Cláudio Barbosa

Izabela Lemes

Quase 25 anos após a edição da Lei Brasileira de Arbitragem (Lei 9.307/1996), uma das questões mais discutidas pela jurisprudência nacional ainda é a arbitrabilidade (possibilidade de submissão ao procedimento arbitral) das controvérsias que envolvem a Administração Pública.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a União não se submete à cláusula compromissória prevista no estatuto social da Petrobras, em pese sua posição de acionista controladora, tendo em vista a ausência de arbitrabilidade subjetiva e objetiva.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Essa decisão põe em perspectiva o tratamento dado por essa Corte a alguns institutos importantes da teoria arbitral, como por exemplo, a própria noção de arbitrabilidade subjetiva e objetiva, bem como o princípio da competência-competência.
Nesse contexto, o propósito do presente artigo é examinar a decisão do STJ em sede do Conflito de Competência 151.130/SP[1] à luz das categorias-chave da teoria arbitral que permearam a controvérsia.
Desde já se ressalta que o processo em referência tramita em segredo de justiça, de modo que a análise se restringirá às informações públicas presentes nos votos publicados pelo STJ. Além disso, destaca-se que, por essa razão, este artigo não se debruçará sobre a controvérsia societária de fundo, que envolve a União, a Petrobras e seus acionistas minoritários.
A controvérsia em exame inicia-se em meados de 2016 por um grupo de acionistas minoritários que requereu a instauração de procedimento arbitral na Câmara de Arbitragem do Mercado, CAM-Bovespa, em face da Petrobras e da União, com o escopo de obter indenização decorrente da desvalorização de suas ações, devido aos desdobramentos extremamente negativos da Operação Lava Jato.
Para os Requerentes, seria indubitável a submissão da acionista controladora, a União, à cláusula compromissória prevista no art. 58[2] do Estatuto Social da Petrobras, a qual estabelece a arbitrabilidade das controvérsias que envolvam a companhia e seus acionistas, tendo como objeto a aplicação das disposições contidas na Lei 6.404/1976 (Lei de Sociedades Anônimas), no próprio estatuto e em outras normas aplicáveis ao mercado de capitais.
Em resposta ao requerimento de arbitragem, porém, a União foi contrária à sua inclusão no procedimento, sob o fundamento de que não haveria previsão legal para que a Administração Pública participasse de procedimentos arbitrais quando da votação do Estatuto Social da Petrobras (arbitrabilidade subjetiva), bem como que o pleito indenizatório ultrapassaria a matéria arbitrável conforme estabelecida na cláusula compromissória (arbitrabilidade objetiva).
Rejeitadas as alegações da União pelo Presidente da CAM-Bovespa[3], esta ajuizou ação com pedido de antecipação de tutela para requerer a declaração da inexistência da relação jurídica ali tratada, excluindo-a do procedimento arbitral.
Neste cenário, os acionistas instauraram conflito de competência em que alegam a prevalência do Juízo arbitral e a proibição de controle apriorístico de tal atividade pelo Poder Judiciário (princípio da competência-competência).
Em resposta, a União alegou que se trata de pessoa jurídica de direito público, cuja manifestação de vontade está condicionada ao princípio da legalidade. Logo, são flagrantemente ilegais os eventuais atos praticados desprovidos de disposição expressa (arbitrabilidade objetiva e subjetiva).
Em julgamento no STJ, a tese que se sagrou vencedora (min. Luis Felipe Salomão) se assentou no sentido das alegações da União, na medida em que, apesar de inquestionável a adoção de arbitragem pela Administração pública direta e indireta, promovida pela edição da Lei nº 13.129/2015, não há arbitrabilidade subjetiva ou objetiva – restando vencida a relatora, min. Nancy Andrighi.
O julgado em referência suscita questões importantes sobre o controle da competência do Tribunal Arbitral, tendo em vista a arbitrabilidade da matéria, no âmbito do Poder Judiciário, sobretudo no que concerne à submissão da Administração Pública ao procedimento arbitral.
Entre essas questões, destaca-se, inicialmente, a competência do Tribunal Arbitral sob a ótica do princípio da competência-competência (também conhecido como kompetenz-kompetenz ou “power of the arbitral tribunal to investigate its own jurisdiction”) e sua interpretação pelo Poder Judiciário.
Segundo Carlos Alberto Carmona, o princípio da competência-competência estabelece que cabe ao árbitro decidir sobre a arbitrabilidade da controvérsia que lhe foi submetida (art. 8º, parágrafo único da Lei da Lei Brasileira de Arbitragem)[4].
