Emílio Figueiredo

Estamos acompanhando o julgamento do RE 635.659, pelo Supremo Tribunal Federal, que está discutindo a constitucionalidade da criminalização das condutas relativas ao porte de drogas, sendo, também, uma oportunidade para julgar a criminalização de quem cultiva, para si, plantas como a Cânabis, consideradas proscritas, no Brasil, por força de tratados internacionais.
Sabe-se que o artigo 28, da Lei 11.343/2006, trata, em seu caput, da criminalização das condutas peculiares aos usuários, e, em seu parágrafo primeiro, tipifica o cultivo de plantas destinadas à produção de drogas para consumo pessoal. Portanto, ao julgar sobre a tipificação contida no caput, o Supremo Tribunal Federal também deverá julgar o seu parágrafo primeiro<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>.
Neste caso, nem há que se falar em inconstitucionalidade por arrastamento, e, sim, um resultado lógico, pois considera-se a estrutura do texto legal, onde o cultivo para fins de consumo próprio é previsto em um parágrafo do artigo, objeto do recurso extraordinário.
Importante lembrar que, embora outros vegetais sejam passíveis de serem cultivados em casa, com a obtenção de pequena quantidade de substância, a Cânabis é, certamente, a mais cultivada em ambientes domésticos, no Brasil<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a> . Um reflexo disso é o grande número de apreensões de sementes do vegetal realizadas pela aduana, recentemente<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>.
O cultivo doméstico da Cânabis tem sido uma forma de redução de danos, em dois aspectos<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a> principais: primeiro, em razão do usuário saber o que está cultivando, pois acompanha desde a semente até a flor, deixando de consumir a maconha comercializada, que é de péssima qualidade; e, ao mesmo tempo, deixar de ter contato com o mercado ilícito de substâncias consideradas proibidas. Em segundo aspecto, é uma redução de danos para a sociedade, pois enfraquece o mercado ilícito da Cânabis, que sabemos ser eivado de violência, o que atinge a todos.
Nesse sentido, percebe-se que a mesma injustiça que acomete os usuários criminalizados pela lei de drogas, também atinge os cultivadores domésticos de Cânabis. As autoridades e os jornais não cansam de propagar casos de prisões envolvendo a “super maconha transgênica” ou o “laboratório maconha”, quando, na verdade, apenas se trata de pessoas que emulam as condições naturais ideais em ambiente, no interior de seu domicílio.
Deve ser considerado, ainda, que o cultivo doméstico, em muitos casos, envolve uma questão que vai além da mera busca de estados alterados de consciência, envolvendo a defesa da saúde e do autotratamento<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>, pois o uso medicinal da Cânabis é uma realidade já reconhecida pelas autoridades sanitárias brasileiras<a href="#_edn6" name="_ednref6">[vi]</a>.
Do ponto de vista da lesão ao bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas, qual seja, a saúde pública, não é razoável criminalizar o cultivo doméstico de Cânabis, por ser a prática um ato individual, no interior de cada domicílio, o que não afeta a terceiros de forma alguma.
Outro aspecto importante a ser analisado, no recurso extraordinário em julgamento na Suprema Corte, diz respeito à fixação ou não de critérios objetivos para diferenciar o cultivo de Cânabis para consumo próprio do cultivo para difusão.
O ministro Barroso, em seu voto, afirmou acerca da necessidade de tais critérios, utilizando para tanto o critério já adotado no Uruguai de seis plantas fêmeas.
Não creio que adotar a solução do Uruguai é o ideal para o Brasil, pois os critérios objetivos podem servir para incriminar quem precisa de mais que seis plantas, como um usuário medicinal que prepara seu medicamento e se vê obrigado a cultivar um número alto de plantas, pois o rendimento final em óleo de Cânabis é cerca de 5% da massa original de flores fêmeas secas<a href="#_edn7" name="_ednref7">[vii]</a>.
Só há uma forma de culpar alguém por cultivar para fins que não seja o consumo próprio, e essa forma não é presumir um número de plantas, e, sim, a investigação e a produção de provas pelas autoridades competentes da destinação para fins de difusão ilícita.
Uma saída adequada pode ser a adoção do entendimento que foi majoritário, no julgamento do Habeas Corpus 107.448, Minas Gerais, no qual ficou decidido que “cabe ao Ministério Público comprovar a imputação, contrariando o princípio da não culpabilidade a inversão a ponto de concluir-se pelo tráfico de entorpecentes (...)”<a href="#_edn8" name="_ednref8">[viii]</a>.
No mais, a presunção deve ser pelo cultivo para consumo próprio, não importando a quantidade de plantas, e, sim, a comprovação de sua destinação, se for o caso para que haja a criminalização, sua difusão ilícita.
É certo que, enquanto o Supremo Tribunal julga o RE 635.659, cresce, no Brasil, a prática social do cultivo caseiro de Cânabis para consumo próprio. E, com isso, também cresce a necessidade do reconhecimento de que, à luz da Constituição Federal, o Estado não pode invadir casas para ver o que pessoas cultivam, em suas hortas ou armários, para seu consumo próprio.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> § 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> FIGUEIREDO, Emílio. O cultivo doméstico de cânabis para consumo próprio no Brasil. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 2012; 20:18-20.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> ORTIZ, Rafael e REIS, Monique. Cannabis Indoor: É possível estimar a quantidade de maconha produzida a partir do crescimento indoor de canabis? – Pericia Federal – Ano XVI – Número 35, Maio de 2015, 12-15.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> VIDAL, Sergio. "A regulamentação do cultivo de maconha para consumo próprio: uma proposta de redução de danos." MacRae E, Tavares LA, Rêgo M, organizadores. Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA, CETAD (2009): 61-96.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> VIDAL, Sergio. Cannabis Medicinal - Introdução ao Cultivo Indoor. Edição do Autor, 2010.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[vi]</a> ANVISA RDC 17 de 06 de maio de 2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 08 de maio de 2015 às fls.50/51.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[vii]</a> ROMANO, Luigi L.; HAZEKAMP, Arno. Cannabis Oil: chemical evaluation of an upcoming cannabis-based medicine. Cannabinoids, v. 1, p. 1-11, 2013.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[viii]</a> STF - HC 107448, Relator(a):  Min. Ricardo Lewandowski, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 18/06/2013, Processo Eletrônico DJe-196 Divulg. 03-10-2013 Public. 04-10-2013.

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O julgamento do Recurso Extraordinário 635.659

O RE 635.659 e o cultivo doméstico de Cannabis

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