Saul Tourinho Leal

O constitucionalismo contemporâneo fez da jurisdição constitucional um palco de encontros inadiáveis. O instituto da reclamação, com as inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, convida o STF a um desses encontros.
Ao final do ano de 2015, Patrícia Perrone, em artigo seminal, anteviu o amanhã. Ela disse: <a href="http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/viewFile/3596/2842">“A se manter a redação do CPC/2015 tal como se encontra hoje, o STF precisará repensar a eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão”</a>. Falava do inevitável encontro entre a Suprema Corte e o artigo 988, § 4o do NCPC, que, alterando o quadro normativo, conferiu à reclamação a missão de noticiar ao STF a aplicação indevida da “tese jurídica”, ou a sua não aplicação, nos casos julgados pelo controle concentrado de constitucionalidade. 
O dispositivo saneou uma lacuna normativa que fazia com que a Suprema Corte ficasse, em algumas circunstâncias, hesitante em aplicar o que se chama de teoria da transcendência dos motivos determinantes. Agora, é o NCPC que traz a medida, por meio de um dispositivo existente, válido e eficaz.
Trata-se do estado da arte na cultura de fortificação dos precedentes no Brasil. Seria a exaltação à “importância da certeza, da previsibilidade e do respeito às expectativas estabelecidas”, nas palavras de Jeremy Waldrom.
São conhecidos os efeitos da decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Ela impõe a observância obrigatória pelos órgãos judiciais inferiores e administrativos. Segundo o Ministro Teori Zavascki: “o Efeito Vinculante confere ao julgado uma força obrigatória qualificada, com a conseqüência processual de assegurar, em caso de recalcitrância dos destinatários, a utilização de um mecanismo executivo - a reclamação - para impor o seu cumprimento” (A Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, 2001).
A reflexão acima nos convida a enxergar a reclamação como um instrumento legítimo dotado da missão constitucional (art. 102, I, “i” da CF/88) de levar ao STF a notícia do desrespeito da “tese jurídica” firmada pela Corte com eficácia vinculante num precedente que define a ratio decidendi, ou seja, a premissa fundamental e comum a todos os votos vencedores sem a qual o resultado do julgamento seria diverso daquele operado no caso concreto. É o que o NCPC muito corretamente chama de “tese jurídica”, mais ampla que o mero dispositivo.
Há muitas virtudes no artigo 988, § 4o do NCPC. Para ilustrar, vale lembrar do célebre precedente Brown v. Board of Education of Topeka, da Suprema Corte norte-americana, de 1954. Nele, o pai da garotinha Linda Brown, de 7 anos, pedia a declaração de inconstitucionalidade da política pública do Estado de Topeka que estabelecia a segregação racial nas escolas.
Dois anos depois, a Suprema Corte apreciou o caso Browder v. Gayle. A ativista negra Rosa Parks havia sido presa por negar ceder seu assento no ônibus. Pela norma em Montgomery, no Alabama, negros deveriam se levantar e ceder seus lugares quando brancos não tivessem assentos. O caso chegou à Suprema Corte, que, aproveitando a tese jurídica do caso Brown, declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nos transportes coletivos do Alabama.
No Brasil, o artigo 988, § 4o do NCPC possibilitaria que esse precedente fosse firmado por meio de uma reclamação. Todavia, se se insistir no modelo passado que esvaziava esse poderoso instrumento, Rosa Parks não seria bem-vinda na mais alta corte de justiça. Isso porque, como o seu caso tratou de um ônibus, e não de uma escola; e como cuidou de uma política do Alabama, e não de Topeka, não seria possível estender a tese jurídica de um julgamento ao outro por meio da reclamação. Esse entendimento é de fato muito bom para conter o número de reclamações ajuizadas na Suprema Corte. Mas pensar assim não seria demasiadamente cruel com Rosa Parks e sua causa?
Supremas Cortes de todo o mundo firmam teses jurídicas. Não há nada de errado nisso. Muitas vezes as violações a direitos reconhecidas com base em fatos e legislações firmam teses que se repetem em outros fatos e, também, em outras legislações. Chega a ser estranho imaginar uma suprema corte que não firme princípios de justiça, de certeza e de equidade. Ainda mais em precedentes vinculantes muitas vezes reiterados no julgamento de recursos extraordinários com repercussão geral. O NCPC entregou à reclamação a missão de corrigir essas distorções nascidas de uma cultura de individualismos insistentes.
Abrir-se ao artigo 988, § 4o do NCPC é a maneira de, usando uma expressão de Bruce Ackerman, permitir “um novo começo” na jornada brasileira de respeito aos precedentes vinculantes do STF. É a jurisdição constitucional, mais uma vez, sendo palco de encontros inadiáveis.
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Saul Tourinho Leal é advogado sênior do escritório Pinheiro Neto em Brasília e doutor em direito constitucional pela PUC/SP. Foi premiado com a bolsa Vice-Chancellor Fellowship pela Universidade de Pretória, para realizar estudos de pós-doutoramento junto ao ICLA, Institute of Comparative Law in Africa. Saul foi clerk do juiz Edwin Cameron, na Corte Constitucional sul-africana e presidiu o Comitê para Relações com a África do Sul, do Conselho Federal da OAB, que lhe outorgou o Troféu de Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. É tradutor das obras do jurista Albie Sachs, indicado por Nelson Mandela para a Corte Constitucional.

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