Esse princípio representa um dos principais mecanismos em favor da autonomia do juízo arbitral, uma vez que se coubesse à jurisdição estatal se pronunciar sobre a competência do Tribunal Arbitral antes dele próprio, toda arbitragem poderia ser imediatamente questionada perante o Poder Judiciário, medida que poderia ser facilmente utilizada apenas para retardar o procedimento arbitral.
Por evidente, entretanto, a decisão do Tribunal Arbitral que reconhece sua própria competência não vincula o Poder Judiciário, o qual poderá entender pela ausência de arbitrabilidade da controvérsia ao apreciar ação de declaração de nulidade de sentença arbitral (art. 20, §§ 1º e 2º c/c art. 33 da Lei Brasileira de Arbitragem) após o término daquele procedimento.
A jurisprudência do STJ reconhece o princípio da competência-competência e o aplica em suas decisões[5]. Essa Corte, porém, também entende que caso a nulidade da cláusula arbitral seja evidente, e a incompetência do Juízo Arbitral possa ser constatada prima facie, o Poder Judiciário pode intervir e decidir pela nulidade da cláusula antes mesmo dos árbitros.
No mesmo sentido, de acordo com o voto da rel. min. Nancy Andrighi no caso examinado neste artigo, as cláusulas arbitrais claramente ilegais são denominadas “cláusulas patológicas”, podendo ser declaradas nulas pelo Poder Judiciário independente do estado em que se encontra o procedimento arbitral. Os demais julgadores do caso partilharam dessa premissa – ainda que com nomenclatura distinta.
Ocorre que a jurisprudência do STJ ainda não estabeleceu um critério definido para distinguir situações em que a nulidade da cláusula arbitral pode ser verdadeiramente constatada a prima facie, de situações em que há uma controvérsia jurídica razoável acerca da validade da cláusula.
No caso em análise, muito embora a discussão sobre a arbitrabilidade da controvérsia limitasse a questões de direito, existem argumentos jurídicos convincentes para defender tanto a submissão como a não submissão da União ao procedimento arbitral – tanto que a decisão foi tomada por maioria mínima.
<blockquote class="jota-article__eye">Em casos como esse, se se deseja incentivar o uso da arbitragem como um meio adequado de resolução de conflitos, pode ser mais prudente prestigiar o princípio da competência-competência.</blockquote>
Como visto, essa medida não impediria a análise posterior do Poder Judiciário em sede de ação declaratória de nulidade de sentença arbitral, na qual a análise não precisaria ser prima facie.
Superada a questão do princípio da competência-competência, importa examinar a arbitrabilidade da controvérsia em suas modalidades subjetiva e objetiva.
Lembre-se que o procedimento arbitral foi instaurado por requerimento apresentado por acionistas minoritários em face da Petrobras e da União (acionista controladora), objetivando a concessão de indenização material decorrente da desvalorização de suas ações, devido aos desdobramentos da Operação Lava Jato.
É nesse contexto que se inserem os argumentos da União de que a controvérsia careceria de arbitrabilidade subjetiva e objetiva. Passa-se, assim, a analisar esses dois aspectos.
Segundo Joaquim Muniz, expoente arbitralista e teórico na área, a arbitrabilidade subjetiva consiste nos limites subjetivos da arbitragem, ou seja: quais entes podem se submeter a esse meio de resolução de controvérsias.
Tendo em vista essa premissa, a União argumenta que não poderia se submeter a arbitragem, uma que na época na qual a cláusula compromissória estatutária foi pactuada, não havia previsão legal específica para que a Administração Pública direta integrasse arbitragem na condição de acionista.
É dizer, sob essa perspectiva, que a União jamais teria consentido com a arbitragem, uma vez que a previsão legal para tanto só surgiu em 2015, com a edição da Lei 13.129/2015 ou seja, 13 anos depois do pacto assemblear que deu origem ao Estatuto Social da Petrobras.
É nesse ponto que surge a primeira divergência de entendimento entre os ministros do STJ. A relatora, min. Nancy Andrighi, com esteio na jurisprudência do próprio STJ, consignou que mesmo antes da vigência da Lei 13.129/2015 a Administração Pública já podia integrar causas submetidas a arbitragem.
Isso porque muito embora inexistisse previsão legal geral, a qual realmente só surgiu com a Lei 13.129/2015, muitas outras normas já permitiam que a administração se submetesse a arbitragem em hipóteses específicas.
O min. Luis Felipe Salomão, entretanto, apresentou voto divergente. Entendeu o ministro que seria necessário previsão legal específica para que a Administração Pública participasse de procedimentos arbitrais societários na condição de acionista controladora, uma vez que a manifestação de vontade dos entes administrativos depende do que a Lei permite, em razão do princípio da legalidade.
