Diogo Kastrup Richter

A crescente complexidade das relações socioeconômicas implica em maior desenvolvimento da economia. Nos idos do século XVIII, por exemplo, a Revolução Industrial, liderada pelo pioneirismo britânico e espraiada (por vezes forçosamente) aos quatro cantos do mundo, transformou tanto o comércio quanto a sociedade de então, dando lugar a novos produtos, serviços, modelos de negócio e, até mesmo, ideologias.
O ser humano contemporâneo enfrenta situação semelhante. Aceite-se ou não o termo, vem se discutindo os impactos da Quarta Revolução Industrial na vida do homem: a inteligência artificial, a robotização, o processamento de dados avassalador e a computação em nuvem dentre outros ineditismos que sinalizam alterações nos negócios, nas relações de trabalho e, é claro, na tributação arquitetada pelo Estado[1].
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Nesse cenário de transição, o Estado tem buscado acompanhar, na medida do possível, as galopantes alterações do meio, sobretudo para que seu poder arrecadatório não seja rapidamente esvaziado diante do surgimento de novas tecnologias. As soluções encontradas, contudo, nem sempre são as mais acertadas sob o ponto de vista do direito.
Exemplo disso é a cobrança do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre o streaming. O legislador federal, por meio da Lei Complementar nº 157/2016, incluiu o subitem 1.09 na lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o referido imposto municipal e define os serviços tributáveis.
Com a inclusão desse item na lista de serviços, os Municípios, mediante alteração na lei local, podem passar a cobrar o ISS sobre a disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet.
Nas atividades de transmissão de dados via streaming mais comuns, as empresas difusoras dos conteúdos previamente adquirem o direito de transmissão de obras (quando não as produzem) e as disponibilizam aos usuários em uma plataforma online, os quais podem acessá-las enquanto perdurar a conexão, o que é feito normalmente mediante o pagamento de mensalidades. Por não ser definitiva a cessão – o acesso ao conteúdo é feito em tempo real –, é o que mormente diferencia o streaming do download.
Essa inserção na legislação do ISS, contudo, tem suscitado diversos questionamentos na seara jurídica. Para a efetiva prestação de serviço, na acepção tributária atual, entende-se que deve haver a ocorrência de um fato econômico envolvendo a execução de uma obrigação de fazer, a existência de esforço humano que gere, em favor de terceiro, algo até então inexistente [2].
Na disponibilização de conteúdo por internet via streaming, por outro lado, há tão somente uma cessão de direitos sobre os conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto, o que se caracteriza como obrigação de dar. Em sendo assim, não se vislumbraria a prestação de serviço e, por conseguinte, impossível seria a incidência do ISS.
Por essa razão, tem-se defendido, com fundados posicionamentos divergentes, que a inclusão do subitem 1.09 na Lei Complementar nº 157/2016 é inconstitucional, por abarcar na lista de serviço uma atividade que, em verdade, a título jurídico-tributário, não o é.
Independentemente do posicionamento que se adote, avistam-se algumas possibilidades para a solução dessa trama.
Em primeiro lugar, uma solução mais imediata que se observa, nos termos das bases tributárias atuais, é repensar o conceito tributário de serviço, admitindo que as atividades que envolvam uma obrigação de dar, desde que resultantes de atividade econômica e dispostas na Lei Complementar nº 116/2003, também sejam abarcadas pela concepção de serviço, de forma a incidir o ISS sobre estas.
Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a constitucionalidade da incidência de ISS sobre as atividades realizadas pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde, sinalizou que o conceito de “prestação de serviços de qualquer natureza” não é imutável, devendo-se realizar uma releitura dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional.
Para a Suprema Corte, a dicotomia “obrigação de dar” e “obrigação de fazer” não é adequada para o conceito de serviço vislumbrado pelo constituinte no artigo 156, III, da Constituição Federal, cuja norma permite a inclusão de atividades que, não exprimindo natureza outra, passam à categoria de serviços para fins de incidência do dito imposto. A Lei Complementar nº 116/2003, ainda, teria ampliado o campo de incidência do ISS, adaptando a lista anexa de serviços à realidade atual [3].
