Wallace Corbo

Ana Carolina Soares

João Arantes

No julgamento do HC 208.240, o Supremo Tribunal Federal (STF) discute um dos mais relevantes desdobramentos do racismo estrutural brasileiro em relação à atividade policial. A questão jurídica posta diz respeito à validade das provas obtidas a partir de abordagem policial que tem como base, entre outros, a raça dos indivíduos sujeitos à revista.
Consta dos autos do habeas corpus que policiais entenderam haver fundada suspeita de prática de crime em razão de o paciente ser uma pessoa “de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas”. Com a abordagem, apreenderam 1,53 gramas de cocaína com o paciente, culminando em uma condenação de 7 anos, 11 meses e 8 dias em reclusão, além de multa.
Para o relator, o ministro Edson Fachin, a referência à negritude do paciente é suficiente para confirmar que houve perfilamento racial no caso, gerando a consequente nulidade de todas as provas obtidas a partir disto e conduzindo ao trancamento da ação penal. Não foi o que concluiu a divergência: os votos dos ministros André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli apontam que, ainda que o racismo seja um fenômeno intolerável e que deve ser combatido, não haveria indícios de perfilamento racial no caso porque outros elementos, além da raça, convalidariam a abordagem realizada pela polícia.
No cerne da discussão encontra-se o conceito de “fundada suspeita” insculpido no art. 240, §2º, e no art. 244 do Código de Processo Penal. Diante da impossibilidade de se prever todas as situações concretas em que a abordagem policial estaria justificada, a escolha legislativa foi por guiar a atividade policial ou judicial a partir de um conceito jurídico indeterminado, cujo preenchimento envolve algum grau de discricionariedade. No Estado democrático de Direito, no entanto, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Assim, entende-se a fundada suspeita como uma “ação” ou “omissão” prévia da pessoa abordada, ou seja, algo concreto e anterior que enseje uma desconfiança do agente policial quanto à posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito. Para impedir arbitrariedades, estão excluídas do conceito, ainda, a mera “intuição”, “impressões subjetivas” ou “aparências ou suspeitas genéricas” que possam ser apresentadas pelo agente de segurança.
No contexto de uma sociedade marcada pelo racismo, estes parâmetros de racionalidade e de limite à discricionariedade encontram uma justificação adicional. Ao impedir uma busca arbitrária, baseada em uma “intuição” ou na aparência de uma pessoa, proíbe-se que o agente policial dê vazão a preconceitos e estereótipos racistas reiteradamente disseminados e compartilhados por indivíduos dessa sociedade.
Nesse sentido, qualquer interpretação ou leitura sobre o termo “fundada suspeita” deve levar em consideração o racismo que estrutura a sociedade brasileira. Não é coincidência que as buscas pessoais se concentrem, em sua maioria, em pessoas negras, consideradas genericamente como “criminosas em potencial”. Isto restou claro nos autos do HC 208.240 porque, como é raro acontecer, a negritude do paciente foi explicitada como um dos elementos caracterizadores da “cena típica de tráfico de drogas”.
O que a divergência no HC 208.240 propõe, contudo, é que a existência de outros elementos – além da raça – poderia de alguma forma convalidar a busca pessoal e as provas dela decorrentes. Não há como se concordar com esta conclusão.
Em primeiro lugar, porque a divergência deixa de considerar o fenômeno da discriminação indireta que perpassa os outros elementos – mais comuns de serem explicitados – que fundamentam as abordagens policiais discriminatórias. O que é, afinal, uma “cena típica de tráfico de drogas”?
Como no caso do habeas corpus julgado pelo STF, um dos elementos selecionados para configurar tal cena típica é o local em que se desenvolvem as condutas suspeitas. Local que, sem surpreender, é invariavelmente uma região periférica de municípios brasileiros. Mesmo que excluído o elemento racial, o racismo ressurge, então, na forma de discriminação geográfica: ao tomar como suspeita não a pessoa negra, mas o lugar em que ela vive e transita predominantemente (periferias), legitima-se toda forma de busca arbitrária. Sem mencionar a cor de pele, então, a jurisprudência convalida uma interpretação que gera impacto desproporcional sobre vidas negras; vidas que podem ser (e são) interrompidas a todo e qualquer tempo pelas autoridades policiais pelo simples fato de existirem nos territórios que ocupam.
Em segundo lugar, a divergência parece desconsiderar as consequências de um julgamento que considere válidas as provas obtidas em busca policial baseada na raça e em outros elementos indiretamente discriminatórios do paciente. Os dados apontam que “<a href="https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/negros-correspondem-a-63-das-pessoas-abordadas-por-policiais-no-rio-de-janeiro/">mais de um quinto das pessoas negras já foram abordadas mais de 10 vezes pela polícia, só no Rio de Janeiro</a>”. Quantas, entre estas, se tornam mais um <a href="https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/10/justica-do-rj-absolve-musico-que-foi-preso-por-engano-por-assalto-a-mao-armada.ghtml">violoncelista inocente preso em razão de práticas arbitrárias?</a> A mensagem que o STF transmitiria à sociedade ao deixar de conceder a ordem no HC 208.240 seria a de que tudo isso é admissível. Seria a mensagem de que apreender 1,53 g de cocaína justifica interromper, todos os dias, a vida de milhares de brasileiros negros – estudantes, trabalhadores, cidadãos. A mensagem transmitida seria a de que são justificáveis os diversos impactos sociais e psicológicos negativos que pessoas negras sofrem por serem tratadas como suspeitos naturais, inimigos constantes da sociedade.
