Filipe Natal De Gaspari

Corram os olhos pelos manuais de direito constitucional. Pelos novos manuais, inclusive. Raras são as menções ao passado do STF. A impressão que dá ao lê-los é que o Supremo é uma instituição nova, que apenas ganhou relevância depois de 1988, com a reconstitucionalização. Esse é um equívoco. O STF tem história. Mas o que está na base dessa falsa percepção do passado da mais importante Corte do país? Que elementos podemos apresentar, para começo de conversa, a fim de desmistificar uma visão simplificadora da história do Supremo?
O que leva constitucionalistas brasileiros a supor que o STF não tem uma história relevante anterior à reconstitucionalização de 1988 é o fato de o passado brasileiro ter sido marcado por momentos e períodos notoriamente autoritários. É comum supor-se que Cortes Supremas exercem um papel meramente figurativo em regimes não democráticos. Logo, concluem precocemente alguns cientistas sociais, em cenário tão desfavorável, o STF não teria tido passado relevante – caso encerrado.
Não há dúvida de que a história constitucional brasileira é, em boa medida, autoritária. Governo Provisório (1930-1934), Estado Novo (1937-1945), Ditadura Militar (1964-1985), para não mencionar diversos momentos durante a Primeira República, como a reforma constitucional de 1926 à Constituição de 1891, fazem prova do nosso terrível passado autoritário. Porém isso, por si só, não autoriza supor que o STF tenha funcionado, nesses períodos, pura e simplesmente como “carimbador” das decisões dos regimes autoritários que se sucederam em nosso passado.
Em primeiro lugar, devemos considerar o fato de o STF, desde a sua criação em 1890, jamais ter sido dissolvido. A Corte sofreu interferências, a exemplo do Decreto nº 19.711, de 1931, durante o Governo Provisório varguista, por meio do qual seis de seus ministros foram aposentados compulsoriamente. Porém, enquanto instituição, dotado de maiores ou menores poderes a depender das nuanças políticas de nosso passado, o STF manteve-se na cena republicana como instância relevante de interpretação do direito brasileiro.
Permanente, o STF se transformou num importante receptáculo das imagens que compõem a história política republicana. Dito de outro modo, é possível conhecer a nossa história política por meio da história do STF – como veio demonstrar, por exemplo, Emília Viotti da Costa em seu livro STF: o Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania e Felipe Recondo, em seu Tanques e Togas: o STF e a Ditadura Militar.
A propósito, conhecer a história constitucional brasileira pelo ângulo da história da Corte permite não apenas que compreendamos o papel do próprio STF como vetor de interpretação e de construção histórica de nosso direito e de nossas instituições, mas também que nos inteiremos de tensões sociais que desaguaram na Corte em momentos políticos bastante sensíveis.
São exemplos dessas tendências o papel do Supremo na construção da doutrina do habeas corpus até 1926 e o julgamento de casos emblemáticos, tais como os pedidos de habeas corpus de Olga Benário e João Mangabeira ou de mandados de segurança, a exemplo dos casos da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e da União Feminina do Brasil (UFB), na década de 1930.
Cumpre notar, aliás, que esse papel não foi sempre positivo, no sentido de colaborar para a ampliação da esfera de proteção de direitos e garantias constitucionais dos cidadãos – o que não desmerece a relevância da análise de seu papel, visto que, em termos históricos, o antagonismo constitucional também é um fator de produção de importantes narrativas para compreensão da ordem constitucional de uma nação.
<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/regimes-autoritarios-reposicionamento-discussao-fundamental-03102020">Como já observei em outro artigo aqui no Jota</a>, regimes autoritários no Brasil – como costuma também acontecer em outros contextos – tenderam a conferir a suas ações uma roupagem jurídica. Nesses cenários, o STF se transformou, por sua vez, em uma conflituosa arena que justapôs a sua missão institucional de proteger direitos e garantias constitucionais à necessidade política de incluir em seu processo decisório referências a uma esfera de legalidade autoritária. Trata-se, portanto, de um campo fértil para as mais diversas incursões dos cientistas sociais. Levar tais investigações adiante é fundamental para que se conheça melhor o nosso direito e a nossa história política.

plenario supremo stf

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JOTA

Devemos levar a sério a história do Supremo Tribunal Federal