Rudy Ferraz

Rodrigo de Oliveira Kaufmann

Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) se reúne para decidir acerca do regime jurídico-constitucional das terras indígenas. A história, nesse caso, é refém daqueles que não concordaram com a decisão do 2009, quando o próprio Tribunal fixou esse conceito.
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Por que esse assunto retorna à pauta do STF? Por quase nada. É preciso que isso seja dito com clareza: não houve alteração da norma constitucional e não houve qualquer fato específico para essa rediscussão. Nada. O que se tem é a mesma tese vencida naquele julgamento sendo agora reativada e requentada, sem qualquer novidade mesmo que argumentativa. Isso evidentemente não faz bem à jurisdição constitucional e certamente não contribui para a segurança jurídica. Não é possível que o STF, apenas pela alteração de composição de seus membros, renove problemas já equacionados tão-somente por uma questão de “exceção de consciência” e discordância teórica com o que já se decidiu.
A definição do marco temporal não é uma opção hermenêutica, é uma imposição jurídico-constitucional. O texto do art. 231 da Constituição é explícito: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente OCUPAM, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
A simples leitura do artigo leva a uma conclusão evidente: o regime da demarcação de terras indígenas se aplica às terras ocupadas pelos índios na data da promulgação da Constituição. Terras que “ocupam”: não que ”ocuparam no passado”, não que “ocuparam em 1930”, não que “ocuparam em 1500”. Não é por outro motivo que o art. 67 do ADCT determina que “a União CONCLUIRÁ a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.”
A demarcação é um modo de garantir a terra indígena e, nesse modo específico, basta a demonstração de que a comunidade indígena está no local desde outubro de 1988 ou estava lá nessa data.
Isso quer dizer que os índios fora da área que entendem como sua nessa data não têm direitos constitucionais possessórios? Não. Não quer dizer isso. A Constituição prevê expressamente duas formas de se assegurar esse direito: tem-se a demarcação (caput do art. 231) e tem-se a constituição de reserva indígena (art. 231, § 6º).
No caso da reserva indígena, é preciso que a União desaproprie a terra alegadamente dos índios de quem a ocupa de maneira legítima (com posse mansa, pacífica e ancorado em regular registro no cartório).
Então se tem constitucionalmente dois modelos de reconhecimento da posse e usufruto territorial do índio: a demarcação (quando demonstrada a sua presença na área) e a constituição de reserva (quando a área reclamada já se encontra em posse de não-índio na data da promulgação da Constituição).
O que muda para os índios em cada modelo desses? Nada. Absolutamente nada. O direito originário permanece o mesmo, rigorosamente o mesmo. Porém, no primeiro caso, a demarcação é apenas uma declaração de posse que oficializa o usufruto da área e, no segundo caso, a reserva exige que o Poder Público indenize o possuir legítimo e de boa-fé da área. O marco temporal, portanto, é apenas um requisito objetivo para a implementação do primeiro modelo e em nada se refere ao direito originário dos índios.
Na verdade, o marco temporal é o reconhecimento da validade e da importância do direito de propriedade para a Constituição Federal. Esse direito é citado expressamente em vários pontos da Constituição: art. 5, caput; art. 5º, XXII; art. 5º, XXVI; art. 170, II; além das diversas vezes em que essa garantia institucional é prevista nas regras do regime tributário constitucional, do regime administrativo, de mineração, de política urbana e de política agrícola.
O marco temporal, portanto, é a garantia institucional do direito de propriedade plasmado no regime constitucional dos direitos indígenas. É a forma como, nesse assunto, o constituinte de 1988 ponderou e mediou um eventual conflito que existisse entre direito de propriedade X direito dos índios.
O fim do marco temporal significará a rejeição dessa opção constitucional feita pelo constituinte. Há legitimidade para isso? Como não se levantar questionamentos sobre ativismo judicial ou mesmo usurpação do que fez o constituinte com essa hipótese em nosso horizonte?
