Marcella Leite

Franz Kafka traz consigo uma percepção de poder que se manifesta a partir da burocracia. Estes elementos de dominação normalmente se confundem e se associam à dificuldade de conferir coerência aos procedimentos impostos àqueles que se submetem ao sistema.
Na obra “O Castelo” escrita em 1922<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o autor torna clara a hegemonia exercida pelo castelo sobre os aldeões, traduzida especialmente por um vazio burocrático que passa a influenciar a vida de K., o agrimensor que chega ao vilarejo para exercer seu trabalho cujos detalhes a respeito eram desconhecidos.
K. passa toda a narrativa em busca de respostas, sendo aprisionado pela inacessibilidade ao castelo e seus representantes, ficando a mercê da valorização extrema dos condicionados meios processuais, os quais se afastavam de seus próprios fins.
O romance termina inconclusivo, mas não deixa a menor dúvida sobre o quanto o castelo era impenetrável e nunca atingia a meta proposta.
A condição de vulnerabilidade de K. e a inacessibilidade do castelo são elementos facilmente associáveis aos recorrentes que incessantemente pretendem uma resposta do Superior Tribunal de Justiça, mas têm suas pretensões descartadas pelo apego excessivo ao formalismo.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
No meio jurídico comumente se ouve comentários a respeito da prática denominada ‘’jurisprudência defensiva’’, que tem como intuito impedir o conhecimento de recursos e, por consequência, a análise do mérito, mediante o uso da formalidade em relação aos pressupostos da admissibilidade recursal.
Não há dúvidas de que, para o conhecimento de um recurso perante o Superior Tribunal de Justiça, alguns bons agravos internos serão interpostos na genuína tentativa de garantir a superação do juízo de admissibilidade, até mesmo naqueles casos em que o advogado se utiliza de toda a técnica jurídica necessária a ser depreendida em sua realização.
Muitas vezes, a demonstração de atendimentos aos requisitos impostos demanda severa interpretação sistemática e teleológica da norma processual, ultrapassando as limitadas disposições gramaticais do texto. Apesar disso, não se estranha quando os elementos textuais são isoladamente empregados pelo Tribunal, principalmente na ocasião em que se mostram convenientes a tornar inadmissível o recurso, em detrimento de princípios que garantem ao jurisdicionado o julgamento meritório.
<blockquote class="jota-article__eye">A intenção, por certo, é barrar desde logo o andamento do recurso no âmbito superior e, para isso, os mecanismos usados frequentemente evidenciam a falta de critérios objetivos no sistema jurídico que harmonizam o entendimento aplicado na prática defensiva pela Corte Superior.</blockquote>
A título de exemplo, sabe-se que num primeiro juízo de admissibilidade que deixou de conhecer o Agravo ou Recurso Especial, interposto agravo interno contra esta decisão, pode ocorrer posteriormente a retração pelo julgador. O que não se sabe é quando esta impiedosa etapa inicial terá fim, se, mesmo com o juízo de retração, for proferida posteriormente uma nova decisão impedindo o seguimento do recurso com base em um novo óbice, deparando-se o recorrente com julgamentos fragmentados.
Em que pese a possibilidade de manejo de um novo agravo interno, os juízos de admissibilidade realizados de forma fracionada provocam grave ofensa à normas fundamentais do processo civil que promovem a constitucionalização do processo, notadamente a celeridade processual, a razoável duração do processo, a primazia pela solução de mérito e a própria segurança jurídica.
A prática se aproxima drasticamente da ótica kafkiana através da grande barreira de acesso e agonia vivenciada por K. na obra O Castelo, cujo sentimento de impotência perante um sistema maior não tem fim.
<blockquote class="jota-article__eye">Por mais que o jurisdicionado se proponha a agir até que ocorra o esgotamento das vias recursais, muitas vezes ele não sai do lugar e, quando muito, as coisas avançam lentamente, como é o caso de um empecilho superado enquanto um novo é imposto.</blockquote>
Apesar de o inciso LXXVIII do art. 5º<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> da Carta Magna garantir a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, a garantia fundamental habitualmente não goza de satisfatoriedade.
Nem mesmo a repetição trazida pelo art. 4º<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”, é capaz de assegurar o direito do recorrente perante o tribunal superior.
O direito à prestação jurisdicional em prazo razoável é uma exigência da tutela jurisdicional efetiva. A demora no julgamento cria uma instabilidade na situação jurídica das partes, incompatível com a noção de segurança jurídica exigível em toda sociedade democrática.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Tornar o jurisdicionado desmotivado a recorrer à esfera recursal, a partir de critérios inconsistentes e intangíveis, vai de encontro aos princípios corolários do Estado Democrático de Direito e contraria a própria segurança jurídica.
A despeito da viabilidade de novo recurso, a ofensa das normas fundamentais do processo civil que consagram as garantias constitucionais, impede o avanço progressivo da relação processual e o alcance do ideal de segurança.
A mesma necessidade de estabilização e coerência da jurisprudência para criar uma previsibilidade de conduta que enseja expectativa legítima, torna necessário um único juízo de admissibilidade, com o propósito de prestigiar a segurança jurídica e, por conseguinte, as normas processuais que resguardam o julgamento do mérito.
A indefinição dos procedimentos não deve se igualar ao romance Kafkiano, onde a figura de poder se mantém imune e impenetrável às reiteradas tentativas de acesso e respostas que não alcançam o objetivo precípuo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> KAFKA, Franz. O castelo; tradução Deborah Stafussi. Editora Novo Século, 2017.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CF/88. Art. 5º, inciso LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CPC/2015. Art. 4º - As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005.

Franz_Kafka_from_National_Library_Israel

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JOTA

A inacessibilidade da Corte Superior perpetuada pelos juízos de admissibilidade em analogia ao Castelo de Franz Kafka

O STJ e o castelo kafkiano

A inacessibilidade da Corte Superior perpetuada pelos juízos de admissibilidade em analogia ao Castelo de Franz Kafka