Felipe Drumond

No início deste mês foi lançado pelo instituto República.org o documento “<a href="https://republica.org/wp-content/uploads/2022/08/Propostas-para-fortalecer-a-capacidade-administrativa-dos-governos-v2.pdf">Propostas para fortalecer a capacidade administrativa dos governos (2023-2026)</a>”. Elaborado por diversos especialistas, o material contém uma série de propostas essenciais para a melhoria da gestão pública brasileira. Organizadas em oito eixos, estão ali resumidas soluções para modernização dos concursos públicos, cargos de liderança, equidade de gênero, igualdade racial, gestão de temporários, dentre outros.
Para os futuros governos, avançar em todos esses pontos será extremamente desafiador, o que traz a necessidade de definir prioridades. Dessa forma, convém apresentar melhor o que é o primeiro ponto do documento: redesenho de carreiras e salários. A definição como tema inicial vem justamente da visão de que essa solução contém pontos que são a base para ganhos nas demais áreas discutidas.
Explicando o porquê disso: a remuneração das carreiras do setor público, que deveriam ser um fator de incentivo para o desenvolvimento e bom exercício das funções do servidor, é na verdade um grande desmotivador pela forma como está organizada.
Primeiro, no Poder Executivo dos estados e municípios, onde a capacidade financeira é bastante inferior à do governo dederal, do Judiciário e Legislativo, em muitos casos não existe nem o conceito de carreira estabelecido. Uma vez que entram no serviço público, profissionais ficam vinculados a um valor salarial praticamente imutável, não importa o que realizem ao longo de sua trajetória. Nos casos em que algum desenho exista, também ocorrem outros desvios. Os salários iniciais tendem a ser pouco atrativos e o crescimento só ocorre quase que puramente pelo tempo, premiando a longuíssimo prazo profissionais que ficaram na carreira, gerando ainda um crescimento vegetativo difícil de ser controlado.
Engana-se quem crê que somente salários altos evitariam problemas. Embora remunerações elevadas certamente atraiam mais profissionais qualificados, uma vez que se entra no serviço público bons incentivos novamente não aparecem. Muitas vezes os salários de entrada já estão próximos ao teto, fazendo com que em poucos anos o servidor atinja seu auge financeiro. Esse mal desenho desencadeia outros problemas, como pressões para extensão da carreira, drible do teto salarial com penduricalhos, reajustes do teto mesmo em período de crise (como o que está sendo discutido no momento). O que por fim, resulta na perpetuação e aumento da desigualdade salarial – gerando um sentimento de injustiça que corrói qualquer servidor que não seja contemplado por essas medidas.
Evidentemente, a falta de bons modelos salariais não impede que tenhamos excelentes servidores públicos. Como bem atesta o <a href="https://premioespiritopublico.org.br/">Prêmio Espírito Público</a>, apoiado pelo República.org, o Brasil tem inúmeros exemplos de funcionários brilhantes. A própria história de sucesso de algumas políticas de Estado, como o SUS, Plano Real, Bolsa Família, Pix, são sempre entrelaçadas com esses profissionais. No entanto, nenhuma organização humana é movida apenas por pessoas apaixonadas pela sua causa e ideal – e até essas, se submetidas a um ambiente com incentivos negativos contínuos, um dia podem cansar e procurar outro lugar. Se queremos um Estado melhor, precisamos de um modelo que incentive a todos serem melhores profissionais, e não de um sistema que, pela sua falta de padrão, gera injustiças em série.
Como bem apresenta o documento de propostas do República.org, existem soluções para este cenário. A primeira está relacionada à refundação do atual sistema de organização dos salários. De uma lógica fragmentada, na qual cada carreira tem sua própria tabela, propõe-se a criação de uma tabela salarial única. A exemplo de países que avançaram nesse tema, como Portugal, a distribuição dos cargos se daria por uma avaliação de complexidade, lastreando assim o que se faz ao quanto se recebe. Essa proposta, mesmo que não elimine todas as distorções para os atuais servidores, servirá primordialmente para constituição de uma base correta para os futuros funcionários.
Uma tabela única contribui também para outra necessidade: a criação de um processo universal de reajustes dos salários. No presente modelo, historicamente a força de cada grupo definiu quem teria aumentos mais generosos. Os impactos disso são visíveis ao se analisar a desigualdade salarial das atuais carreiras. Mas é preciso entender que isso também acabou. Em nível federal, a maior parte do serviço público não tem aumento desde 2019 ou 2017 – chegando a acumular uma desvalorização salarial acima de 30%. O desmoronamento de práticas até então comuns é uma oportunidade para que, junto do próprio serviço público, se caminhe em conjunto no desenho de um novo modelo para o tema.
A questão das carreiras e salários passa também por outro debate necessário, relacionado ao orçamento público. Ao contrário do Brasil, onde essa peça é muitas vezes ficcional, em alguns países de referência no tema os órgãos são completamente responsáveis pelo recurso a eles reservados – incluindo aí o pagamento de pessoal. Com diretrizes centrais, cabe a cada qual definir quantas pessoas e para quais carreiras contratar. Diminui-se com isso problemas do modelo brasileiro. Secretários e ministros deixam de ser os cabos de pressões que acabariam com qualquer modelo sério de organização dos salários. Além disso, é concedida maior capacidade de gestão de pessoas a órgãos que lidam com as demandas diretas de execução das políticas públicas.
As propostas aqui elencadas não são simples, tratam-se de medidas que se diferem da trajetória de práticas que a administração pública adotou no tema, após a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-de-1988">Constituição de 1988</a>. No entanto, é inviável pensar que em um serviço público, cuja maioria é de servidores estatutários (mais de 80% em nível federal), será possível ter avanços em demais temas, sem antes criar uma base de trabalho coerente e justa. Ou seja, não se trata de uma opção, mas de um debate que, por mais árduo que seja, condicionará a modernização de nosso Estado.

esplanada dos ministerios

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JOTA

Não se trata de uma opção, mas de um debate que, por mais árduo que seja, condicionará a modernização do Estado

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