<blockquote class="jota-article__eye">Se do ponto de vista jurídico, constitucional e institucional o marco temporal é um imperativo evidente, sua confirmação também é uma necessidade econômica e social.</blockquote>
Antes de mais nada, é preciso fazer um esclarecimento. A confirmação do marco temporal – jurisprudência atual do STF – não irá anular terras já demarcadas. Comunidades indígenas que estavam na terra em outubro de 1988 não serão afetadas. E mesmo os casos de demarcações realizadas sem a observância desse requisito, podem se transformar em reservas indígenas, o que, para o reconhecimento do direito indígena, é o mesmo. Sustentar o contrário é prestar um enorme serviço de desinformação sobre a questão.
Por outro lado, o fim do marco temporal resultará em um virtual cancelamento do direito de propriedade no campo, já que não haverá qualquer limite ao reclame, a qualquer tempo, de que uma área de produção agropecuária é, em realidade, terra indígena. Já que não há parâmetro temporal, todo o Brasil se torna potencial área indígena.
De fato, já se tem, mesmo antes do fim do marco temporal, 487 novas áreas reivindicadas e outras 120 áreas em estudo. Se hoje há 621 terras indígenas, perfazendo 119,8 milhões de hectares, estima-se que esse número praticamente dobrará com novos 117,2 milhões de hectares “demarcados” e, no total, 27,8% do território brasileiro comprometido.
Alguém sustentaria se tratar de áreas isoladas e claramente indígenas. Outra absurda desinformação. A grande maioria desses novos pleitos são localizados em Estados como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, áreas já bem consolidadas de produção agrícola e de exploração pecuária. Ademais, se hoje os 14,1% do território nacional destinados a terras indígenas equivalem a Portugal, Espanha, França e Suíça somados, com as novas áreas serão comprometidos o equivalente a Alemanha, Inglaterra, Itália, Grécia, Hungria e Sérvia somadas em território (38,4% do território europeu). A desproporção é óbvia e as consequências dramáticas dessa mudança de entendimento serão devastadoras.
Se toda essa área fosse utilizada apenas para produção agrícola, estima-se um impacto de 364,59 bilhões de reais em produtos não cultivados, 1,5 milhão de empregos não criados e em 42,73 bilhões de dólares em exportações não realizadas.
Ademais, seria assustador igualmente o desequilíbrio no tratamento jurídico-constitucional dos cidadãos brasileiros. Hoje o Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 2017, tem quase 5 milhões de estabelecimentos agropecuários. A área média de um estabelecimento rural no Brasil é de 64 hectares (93 hectares se considerarmos apenas famílias assentadas). Pois bem. A área média de terras por índio (individualmente considerado) caso o marco temporal seja revisto, ultrapassará os 470 hectares. Se considerarmos uma “família indígena” (embora seja conceito nem sempre compatível com as etnias) esse valor poderá chegar a 1.877 hectares.
Apesar de todos esses argumentos e dados, apensar de ser evidente que em uma tese se alcança segurança jurídica e em outra tese teremos certamente a conflagração no campo, não há dúvida de que estamos diante de um problema prático importante. O problema, portanto, é prático e não interpretativo ou jurídico.
Há diversas situações no Brasil em que o entendimento e a composição resolveriam a questão, contribuindo para que produtores rurais e comunidades indígenas possam conviver de maneira harmoniosa. Há diversos casos nessa linha envolvendo índios cuja preocupação não é a superação do marco temporal. Suas prioridades são evoluir, se desenvolver, oferecer mais conforto às suas comunidades e sair da miséria. Esses índios apresentam demandas concretas, não-ideológicas.
Por esses motivos, a discussão novamente sobre o marco temporal, 12 anos depois, é um enorme retrocesso para quem quer focar na solução prática das situações concretas pelo país. Segurança jurídica é uma preliminar desse esforço, harmonia nas relações no campo é o objetivo principal.
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JOTA

Confirmação do marco temporal – jurisprudência atual do STF – não irá anular terras já demarcadas

O retrocesso do debate sobre o marco temporal

Confirmação do marco temporal – jurisprudência atual do STF – não irá anular terras já demarcadas