Em segundo lugar, outra saída que se visualiza é a criação um tributo específico para bens digitais (incluindo os disponibilizados via streaming), por meio da competência residual da União para instituir impostos (artigo 154, I, da Constituição Federal), dirimindo a insegurança jurídica que rodeia as atividades econômicas envolvendo tal sorte de serviço.
Para os que adotam essa corrente, as bases tributárias atuais não estão aptas a tributar a mercancia dos bens digitais, seja pelo ISS, seja pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Isso porque a cessão do direito de uso de bens digitais, notadamente por meio de streaming, não configuraria prestação de serviço ou operação de circulação de mercadoria, diante da inexistência de obrigação de fazer e da inocorrência de transmissão de titularidade do bem [4].
Assim, é diante da irrelevância tributária da comercialização da cessão de direito de uso de bens digitais (não incidência do fato gerador de nenhum imposto) que também tem se defendido a criação de um imposto para essa atividade, instituído pela competência residual da União, desde que seja não-cumulativo e não tenha fato gerador ou base de cálculo próprios daqueles discriminados na Constituição Federal.
Em terceiro lugar, numa conjectura mais complexa, no bojo da tão discutida reforma tributária, se almeja a criação de um único imposto incidente sobre a operação de circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de qualquer natureza.
Na Proposta de Emenda à Constituição para a Reforma Tributária (PEC 293/04), que está tramitando em comissão especial na Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Luiz Carlos Hauly, propõe-se a criação do Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), nos moldes de um imposto sobre valor agregado, que viria a substituir uma gama diversa de tributos, dentre eles o ISS e o ICMS [5].
A criação de um imposto único para a circulação de mercadorias e para a prestação de serviços, impreterivelmente incluindo as cessões de direito de uso, conferiria salutar segurança jurídica à tributação dos conteúdos disponibilizados via streaming, encerrando, à primeira vista, as discussões que ora envolvem essa atividade.
Contudo, há de se considerar que a demora na tramitação da já antiga PEC 293/04, de conteúdo tão delicado e permeado de interesses de diversas esferas da sociedade, pode tornar necessária a opção por outras alternativas para a solução das questões tecnológicas no âmbito do direito, que demandam agilidade.
A tributação da nova economia nos oportuniza repensar as bases tributárias existentes. A tributação dos serviços de streaming é apenas uma faceta da multiplicidade de assuntos que estão envoltos no direito da tecnologia.
Na batizada Quarta Revolução Industrial, nascedouro de relações socioeconômicas inéditas, cabe ao Estado e à sociedade civil organizada travarem discussões para que o desenvolvimento de novas tecnologias acompanhe e respeite a dimensão da Justiça Tributária – e vice-versa.
Afinal, se é dito que a morte e os impostos são as duas únicas certezas da vida, cabe a nós, por ora, ajustarmos a segunda ao nosso novo modo de viver.
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[1] SCHWAB, Klaus. The Fourth Industrial Revolution. New York: Crown Business, 2016.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 774-775.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 651.703. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 29/09/2016. Publicado no DJe em 26/04/2017.
[4] VALLE, Maurício Dalri Timm do; LEONART, Vinicius Felipe Caimi. Sobre a incidência do ISS e ICMS sobre streaming. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 15, n. 87, maio/jun. 2017. Disponível em: &lt;<a href="http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=247571">http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=247571</a>&gt;. Acesso em: 25 jul. 2018.
[5] Um resumo da PEC 293/04, do site da Câmara dos Deputados, pode ser visualizado no seguinte link,: <a href="http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/reforma-tributaria/documentos/outros-documentos/22.08.17ResumodaReformaTributria.pdf">http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/reforma-tributaria/documentos/outros-documentos/22.08.17ResumodaReformaTributria.pdf</a>.

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Desenvolvimento tecnológico demanda a criação de novas soluções tributárias


O streaming e a tributação 4.0

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