Não haveria o que falar, portanto, em manifestação de vontade da administração quanto ao estabelecimento da cláusula compromissória, de modo que faltaria a esta uma de suas condições de existência — qual seja: a manifestação de vontade.
No mesmo sentido entendeu o min. Marco Aurélio Belizze, o qual acompanhou o entendimento do min. Luis Felipe Salomão, acrescentando, ainda, o fundamento de que a manifestação de consentimento de ente da Administração Pública precisa ser expressa.
Já o segundo ponto de divergência entre os julgadores se relaciona à arbitrabilidade objetiva. Joaquim Muniz define o instituto pelos possíveis limites objetivos, isto é, quais matérias podem ser dirimidas pela via arbitral. Tal proposição se afina com o art. 1º da Lei Brasileira de Arbitragem, que fixa somente os direitos patrimoniais disponíveis como arbitráveis, os quais possuem valor econômico e são alienáveis.
No caso em questão, a maioria dos julgadores entendeu que o pleito dos acionistas não é abarcado pela cláusula compromissória. Isso porque, a causa de pedir remota, <a href="https://www.migalhas.com.br/coluna/processo-e-procedimento/249306/ainda-ha-muito-o-que-falar-sobre-causa-de-pedir" target="_blank" rel="noopener noreferrer">relação jurídica de direito material</a>, diz respeito à responsabilidade civil da União pelos danos decorrentes de atos praticados pela Petrobras, circunstância que extrapolaria o escopo da cláusula em análise, a qual abarcaria apenas conflitos estritamente societários.
Esse é o teor dos votos dos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, que se posicionaram no sentido da não submissão da União à cláusula, por ausência de arbitrabilidade objetiva e subjetiva, bem como da prevalência do Juízo Federal em relação ao arbitral.
Por outro lado, a relatora min. Nancy Andrighi, que foi vencida, entendeu que há arbitrabilidade objetiva, uma vez que o objeto do conflito possui caráter disponível, porquanto trata-se de indenização dos prejuízos sofridos pelos acionistas da Petrobras em decorrência da acentuada perda de valor das ações de que são titulares.
Ao fim e ao cabo, ambos os entendimentos relativos à presença, ou não, de arbitrabilidade apresentam argumentos relevantes. Não se pretende, neste artigo, oferecer uma resposta definitiva, mas sim colocar essa importante controvérsia em perspectiva.
Conclui-se pela necessidade de acompanhamento futuro da controvérsia – seja em face de decisões futuras no caso análise (muito embora o processo esteja tramitando em segredo de justiça, não há notícia de trânsito em julgado) – seja em face de outras decisões, ou mesmo de contribuições doutrinárias sobre o tema. Fato é que a arbitrabilidade de controvérsias envolvendo a administração pública continua sendo uma das questões centrais da teoria arbitral no Brasil.
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[1] STJ, Segunda Seção, CC 151.130/SP, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe de 11.02.2020.
[2] Art. 58. Deverão ser resolvidas por meio de arbitragem, obedecidas as regras previstas pela Câmara de Arbitragem do Mercado, as disputas ou controvérsias que envolvam a Companhia, seus acionistas, os administradores e conselheiros fiscais, tendo por objeto a aplicação das disposições contidas na Lei nº 6.404, de 1976, neste Estatuto Social, nas normas editadas pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de de Valores Mobiliários, bem como as demais normas aplicáveis ao funcionamento do mercado de capitais em geral, além daquelas constantes dos contratos eventualmente celebrados pela Petrobras com bolsa de valores ou entidade mantenedora de mercado de balcão organizado, credenciada na Comissão de Valores Mobiliários, tendo por objetivo a adoção de padrões de governança societária fixados por estas entidades, e dos respectivos regulamentos de práticas diferenciadas de governança corporativa, se for o caso”.
[3] Segundo o item 2.2.3 do Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado, cabe ao Presidente da Câmara avaliar prima facie a submissão da controvérsia ao Tribunal Arbitral, ao qual cabe decidir definitivamente, após sua regular instauração, sobre a arbitrabilidade da questão.
[4] CARMONA, p. 175.
[5] Ver: REsp 1598220/RN, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 01.07.2019.<a href="#_ednref1" name="_edn1"></a>

Petrobras

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JOTA

Órgão decidiu que a União não se submete à cláusula compromissória prevista no estatuto social da Petrobras

O STJ e a arbitrabilidade de controvérsias que envolvem a Administração Pública

Órgão decidiu que a União não se submete à cláusula compromissória prevista no estatuto social da Petrobras