Guilherme Magaldi Netto

Não se sabe ao certo quando começou, mas, segundo o notável jurista Pedro Lessa, em 1915 já se falava na chamada “crise” do Supremo Tribunal Federal. Um século depois a Corte continua em crise, e, pior ainda, não sabemos como e quando vamos conseguir debelá-la.
Na verdade, a história do STF é a história das várias tentativas, sempre malogradas, de criar mecanismos processuais capazes de conter o crescimento vertiginoso do número de processos que chegam ao Tribunal. Tudo porém até agora em vão, engendrando inclusive uma lógica perversa, pois a cada nova reforma, mais aumenta o congestionamento da Corte, hoje com o incrível número de mais de 50 mil processos represados, sendo que existem 700 casos que chegaram à Corte no século passado (!) e alguns deles, pasmem, já estão no STF há mais de 30 anos aguardando uma decisão
Com efeito, a última tentativa para espancar a “crise” teve início em 1992 e demorou 12 anos para ser concluída, em 2004, com a Emenda Constitucional 45, intitulada “reforma do judiciário“. Duas novidades surgiram como remédio milagroso: a “súmula vinculante“ e a “repercussão geral“, esta última uma espécie de “filtro” pelo qual se escolhe a natureza dos casos que poderão ser alvo de deliberação. Com esses dois novos institutos, principalmente a “repercussão geral”, esperava-se fosse possível agilizar e descongestionar os trabalhos do Tribunal. Dez anos depois, no entanto, é possível concluir que nenhum deles foi capaz de resolver o problema da morosidade e do congestionamento processual do Supremo, como revelado recentemente pela Fundação Getulio Vargas no estudo“ Supremo em Números“.
A propósito, dentre os processos represados, dormitam hoje na Corte 330 casos da chamada “repercussão geral”. Levando-se em conta que, em média, 27 delas são julgadas por ano, seriam necessários mais 10 anos para julgá-las, o que, evidentemente, não garantiria estoque zerado já que novas “repercussões“ seriam admitidas, retroalimentando-se, infinitamente, o sistema.
A situação, de fato, parece fora de controle, a ponto de um eminente Ministro do Tribunal sugerir uma espécie de “moratória” no julgamento das “repercussões”, e , recentemente , outro não menos ilustre membro do Tribunal defender a prorrogação da vigência do novo CPC como forma de evitar a sobrecarga de processos , o que demonstra o desespero que tomou conta inclusive dos integrantes da Corte. Quanto mais julgam, quanto mais decisões proferem (eles recebem uma média de 5 mil processos por ano), mais se veem sufocados de processos, num movimento que nos faz lembrar o mito de Sísifo.
Precisamos, assim, abandonar urgentemente o reformismo à “outrance”, estéril e irracional, e enfrentar a verdadeira questão: a “crise” do Supremo Tribunal não é apenas, como se diz vulgarmente,“numerológica”, mas é sobretudo uma “crise “ de identidade .
Nossa Corte é como a jabuticaba, só existe no Brasil – e é esse o problema principal. Temos um tribunal híbrido, fruto da importação mecânica e burocrática de dois modelos absolutamente distintos e incompatíveis entre si. De um lado, o STF, desde seu nascedouro, assume o formato de Corte “à la americana“, cópia da Suprema Corte dos EUA (o número e o modo de indicação dos juízes são quase iguais e até os assessores de ministros dizem que são “law clercks”, como os americanos ) De outro lado, depois da Constituição de 88, o Supremo caminha a passos largos em direção ao modelo europeu de Cortes  Constitucionais, tendo a Alemanha como norte e de cuja doutrina e jurisprudência nos tornamos ventríloquos ( copiamos deles vários mecanismos para a declaração de inconstitucionalidade das leis e interpretação de normas constitucionais )
Ou seja: o Tribunal é meio norte-americano, meio alemão. Um amálgama de concepções heterogêneas. Tem cara americana e cérebro germânico, numa tentativa de sincretismo jurídico que a experiência demonstra não estar funcionando a contento.
Acrescente-se, ainda, o exercício rotineiro de funções anômalas. O Tribunal , por exemplo , julga extradições (em alguns países sequer passa pelo Judiciário); instrui inquéritos e julga ações penais por crimes comuns (veja o caso do “mensalão”); intervém em demarcações de terras indígenas e desapropriações; dirime conflitos político-eleitorais; concede habeas corpus para alterar penas fixadas pelas instâncias ordinárias , bem como regimes de cumprimento da sanção penal; decide a sorte de casos criminais banais, como um recente caso de furto de bicicleta onde a Corte foi chamada a dizer se se aplicava ou não o princípio da insignificância, tarefa típica de juízos inferiores
Até a entrada ou não de pessoas em sessões do Parlamento é alvo de deliberação do Supremo, o que confirma a tendência da Corte de maximizar sua intervenção na vida da Nação. A hipertrofia do órgão chegou ao extremo quando recentemente foi necessária uma decisão monocrática de um Ministro do Tribunal para definir qual entidade estudantil teria o monopólio para emissão de carteira de estudante com validade nacional. E o que dizer do caso que tramita no Tribunal onde a mais alta Corte do país deve definir se Procuradores podem gozar ou não 60 dias de férias?
Enfim, o Tribunal funciona em grande parte como juízo comum, dividindo sua missão mais nobre de guardião da Constituição com tarefas subalternas que nenhuma outra Corte Constitucional no mundo se dispõe a fazer. Como já anotou Joaquim Falcão , da FGV , no Supremo 20% dos casos referem-se de algum modo a questões envolvendo funcionários públicos (a Corte, aqui, funciona como “departamento de recursos humanos") ; 40% são de casos tributários (a Corte equivaleria a uma “junta de recursos fiscais") ; outros 20% seriam de aplicação de algum direito do consumidor (o Tribunal se assemelharia ao “Procon”) .
A “crise“, como nos lembra Gramsci, se instala justamente no momento em que o novo ainda não nasceu e o velho ainda não morreu. Nesse interregno , sintomas mórbidos, conclui Gramsci, surgem naturalmente. O STF, da maneira como tem atuado, encontra-se nessa encruzilhada. Ou se reconhece definitivamente como Corte Constitucional com viés germano-europeu ou retoma o modelo da Suprema Corte dos EUA. A meio caminho entre os dois formatos não há solução , exceto para os que ainda acreditam em jabuticaba.

LM-STF-20151216-39

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JOTA

História do STF é marcada por tentativas malogradas de conter o crescimento do número de processos

O Supremo em "crise"

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