intensivo, conforme o artigo 198, inciso II, da Constituição. O conjunto de ações e serviços de saúde prestados pelo Poder Público constitui o Sistema Único de Saúde (o famoso SUS), regulado pela Lei no 8.088/90.
No Brasil, dois terços dos estados (17 dos 27 estados) não cumprem a recomendação da Organização Mundial da Saúde de ter o mínimo de um leito de UTI para cada 10 mil habitantes. Nos epicentros mundiais da epidemia, a demanda chegou a 2,4 leitos de UTI por 10 mil habitantes. Então como os médicos intensivistas do SUS escolherão quem vai para UTI ou não?
Existe mais de um modelo de escolha no mundo hoje. Os mais comuns são o modelo diagnóstico, o modelo de parâmetros objetivos e o modelo de priorização. No modelo diagnóstico, o profissional se refere a uma lista de patologias que demandam tratamento intensivo (por exemplo: edema pulmonar). No modelo de parâmetros objetivos, certos parâmetros laboratoriais ou fisiológicos determinam a internação (por exemplo: nível de sódio abaixo de 110). No modelo de priorização, os pacientes são selecionados segundo um sistema de triagem, que prioriza pacientes conforme suas necessidades e chances de recuperação.
Em 2016, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução no 2.156/2016, adotando o modelo de priorização para admissão às UTIs, no que foi acompanhado pelo Ministério da Saúde em 2017 com a Portaria no 895. O artigo 6o da resolução do CFM dispõe que a admissão de um paciente na UTI deverá ser priorizada conforme uma escala de 1 a 5, em que quanto mais baixo o número, maior a prioridade do paciente. É como se vê abaixo:
<ol>
<li>Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.</li>
<li>Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.</li>
<li>Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica.</li>
<li>Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica.</li>
<li>Pacientes com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação. Em geral, esses pacientes não são apropriados para admissão na UTI (exceto se forem potenciais doadores de órgãos). No entanto, seu ingresso pode ser justificado em caráter excepcional, considerando as peculiaridades do caso e condicionado ao critério do médico intensivista.</li>
</ol>
Ou seja, quanto maior a probabilidade de recuperação do paciente, maior prioridade ele terá. Porém, a resolução não diz como calcular essa probabilidade. Ou melhor, não indica quais variáveis devem ser levadas em conta para calculá-la, deixando a critério do médico.
Assim como a maioria dos fenômenos biológicos, as taxas de sobrevida são afetadas pela idade. Nesse caso, a idade é o que os estatísticos chamam de proxy: uma variável que não é em si diretamente relevante, mas que serve no lugar de uma variável mais difícil de mensurar. Presume-se que a idade guarda relação de pertinência com certo estado de saúde, o que por sua vez pode indicar a probabilidade de recuperação.
Porém, a idade é uma variável constitutiva mas não determinante dessa probabilidade. Não são só os idosos que estão no grupo de risco do COVID-19. Também estão diabéticos, hipertensos, quem tem insuficiência renal crônica, doença respiratória crônica ou doença cardiovascular. Esses fatores podem ser proxys mais precisos do que a idade em si para calcular a probabilidade de recuperação. Pode ser que um idoso saudável tenha mais chances de recuperação do que um jovem cardíaco ou diabético.
Com o que chegamos à nossa resposta: se a crise do COVID-19 piorar, o SUS não poderá deixar de tratar alguém nas UTIs apenas com base na idade. Outros fatores deverão ser levados em conta na triagem. Tanto é assim que o artigo 9o da resolução do CFM dispõe que as decisões sobre admissão em UTI deverão ser feitas de forma explícita, sem discriminação por questões de idade.
E se o referencial normativo mudar? Pode ser que se a crise piorar o CFM ou o Ministério da Saúde mudem os critérios para liberar vagas em UTIs, o que inclusive já está ocorrendo, como o próprio Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta anunciou.
Resta a questão de fundo: se a lei permitir a adoção exclusiva e explícita da idade como critério de admissão ou não nas UTIs, seria aceitável? Não, não seria. Mesmo que "legal" segundo a lei vigente, esse critério seria discriminatório no pior sentido do termo.
Os direitos sociais (como a saúde) exigem uma obrigação de fazer por parte do Estado para sua implementação. Como os recursos públicos são escassos, a tese da reserva do possível defende que a satisfação desses direitos é limitada pelo orçamento do Estado.
É por isso que deve haver uma triagem para os leitos de UTI (bem escassos, por sinal). Mas o problema reside exatamente em como fazer essa triagem.
