Paulo Fernando Pinheiro Machado

“Alegre-se! Não desista. Um novo coração para um Ano Novo, sempre!”
 - Charles Dickens, The Chimes.
A escolha da data de 31 de dezembro da passagem para o Ano-Novo não é aleatória, cara leitora. A sua eleição foi fruto do longo embate da “diplomacia dos calendários”, que já tivemos a oportunidade de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/3-de-setembro-de-1752-o-dia-que-nunca-existiu-03092021">nesta coluna.</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Ao longo da história do Ocidente, deste os tempos da República de Roma, o início do ano civil ora era marcado para 1º de janeiro, ora caia em alguma data móvel perto do equinócio de primeira no hemisfério norte, em 20 de março. Foi somente com a adoção do Calendário Gregoriano em 1582, que se fixou o último dia do ano civil em 31 de dezembro.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A efeméride dessa data possui um significado muito preciso. Trata-se da festa de São Silvestre, em homenagem ao Papa Silvestre I, falecido em 31 de dezembro de 335 d.C. e canonizado no mesmo dia. O longo papado de 23 anos (314-335 d.C.) de Silvestre I foi repleto de eventos de significação histórica. Além da construção de importantes igrejas, como a da Velha Basílica de São Pedro no Vaticano, durante o seu período foi realizado o Primeiro Concílio de Nicéia (325 d.C.), quando foi adotado o Credo Niceno, a principal profissão de fé da história do cristianismo.
Mais importante para a definição da data, contudo, é o conteúdo simbólico de que se reveste a lenda de São Silvestre. Silvestre I teria sido o responsável pela conversão do Imperador Constantino ao cristianismo. Segundo o famoso Liber Pontificalis, o manuscrito medieval que registra a biografia dos papas de São Pedro até o Papa Pio II (1458-1464 d.C.), Silvestre I teria sido inicialmente perseguido por Constantino, o que o teria levado a exilar-se no Monte Syrapitin. O Imperador, contudo, estava leproso, e teria chamado Silvestre para curá-lo, o que teria ocorrido milagrosamente pelo batismo do Imperador. Surgiu então a lenda da “Doação de Constantino”, segundo a qual o Imperador, em sinal de gratidão, teria oferecido a coroa imperial da parte ocidental de Roma para o Papa, que, em magnanimidade, teria recusado, recolocando moto proprio a coroa na cabeça de Constantino.
A autenticidade do episódio é contestada, porém, independente da veracidade, ele teve um imenso impacto jurídico na história subsequente do Ocidente. A lenda serviu como confirmação da chamada “Doutrina Gelasiana da Supremacia Papal”, segundo a qual os Sumos Pontífices derivam a sua autoridade de uma fonte divina, transmitida diretamente através da sucessão apostólica. O poder civil, temporal, dos reis e imperadores, assim, somente seria legítimo quando validado pela autoridade eclesiástica, espiritual. Essa doutrina jurídica foi a base do universalismo cristão da Idade Média e o principal ponto da clivagem política entre Igreja e Império, que envolveu a humanidade por cerca de um milênio.
A celebração da passagem para o Ano-Novo na efeméride de São Silvestre, assim, assume o caráter de uma lembrança de que o ciclo de vida que se reinicia se organiza com base em uma autoridade transcendente, cuja bênção é uma condição de legitimidade, não apenas do exercício da autoridade civil ou política, mas de todas as ações humanas na terra, cujo propósito deve ser direcionado a uma finalidade para além do aspecto material que as motiva inicialmente.
Como a leitora pode perceber, a proposição fundamental da Doutrina Gelasiana transcende o aspecto eminentemente político da sua formulação inicial, porque, mesmo em um contexto de fragmentação do universalismo cristão, como o vivido pela humanidade a partir da Era Moderna, e até mesmo em um contexto pós-cristão e pós-moderno, como o dos dias atuais, ela ainda guarda alguma validade, inclusive no nível do plano individual, o da orientação pessoal de reconhecer uma autoridade transcendente superior aos nossos desígnios humanos.
Para o ano de 2022 que se inicia, a efeméride de São Silvestre nos dá o tom para a reflexão acerca dos erros e acertos do difícil ano de 2021 que se encerra e também nos dá um alerta para observarmos com humildade e prudência os principais eventos que se anunciam já para o início do ano. De mais importante para humanidade, o Ano Novo já começa com dois grandes desafios: o primeiro é a nova onda da variante ômicron da COVID-19, que, ainda que se prove uma variante menos agressiva que as anteriores, o seu surgimento é uma confirmação de que a humanidade terá de adaptar radicalmente os seus modos de vida cotidiana, em todos os níveis, para prevenir a hipótese, sempre e cada vez mais presente, de uma nova variante ou de uma nova pandemia que ameace a nossa sobrevivência neste planeta.
O segundo grande desafio do novo ano está na manutenção da paz e da segurança internacionais. O ano de 2021 termina com três grandes tensões geopolíticas que possuem um alto risco de descambar para um conflito armado mundial: Taiwan, Ucrânia e Oriente Médio. Trata-se, cara leitora, da primeira vez em que a humanidade se vê confrontada simultaneamente com três pontos de alta tensão, em um ambiente marcado por polarização política, estagflação global e um nível tecnológico capaz de produzir armas autônomas de grande potencial destrutivo. 2022 será um ano em que a humanidade precisará de todo o tato diplomático desenvolvido ao longo da sua história precedente para evitar a eclosão de uma catástrofe.
A festa de São Silvestre nos lembra, contudo, que, qualquer que seja o desafio que o novo ano apresente, a sua condução está baseada nos desígnios de um princípio de ordem superior. A lição da efeméride é uma de humildade: o bom sucesso depende da busca, em nossas vidas concretas, da realização do mais alto bem, sem o qual a humanidade certamente se esfacelará em conflitos tribais fratricidas. Aproveito o ensejo, cara leitora, para agradecer a atenção ao longo do ano e desejar-lhe um Ano-Novo repleto de renovação e de prosperidade, “porque as palavras do ano passado pertencem à linguagem do ano passado e as palavras do próximo ano aguardam uma nova voz”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/3-de-setembro-de-1752-o-dia-que-nunca-existiu-03092021

Queima de fogos na praia de Copacabana, Réveillon Rio 2019

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JOTA

O segredo do conteúdo simbólico e litúrgico da festa de São Silvestre

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