Sergio André Rocha

Luiz Guilherme de Medeiros Ferreira

Há duas décadas um tema vem desafiando os tributaristas: a incidência ou não do ICMS e do ISS sobre o licenciamento ou cessão de uso de programas de computador, expressão utilizada aqui em sentido amplo, para nos referirmos a softwares utilizados em qualquer tipo de terminal (telefones, tablets, vídeo games, etc.).
Muitos vão lembrar que os primeiros passos neste debate foram dados em 1998, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Recurso Extraordinário no 176.626 (RE 176.626), fazendo a distinção que acabou se eternizando para além da vida do próprio modelo econômico em vigor naquela época, entre “software de prateleira” e “software customizado”.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Esta decisão marca o nascimento de alguns equívocos que sobreviveram até os dias atuais e que têm causado distorções que se refletem no debate a respeito da tributação do licenciamento de softwares pelo STF: a premissa de que há uma aproximação entre o licenciamento de um programa de computador customizado e a contratação de um prestador de serviços para a sua elaboração; e o entendimento de que, naquele caso, o Tribunal teria considerado constitucional a tributação da licença de softwares não customizados pelo ICMS.
Com efeito, no que se refere aos programas não customizados, o contrato celebrado entre o detentor do intangível e o consumidor final sempre foi um contrato de licença de uso. O meio físico era um estranho nessa relação, à espera de que a tecnologia o tornasse dispensável, como de fato aconteceu. Contudo, dentro da caixa de cada software, o que o consumidor encontrava: um contrato de adesão de licenciamento, ou seja, a cessão do direito de uso de um intangível.
Se deixarmos de lado as discussões adicionais geradas pela migração dos programas para a nuvem, em termos contratuais há pouca diferença entre o licenciamento de um software não customizado hoje, em 2020, e a mesma operação vinte anos atrás. Sempre se tratou de um licenciamento.
A diferença está mais na tecnologia, que se desprendeu do meio físico, e no período do licenciamento, que se flexibilizou para permitir modelos de contratação no formato “pay per use”,  onde a cessão do direito de uso se dá de forma temporária, enquanto subsistirem pagamentos mensais.
Desde esta decisão, o debate sobre a tributação de programas de computador se pautou por um angulo totalmente equivocado, partindo de duas premissas falsas: (i) a de que o software, quando materializado em um corpo mecânico, teria incidência de ICMS, com a desnaturação do aspecto intangível do objeto da cessão de uso do programa, cedendo espaço ao seu aspecto físico; e (ii) de que essa mesma cessão de uso estaria presente quando o contrato com o consumidor final tem um escopo de customização.
Seguindo esse equivocado raciocínio, concluir-se-ia que softwares “de prateleira”, disponibilizados por meio físico, seriam mercadorias sujeitas ao ICMS (obrigação de dar), e que no programa customizado se poderia tributar o licenciamento, eis que objeto de um serviço (obrigação de fazer)
Nada poderia ter sido mais errado. Esses dois equívocos, que o STF se encaminha agora para corrigir, pautaram os debates sobre a tributação de programas na tão equivocada quanto enfadonha dualidade entre obrigação de dar e obrigação de fazer.
Uma análise mais detalhada do RE 176.626 revela que o ponto controvertido naquela demanda era a incidência, ou não, de ICMS sobre licença de uso sobre softwares de prateleira.
A ação teve iniciativa do contribuinte, que buscou a declaração da inexistência de relação jurídica tributária de ICMS na cessão de uso de software. Naquela oportunidade o contribuinte saiu vencedor, prevalecendo o entendimento de que licença de software não está sujeita ao ICMS, sem distinção quanto ao programa ser ou não “de prateleira”, disponibilizado por meio físico.
Contudo, ao analisar o Recurso Extraordinário interposto pelo estado de São Paulo, o voto condutor do Ministro Sepúlveda Pertence acentuou que, não obstante a licença não pudesse ser sujeita a ICMS, o aspecto físico do programa poderia ser tributado pelo aludido imposto.
Assim, o resultado final do julgamento afastou a possibilidade de tributação de licenças pelo ICMS, fazendo-se o registro, porém, de que muito embora não fosse objeto dos autos a questão da tributação do meio físico, ou seja, da embalagem, a circulação desta poderia se sujeitar à incidência do imposto estadual.
O segundo erro que teve origem no RE 176.626 foi a premissa de que a customização do programa de computador seria manifestada por uma licença de uso.
<blockquote class="jota-article__eye">Esse realmente é um equívoco constante da decisão que fechou o raciocínio, descasado da realidade fática, de que no caso do software “de prateleira” a licença seria uma mercadoria, e que, no caso do programa customizado, a licença seria um serviço.</blockquote>
De fato, na contratação do chamado software customizado não se tem, via de regra, qualquer licenciamento – cessão de direito de uso por um prazo determinado – do intangível. Quando o consumidor contrata alguém para programar ou elaborar um software de acordo com suas instruções, há, em essência, a aquisição ou o desenvolvimento de um ativo intangível.
O pagamento dele se dá pela prestação de um serviço de elaboração de programa de computador (item 1.04 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003) ou de programação (item 1.02), não pelo licenciamento de um software. Isso é o que se extrai do próprio artigo 4º da Lei nº 9.609/98 (Lei do Software).
Dessa maneira, parece que há um pecado original neste debate sobre a tributação da licença de software, tendo como premissa a customização – maior ou menor – ou não customização do programa. O relevante é: há licenciamento ou não. Se há licenciamento, não interessa a origem ou a pretensa tipologia do software. Por outro lado, se o objeto da contratação foi a programação em si – a tão falada customização, não há qualquer relação entre o que foi contratado e o licenciamento do intangível. São contratos com objetos diversos.