Ao analisar a política de transplante de rins nos EUA, o professor de Harvard Benjamin Eidelson notou que previa a alocação dos melhores rins àqueles cujo transplante possibilitaria mais anos de sobrevida ("longevity matching"). Como pessoas mais velhas tendem a viver menos, é fácil imaginar quem sai perdendo.
A idade como proxy de variáveis clínicas é um critério que satisfaz o objetivo almejado: evitar o desperdício de bons rins com pacientes sem chance de recuperação. Mas a adequação entre meios e fins seria o suficiente para legitimar essa política? Para Eidelson, não. O problema da discriminação não é apenas se o critério adotado pela política é ou não economicamente racional. Mas sim se há reconhecimento público das pessoas como de igual valor moral.
Eis o princípio básico: todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e assim temos de tratá-las com igual respeito e consideração. Esse valor não varia de acordo com suas características, tais como idade, gênero e raça, porque a dignidade não vem em graus.
Tratar pessoas de modo diferente passa a ser problemático quando, em determinados contextos sociais, atenta contra a condição dessas pessoas enquanto dignas de igual respeito. É o processo de estigmatização, por exemplo: pessoas idosas como mais próximas da morte, mais fracas, menos importantes. Aqui surge o problema.
No caso italiano (em breve, talvez brasileiro), desfavorecer de modo explícito pacientes idosos provoca a mesma inquietação. Falamos de algo anterior ao mínimo existencial, é o mínimo vital. A política de diferenciar pela idade (rins ou UTIs) supõe que vale mais a pena salvar a vida de algumas pessoas pelo simples fato de que há mais vida a ser salva. Mas a linha entre o valor de uma pessoa em si e o valor de salvar a sua vida é tênue, para dizer o mínimo. Não seria irrazoável se preocupar que, ao relegar aos idosos com a vida em jogo um tratamento de segunda classe, arriscamos atestar que simplesmente valem menos como pessoas. E isso, diria Eidelson, é uma discriminação moralmente inaceitável, independente do que diz a lei.
A idade não é um critério legal ou moral admissível para decidir entre quem vive e quem morre. O critério adotado hoje pelo SUS é internacionalmente reconhecido e obedece a reserva do possível. Decidir prioridades com base em critérios clínicos em princípio não configura uma discriminação degradante. Não há tratamento intensivo para todos, será inevitável fazer escolhas. Mas a idade não poderá ser adotada de forma explícita e exclusiva, como na região do Piemonte na Itália, pois assim proíbe a nossa lei. A pessoa não perde seu valor com a idade.
No jargão médico, "crise" define o momento de evolução de uma doença para melhor ou pior. Ou seja, é o ponto em que o paciente poderá tanto curar-se quanto, dependendo do caso, morrer. O que importa é que depois da crise ele já não será mais o mesmo. Pois são nos tempos de crise que as instituições são postas à prova. Sem qualquer hipérbole, o SUS tem diante de si o maior desafio de sua breve história. É a chance de mostrar-se como referência mundial, sem imitar maus exemplos.
Seja qual for o cenário brasileiro nos próximos dias, o SUS não poderá realizar a escolha de Sofia. Se você não pegou a referência, aproveite a quarentena e veja o filme. Sem sair de casa, claro.
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Referências:
Benjamin Eidelson, Kidney Allocation and the Limits of the Age Discrimination Act, 122 Yale L.J. (2013). Disponível em: <a href="https://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol122/iss6/6">https://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol122/iss6/6</a>
Bustamante-Teixeira, Maria Teresa, Faerstein, Eduardo, &amp; Latorre, Maria do Rosário. (2002). Técnicas de análise de sobrevida. Cadernos de Saúde Pública, 18(3), 579-594. Disponível em: <a href="http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&amp;pid=S0102-311X2002000300003">http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&amp;pid=S0102-311X2002000300003</a>
Hellman, Deborah. When is Discrimination Wrong? Cambrige, MA: Harvard University Press, 2008. Disponível em: <a href="https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/668910?mobileUi=0&amp;journalCode=et">https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/668910?mobileUi=0&amp;journalCode=et</a>
White ST, Cardenas YR, Nates JL. What every intensivist should know about intensive care unit admission criteria. O que todo intensivista deve saber sobre critérios de admissão à unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva. 2017;29(4): 414-417. Disponível em: <a href="https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5764552/">https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5764552/</a>

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JOTA

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