Anna Luiza Carvalhido

A Lei 11.343/2006, chamada Lei das Drogas, tipifica como crime o porte de drogas. A questão é bem polêmica já que, em tese, o uso, embora seja considerado crime, não é penalizado com reclusão, mas sim o tráfico. O uso só é tratado com as chamadas penas alternativas (advertência, prestação de serviços, medida educativa). O que diferencia uma conduta da outra é a percepção do juiz que, ao analisar as circunstâncias e a quantidade, determina quem entra e quem não entra na cadeia. No entanto, na prática, o que ocorre é a reclusão da maior parte daqueles que carregam a droga, fato comprovado com a significativa explosão da população carcerária a partir da vigência da Lei das Drogas, em 2006.
Hoje, no plenário do STF, discute-se o Recurso Extraordinário 635659, que questiona decisão do Juizado Especial Cível (JEC) de Diadema/SP. Na decisão do JEC, o porte foi considerado crime, conforme a Lei das Drogas. No entanto, o recorrente, representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, argumenta que o artigo 28 da Lei das Drogas é equivocado pelo fato de não haver “lesividade” na conduta do uso próprio, isto é, não causar danos a terceiros. Argumenta, também, que o comportamento não afronta a “saúde pública”, mas tão somente a saúde pessoal do usuário, que fica prejudicada ao ser tratado como criminoso. O caso gerará repercussão geral.
No caso específico do crack, a distinção entre traficante e usuário é especialmente problemática já que, por se tratar de uma prática coletiva, alguns detentores de algumas pedras podem vir a vender ou praticar escambo com alguém ao lado sem, em realidade, se configurarem como traficantes, da forma como costumamos pensar em traficantes: poderosos e inatingíveis. Pelo contrário, essas pessoas são o próprio retrato da vulnerabilidade e trocam mercadorias, muitas vezes, apenas para garantir que supram alguma necessidade básica, obtendo bens igualmente simples - como roupas, colchões, itens de higiene pessoal – para, em seguida, voltarem a consumir a droga.
O assunto da descriminalização da droga é, em geral, pensado do ponto de vista das histórias privadas, isto é, mães e pais que temem que seus filhos entrem em um caminho obscuro e sem volta se o porte deixar de ser visto como “crime”. Esse fato é bem ilustrado pelos debates em plenário que aconteceram durante a gestação da Lei 11.343/2006. No entanto, em estudos feitos para avaliar quem são os dependentes das drogas, constata-se uma grande correlação entre a falta de apoio emocional, de opções de carreira claras e histórico familiar conturbado. Isto é, a dependência coloca-se num contexto de vulnerabilidade social. Isso é especialmente notório no caso do crack.
Não se trata de abrir exceção ao crack, mas de pensarmos o quanto, na prática, essa confusão entre traficante e usuário e a consequente reclusão de milhares de pessoas, usuários e dependentes das mais diversas drogas, não está gerando problemas de dois tipos: dificuldade para o cuidado daqueles que se encontram em situação de dependência e a superlotação dos já superlotados presídios.
Assim, julga hoje o STF uma causa histórica com uma faceta claramente social. A questão que se coloca é: quem queremos punir e por quais razões. Em que medida, usuários que são alvo da tipificação “crime” sofrem mais com a desumanização ao serem considerados criminosos do que com os efeitos do uso da droga. A mudança, embora fundamental para considerarmos aqueles que usam as drogas sujeitos que merecem uma segunda chance, ainda não apaga completamente o cenário de milhares de prisões indevidas nos casos de confusão entre traficante e usuário. Serão muitos, ainda, os usuários que serão indevidamente tratados penalmente como traficantes e irão para trás das grades, consolidando-se, assim, o ciclo de vulnerabilidade social que hoje se coloca e atacar, ironicamente, o mais fraco.

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JOTA

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