Essa questão é essencial para solucionarmos a controvérsia a respeito da incidência do ICMS sobre o licenciamento de programas de computador, tema que está sob análise pelo STF em nada menos que cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs nº 1.945, 4.623, 5.576, 5.659 e 5.958), duas das quais encaminham-se para o encerramento de seu julgamento. Vejamos.
Ao analisarmos os debates nessas ADIs, vamos encontrar grandes controvérsias a respeito da interpretação da materialidade constitucional do ICMS, em sua incidência sobre operações de circulação de mercadorias. Notadamente, há infindáveis discussões a respeito do qual seria o conceito constitucional de mercadoria – embora a questão central fosse mesmo o conceito de “operações”.
Esta controvérsia talvez fosse relevante até a entrada em vigor da Lei Complementar nº 116/2003, que trouxe a disciplina nacional do ISS. Contudo, essas empolgantes e apaixonantes discussões sobre a materialidade constitucional do ICMS parecem-nos completamente superadas pela decisão do legislador complementar.
Sabe-se que a Lista de Serviços anexa à referida lei complementar trouxe, em seu item 1.05, a incidência do ISS sobre “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”. Portanto, neste particular, a Lei Complementar nº 116/2003 trouxe uma regra clara de alocação de competência para os municípios instituírem e cobrarem o ISS sobre tais atividades.
Ora, com base nos esclarecimentos apresentados anteriormente, não parece haver dúvidas quanto ao fato de que este item 1.05 refere-se, principalmente, ao licenciamento do direito de uso de programas de computador não customizados, os ditos softwares “de prateleira” ou “standard”.
Afinal, como ficou claro, a contratação de softwares customizados usualmente se dá pela celebração de um contrato de prestação de serviços de elaboração de programas de computador ou de programação, e não por meio de um contrato de licença.
O STF já formou maioria para reconhecer a não incidência do ICMS sobre o licenciamento de programas de computador, seja qual for sua natureza – customizado, customizável ou não customizado –, no julgamento das ADIs 1.945 e 5.659 Aguarda-se, agora, com grande expectativa, a sua finalização e a redação dos acórdãos dessas decisões.
Idealmente, segundo vemos, o STF deveria reconhecer, apenas e tão somente, a prevalência da Lei Complementar nº 116/2003 e, consequentemente, a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre a licença de programas de computador. Esta é uma questão muito importante.
De fato, uma coisa é reconhecer o licenciamento de softwares não se sujeita à incidência do ICMS. Pode-se até, como indicam as posições manifestadas pelos ministros do STF no julgamento das ADIs 1.945 e 5.659, concluir pela incidência do ISS sobre tais licenciamentos. Contudo, deve-se, segundo vemos, circunscrever essas posições às esferas do ICMS e do ISS.
Com efeito, pode-se estabelecer que, para fins específicos e exclusivos de incidência do ISS, o licenciamento de programas de computador foi considerado serviço de qualquer natureza pela Constituição Federal. Entretanto, não parece possível pretender, a partir dessas decisões, firmar uma caracterização, geral e genérica, do licenciamento de programas de computar como prestação de serviços, o que geraria efeitos sistêmicos complexos e imprevisíveis, impulsionando novas discussões e controvérsias que provavelmente exigirão anos até serem pacificadas.
A cessão de direitos é prevista como categoria autônoma para fins tributários na esfera federal, como se pode observar na legislação de preços de transferência (bens, direitos e serviços), do Imposto de Renda Retido na Fonte, da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico instituída pela Lei nº 10.168/2000 etc., não se misturando, seja com os serviços, seja com as mercadorias.
De outro lado, as materialidades constitucionais para a tributação do consumo só previram serviços e mercadorias enquanto fatos tributáveis, tornando a cessao de direitos uma espécie imprópria e quase anômala, de difícil enquadramento, seja ela em forma de locação, de cessão direito de uso, de licenciamento, de permissão de acesso a intangíveis, etc.
No âmbito da tributação do consumo, somente a criação de uma ficção de equiparação dessas atividades econômicas a serviços, mediante uma interpretação, que se próxima perigosamente da analogia, da expressão “serviços de qualquer natureza”, como uma forma de se tentar resolver conflitos de competência entre o ISS e o ICMS, e evitar um vácuo arrecadatório.
Porém, se esta opção já é questionável no âmbito da materialidade constitucional do ISS, não se pode, inadvertidamente, extrapolar os resultados deste campo para além de suas fronteiras, e daí se extrair um susposto conceito constitucional de serviço aplicável às diversas áreas da tributação, notadamente na esfera federal, onde as incidências sobre direitos possuem arcabouço legal próprio e autônomo, sendo, portanto, desnecessária a ampliação do conceito de serviço para se atingir a cessão de direitos e atividades afins com o objetivo de superar eventual hiato normativo.
Diante do exposto, enquanto caminhamos para o fim de uma das mais longas controvérsias do Direito Tributário brasileiro, é muito importante que, ao decidir a matéria, o STF circunscreva sua decisão ao campo do ICMS e do ISS, sob pena de testemunharmos o fim de um litígio e, quem sabe, o nascimento de algumas novas controvérsias.
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JOTA

Corte deve circunscrever sua decisão ao campo do ICMS e do ISS, sob pena de testemunharmos o fim de um litígio

O STF e a tributação da licença de software

Corte deve circunscrever sua decisão ao campo do ICMS e do ISS, sob pena de testemunharmos o fim de um litígio