Nos últimos anos, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem se desenvolvendo uma jurisprudência processual penal que tenta mudar essa mensagem. Buscando coibir abusos profundamente entranhados na práxis de nossas polícias, com impacto desproporcional sobre a população negra e pobre no Brasil, aquele Tribunal Superior tem encontrado instrumento eficaz nos regimes de nulidades e ilicitude probatória, dentre cujas finalidades se destaca justamente a de compelir os atores do sistema de Justiça criminal a atuarem estritamente de acordo com o modelo legal e constitucional<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Exemplo recente disso é a exigência da devida observância às regras prescritas pelo art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas ou a atenuação dos obstáculos ainda hoje recorrentemente levantados para a configuração de delito de tráfico de drogas em sua forma privilegiada.
Longe de impedir a regular atuação dos agentes de segurança, tais limitações correspondem a verdadeiros ganhos civilizatórios, capazes de aprimorar as práticas policiais e reduzir as sistemáticas violações de direitos praticadas contra pessoas negras. Poderá o Supremo contribuir para essa nova e adequada forma de avançar a história?
Não se propõe, aqui, que a definição dos parâmetros para a abordagem policial, em uma sociedade racista, seja matéria de fácil solução; mas é matéria que precisa ser enfrentada não apenas nas palavras, mas também na prática.
Nesse sentido, é de se indagar mesmo se a tese proposta pelo ministro Edson Fachin avança (e em que grau) o combate ao racismo institucional no sistema de justiça. Nos termos de seu voto, (i) “a busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ‘não sendo lícita a realização da medida com base na raça, cor da pele ou aparência física’” (grifos nossos); (ii) “a busca sem mandado judicial reclama urgência para a qual não se pode aguardar ordem judicial”; e (iii) “os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente justificados para ulterior controle pelo Poder Judiciário”.
Por um lado, tais parâmetros de fato reforçam o repúdio à normalização do critério racial como justificativa para as abordagens policiais. Há, neste sentido, ganho, especialmente quando associado à exigência de demonstração de critérios concretos e objetivos que justifiquem tais buscas pessoais. Por outro, é de se questionar se a consequência de tal tese não seria tão somente escamotear o uso do elemento racial que cotidianamente fundamenta tais abordagens, ainda que de maneira implícita.
É preciso, pois, proibir a menção à raça como justificativa para uma busca pessoal, esteja este critério associado ou não a outros supostamente neutros. Mas também é preciso ir além. Assim, no âmbito do próprio habeas corpus, o STF pode e deve considerar também o dever dos magistrados de determinarem, diante de indícios de que possa ter havido perfilamento racial em um caso, a imediata investigação acerca do possível abuso de autoridade (ou mesmo de crime de racismo, a depender das circunstâncias do caso concreto). Esta é a posição, por exemplo, do ministro do STJ Messod Azulay, que argumentou na sessão de julgamento do REsp 2.048.637/PR no sentido de que o Judiciário poderia remeter cópia dos autos ao Ministério Público para a apuração do delito de abuso de autoridade sempre que verifique ter havido busca pessoal não assentada em “fundada suspeita” (art. 40, CPP).
Assim, não encerrado o julgamento do HC 208.240, pode ainda o Supremo incorporar tais reflexões. Em um primeiro sentido, para efetivamente estabelecer uma presunção de perfilamento racial nos casos em que não estiverem presentes os requisitos concretos, objetivos, e prévios à busca pessoal. Em um segundo sentido, para impor, nestas hipóteses de abordagem infundada, a investigação da prática de atos criminosos tipificados pela Lei 13.869/19 (de abuso de autoridade), pela Lei 7.716/1989 (de discriminação racial ou racismo) ou por outro texto normativo.
Para além do habeas corpus, tampouco se pode ignorar que está diante do Supremo a possibilidade de conferir efetividade ao combate às revistas abusivas e racistas. Basta voltar a atenção para o que ocorre na ADPF 635, a chamada “ADPF das Favelas”, em que a corte determinou ao estado do Rio de Janeiro a instalação de câmeras em todo o efetivo policial fluminense. Como afirmado também no âmbito do STJ pelo ministro Rogério Schietti, o uso de câmeras pelos agentes de segurança pode “aprimorar o controle sobre a atividade policial (...) para coibir práticas ilegais”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> A determinação do STF resta, contudo, sistematicamente desrespeitada pelo estado do Rio de Janeiro, tornando letra morta qualquer orientação grandiloquente que proíba o abuso e a discriminação da polícia contra pessoas negras.
Que o Supremo repudie o racismo não é mais do que se espera de uma Suprema Corte em um Estado democrático de Direito. O repúdio por escrito, no entanto, significa muito pouco diante de uma prática condescendente com os abusos que geram a discriminação e a desigualdade racial. Passou a hora de falar, o momento é de fazer e de impor consequências graves às práticas inadmissíveis. Estará o Supremo Tribunal Federal pronto para fazê-lo?
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Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GRINOVER, Ada Pellegrini, et alli. As nulidades no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 19; e LOPES JR., Aury Lopes. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 443.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>RHC n. 158.580/BA, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.

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JOTA

Repudiar o racismo não basta: é preciso estabelecer proteções aos discriminados e consequências a quem discrimina

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