Mariana Saragoça

Julia Barker

Não é novidade que, desde a promulgação do novo Marco Regulatório do Saneamento Básico (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a>), parte das companhias estaduais (CESBs) vêm buscando diferentes estratégias jurídicas, envolvendo, inclusive, verdadeira “ginástica” societária, para garantir a assunção dos serviços de saneamento básico sem prévia licitação, de forma absolutamente contrária ao que preconizou a nova legislação.
A bola da vez envolve a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), que possivelmente assumirá a prestação dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água não só na Microrregião do Litoral (composta por 30 municípios, incluindo a capital, João Pessoa), como também nas demais microrregiões, sem que participe de processo competitivo.
Dentre os diversos aspectos passíveis de questionamento que tangenciam o processo de regionalização no estado da Paraíba, cabe destaque à institucionalização do regime de contratação sem licitação da Cagepa nos 223 municípios, segregados em microrregiões. Também se desenha a prorrogação de 48 contratos de programa até 2055, na contramão das disposições estabelecidas pelo novo marco.
A controvérsia tomou outros contornos no último dia 16 de março, quando o Governo da Paraíba e a Prefeitura de João Pessoa renovaram a contratação da Cagepa para os sistemas de água e esgotamento sanitário na capital – acendendo ainda mais o alerta para outros agentes do setor.
A tese – que já havia sido estudada por outros estados nos últimos anos – consiste na interpretação de que a execução dos serviços pela companhia estadual configura-se como prestação direta dos serviços, uma vez que o estado figuraria como parte integrante da microrregião, e, portanto, seria também cotitular dos serviços (unidade regional).
Recentemente, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agu">Advocacia-Geral da União (AGU)</a>, no âmbito da ADI 7.335 movida pela Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) para questionar dispositivos da legislação paraibana que preveem a prestação direta de serviços de saneamento básico pela Cagepa, defendeu haver legalidade na proposta do Governo da Paraíba para que a companhia estadual preste os serviços nos municípios.
Ao defender a legalidade do arranjo jurídico, a AGU destacou que o modelo não feriria aspectos da Constituição Federal tampouco do novo marco, sob a interpretação de que há autorização para a prestação direta dos serviços, uma vez que o capital social pertence majoritariamente ao estado da Paraíba (cotitular do serviço público).
A movimentação causa estranheza e apreensão, dado que, desde a promulgação do novo marco, foi a primeira vez que houve manifestação positiva da AGU com relação às teses envolvendo a possibilidade de prestação direta sem licitação.
Parece-nos que a defesa da tese de que a titularidade compartilhada garante à empresa estadual o direito de prestar os serviços sem processo competitivo se afasta do que pretendeu o novo marco e não deveria prosperar. Fato é que a vedação aos contratos de programa objetivou assegurar modelos competitivos para a escolha dos operadores, fomentando investimentos privados, estimulando a livre concorrência e a sustentabilidade econômica dos serviços.
Nessa linha, ao observar o caso concreto é fundamental compreender que as microrregiões são órgãos administrativos interfederativos, já tendo o STF decidido acerca da titularidade dos serviços na tentativa de pacificar a temática.
O modelo, uma vez adotado, pode passar a ser replicado em outros estados o que teria o potencial de minar os esforços para alcançar a universalização dos serviços até o ano de 2033. Pelo ritmo dos debates, as discussões envolvendo a viabilidade jurídica de novos arranjos institucionais ainda continuarão no centro da mesa pelos próximos meses.
Ademais, o setor aguarda com grande desassossego outras possíveis alterações, pelo governo federal, quanto à extensão da atuação da ANA e reformulações gerais do novo marco, por meio de decreto regulamentador a ser publicado nas próximas semanas. Se as tentativas de utilizar supostas lacunas da Lei 10.026/2020 como instrumentos de malabarismo interpretativo para afastar o dever de licitar já representavam um caminho contrário do que desejou o legislador, a possibilidade de um novo decreto é ainda mais ameaçadora para a segurança jurídica do setor.
Em declarações recentes de membros do governo, houve sinalização no sentido de que o decreto poderá retirar da ANA suas principais atribuições, dentre elas editar diretrizes e normas de referência às entidades reguladoras infranacionais (ERIs). Tal caminho representaria retrocesso em um cenário já calcado na assimetria de informações e em um ambiente regulatório heterogêneo.
Se estávamos caminhando a passos largos para estruturação de uma regulação setorial responsiva para o saneamento, fato é que os desafios serão enormes se perpetuarmos a realidade na qual coexistem mais de 70 agências reguladoras infranacionais, com variados níveis de maturidade regulatória e capacidade institucional.
O novo decreto deverá, ainda, atender outros pedidos do setor público e garantir o fim da restrição de 25% para que as estatais celebrem parcerias público-privadas (PPPs), bem como viabilizar a postergação até 2026 dos prazos do novo marco, em especial para beneficiar os municípios que ainda não aderiram aos blocos regionais e teriam, por consequência, o acesso aos recursos federais restringidos.
Também causa preocupação uma possível flexibilização do processo de comprovação econômico-financeira das operadoras dos serviços, a qual seria “simplificada” por meio do novo decreto de forma que a decretação de irregularidade dos contratos não ocorra de forma tão rígida como atualmente. O processo foi um avanço relevante da legislação para balizar o repasse de recursos públicos para o setor, bem como para assegurar os preceitos da segurança jurídica, previsibilidade nas relações contratuais e sustentabilidade econômica. Apesar de não ser possível prever quais serão as alternativas do governo, a verdade é que a não comprovação da capacidade econômico-financeira abre a oportunidade para que os blocos regionais busquem conceder os serviços em processos competitivos.
De forma geral, o que se percebe nos últimos meses é um movimento de vilipendiar os esforços traçados desde a promulgação do novo marco. O tema é muito caro e envolve riscos de não viabilizarmos a universalização dos serviços com a mortalidade de projetos e consequente diminuição no ritmo de investimentos privados.
Desde o início, a essência do novo marco esteve em seu arranjo federativo e na necessidade de harmonização dos interesses dos titulares e agentes envolvidos. Nesse sentido, os estímulos a adesão às estruturas de prestação regionalizada foram criados justamente para incentivar a associação voluntária dos municípios de forma a fortalecer as bases do federalismo cooperativo.
É fundamental, portanto, que as principais diretrizes do novo Marco do Saneamento sejam resguardadas, em particular (i) o incentivo à prestação regionalizada, (ii) o estabelecimento de diretrizes regulatórias nacionais; (iii) a exigência de prévia licitação para a prestação dos serviços e, claro, (iv) o compromisso com o atingimento das metas de universalização e qualidade na prestação dos serviços.

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JOTA

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