José Eduardo Faria

Ao declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto no estertor de 2022, sob a justificativa de que ele afronta os princípios da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na gestão pública previstos pelo artigo 37 da Constituição, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> restituiu as prerrogativas do Executivo em matéria de definição e execução do Orçamento Geral da União. Por mais que parte do Legislativo tenha ameaçado retaliar tenha ameaçado retaliar o Judiciário caso essa decisão fosse tomada, os ministros da mais alta corte do País a ignoraram e cumpriram seu papel.
A decisão do Supremo teve duas importantes implicações.  Em primeiro lugar, ela mostrou a atuação da Justiça em processos e atividades que, em outros tempos, eram reservadas ao Legislativo. Isso se deve à crescente complexidade da administração pública nestas últimas décadas e ao aumento do número do número de entidades habilitadas pela Constituição de 1988 a arguirem no Supremo a constitucionalidade das leis. Desde então, parte significativa das novas normas e leis já não surge mais de iniciativas legislativas, mas, isto sim, de processos de implementação e interpretação com origem no Executivo ou nos próprios tribunais. Daí a progressiva intervenção do Judiciário nos mecanismos políticos, administrativos e sociais, especialmente em matérias que envolvem definição de políticas públicas e preservação de direitos fundamentais.
Em segundo lugar, a derrubada do orçamento secreto pelo Supremo reforçou a legitimidade do Estado democrático de Direito, especialmente no que se refere aos seus mecanismos de controle da constitucionalidade das leis - seja no que se relaciona aos seus procedimentos de  votação e de aprovação de textos legais, seja no se refere ao seu conteúdo. A decisão da corte robusteceu uma cultura constitucional, por ter sido tomada em um contexto particularmente tenso, de final de um governo com vocação autocrática que não se reelegeu e em meio a manifestações golpistas e antidemocráticas. Em outras palavras, o exercício do controle da constitucionalidade das leis, por parte do Supremo, refletiu assim na própria realidade política, social e econômica em que atua, reforçando a segurança jurídica num momento de fortes apreensões no país.
Mais importante ainda, essa atuação também ocorreu num período histórico em que o conceito de lei e a própria noção de <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição</a> estão mudando em decorrência das transformações institucionais ocorridas na transição do século 20 para o século 21 – transformações essas que, ao acelerarem o processo de integração mundial dos mercados de bens, serviços e finanças levaram ao esgotamento de práticas políticas e legislativas  no âmbito de sociedades delimitadas e integradas territorialmente. Com a dissociação entre circunscrições territoriais e competências funcionais, o repertório clássico do debate democrático e da teoria do Estado, baseado no equilíbrio inercial dos Poderes, também mudou.
Por causa dessas transformações, as estruturas tradicionais do Estado de Direito passaram a receber demandas que não se encaixam no constitucionalismo forjado no século passado. Algumas obrigações públicas passaram a ter dificuldades para serem realizadas dentro dos limites institucionais clássicos. Como vem ocorrendo no resto do mundo, o próprio Estado brasileiro já não está mais em condições de agir de modo centralizador e de adotar decisões soberanas, uma vez que ele é apenas um ator entre outros atores. Se quiser ingressar e permanecer nos mercados globalizados, o Estado brasileiro tem de ser tão atrativo quanto outros Estados, o que reduz a margem de manobra dos legisladores nacionais. O tradicional papel do governo como prestador de serviços essenciais também ficou sobrecarregado, ao mesmo tempo em que suas receitas fiscais declinaram. A administração pública também vem dependendo cada vez mais de interações com organismos internacionais, supranacionais e multilaterais, bem como de saberes e de recursos financeiros compartilhados. Por fim, as próprias concepções de poder público como estrutura hierarquizada e capaz de promover intervenções diretas e  do sistema de freios e contrapesos forjados nos últimos dois séculos para assegurar o equilíbrio entre os poderes envelheceram.
Nesse contexto, o direito positivo vem deixando de ser um sistema normativo formal integrado por regras que orientam diretamente a conduta das pessoas físicas e jurídicas.  Nestas últimas décadas, ele passou a conter um crescente número de normas destinadas a regular o funcionamento das estruturas burocráticas de caráter público e semi-público e concebidas para perseguir objetivos e realizar valores sociais. Esse tipo de direito é baseado menos em critérios de racionalidade lógico-formal e mais em critérios de racionalidade substantiva ou material, ou seja, por valores e determinantes de índole  política, econômica e axiológica. Ao substituir o antigo modelo de direito de estruturas e formas baseado no princípio da legalidade por um modelo de direito de valores e princípios, os sistemas normativos agora contam com uma flexibilidade característica das formas contemporâneas de organização. A eficácia deste direito exige mecanismos de implementação e de aplicação  mais amplos e moldáveis, que permitam a adaptação de suas normas em contextos sociais e econômicos complexos e cambiantes.
Evidentemente, todas essas transformações atingiram o Judiciário brasileiro. Obrigado julgar novos tipos de litígios, a enfrentar novas demandas e a atender novas expectativas da sociedade, ele teve de rever seu modo de atuação. Pressionados a se adequarem às formas emergentes de racionalidade na economia, ao aumento da complexidade social e a uma ordem  jurídica cada vez menos prescritiva e cada vez mais voltada à expressão de fins, de objetivos e de diretrizes, os ministros do Supremo tiveram sua discricionariedade alargada. Com isso, era inevitável que a  presença institucional da corte na vida do país aumentasse. E se por um lado esse aumento deu maior visibilidade política a um Poder que por princípio é essencialmente técnico, por outro o levou a ser acusado – muitas vezes injustamente - de não deixar o  Executivo governar e de assumir prerrogativas  do Legislativo. Ou seja, de judicializar a política e de politizar a justiça, o que é sempre um perigo por envolver o risco de corrosão da segurança do direito.
Correta, necessária e oportuna, a declaração da inconstitucionalidade do orçamento secreto no final ano não se limitou, assim, à derrubada de um expediente imoral e corrosivo para a gestão responsável do dinheiro público criado pelo presidente da Câmara dos Deputados, em troca de apoio político a um presidente da República inepto e inconsequente. Seguido pela mudança regimental aprovada nos últimos dias de 2022 que valorizou o caráter colegiado do Supremo, esse julgamento foi muito mais importante do que parece. Além de restabelecer as prerrogativas do Executivo em matéria de definição e execução orçamentária, ele evidenciou o impacto no universo jurídico e judicial das mudanças que vêm ocorrendo nas três últimas décadas no Brasil e no mundo.

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JOTA

STF declara inconstitucionalidade do orçamento sob a justificativa de que ele afronta princípios constitucionais

O STF e o julgamento do orçamento secreto

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