Adovaldo Dias de Medeiros Filho

Não somos nós quem dizemos. É a Constituição quem diz, em seu artigo 1º, III: A dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil. É, pois, um princípio fundamental, o que denota a sua eficácia e aplicabilidade imediatas. Deveria ser, portanto, observada de forma obsequiosa por todos os entes federativos.
No entanto, causou-nos espécie a notícia veiculada pelos diversos portais de notícias do Brasil, que destacou a adoção, pelo Estado de Minas Gerais, de racionamento de água em seus presídios, a partir do dia 1º de dezembro de 2019. A referida medida importa que os presos poderão utilizar água nos presídios apenas durante 6 (seis) horas diárias.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/assine">Assine o JOTA e não deixe de ler nenhum destaque! 
</a></li>
</ul>
O argumento é de que o preso gastaria, em média, 88% a mais de água do que um cidadão em liberdade, consoante se verifica da matéria do Portal G1,<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> sem que qualquer evidência prática tenha sido efetivamente demonstrada ao cidadão que custeia, com o pagamento de seus impostos, o sistema penitenciário.
Essa situação é espantosa. É óbvio que se está preso por uma razão. Ainda ousa-se acreditar que o devido processo legal tenha se efetivado, ensejando em decisões judiciais fundamentas, ou que estejam presentes os requisitos para as prisões não definitivas.
<blockquote class="jota-article__eye">Sucede que o preso, ainda que privado de sua liberdade, não está privado de ter uma vida digna. Uma vez preso, está sob a custódia do Estado, que não está afastado de garantir a dignidade da pessoa humana.</blockquote>
Com efeito, a própria Carta Magna dispõe, em seu artigo 5º, que trata das garantias fundamentais, especialmente no inciso XLIX, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
Ademais, o mesmo artigo 5º, em seu inciso III, dispõe sobre a impossibilidade de submissão a tratamento desumano ou degradante. No entanto, o Estado de Minas Gerais parece não agir de acordo com as disposições constitucionais.
A impossibilidade do uso da água encerra em tratamento absolutamente degradante. Com efeito, impede que o preso tenha efetivo acesso à higiene pessoal. Cumpre destacar o próprio Estado não informa qual seria o horário de uso e nem se há exceções às regras. A recusa do uso da água também enseja notório prejuízo moral, porquanto aquele cidadão passa a se reconhecer como maltrapilho, com odor desagradável. Além disso, há implicações na saúde.
É preciso mudar a cultura e a perspectiva da sociedade em relação ao cidadão recolhido à prisão. Se o seu objetivo é a ressocialização<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>, haja vista o cometimento de um crime que o impede, momentaneamente, de ter o convívio social, por certo ele não deve ser visto como inimigo da sociedade, de modo que todo e qualquer suplício, por ele experimentado, não seja motivo de regozijo daqueles que consideram que o cárcere é a única medida para a resolução dos problemas sociais.
Com efeito, o cenário é assustador. Consoante estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a oferta de direitos básicos é negligenciada, o que favorece o retorno do apenado ao crime. As ações de ressocialização são nulas e o pré-conceito social sobre o preso, além de questões orçamentárias, revelam cenário de completo descaso, conforme destaca-se abaixo:
Na prestação dos serviços de assistência material, nas unidades pesquisadas, não havia fornecimento de kits de higiene pessoal e roupas de cama. Para suprir esta necessidade, os presos, geralmente, dependiam de seus familiares. A alimentação não era escassa, mas a comida aparecia como motivo de queixas, sendo sua má qualidade apontada, inclusive, como razão de rebeliões. Foram encontradas duas situações: na primeira, a alimentação era feita por meio de processo licitatório, em que empresas concorriam para a prestação do serviço aos detentos. As instalações eram próprias das empresas, localizando-se fora dos estabelecimentos penitenciário. Em um dos casos estudados, constatou-se que o transporte e armazenamento da comida alterava seu PH, chegando às mãos dos presos, muitas vezes, estragada, com mau cheiro e aspecto de podre. Na segunda situação, as cozinhas ainda estavam em atividade nas unidades do complexo prisional. Mas estas eram velhas, não passavam por manutenção e apresentavam poucas condições de higiene. Até as áreas destinadas ao estoque de mantimentos eram sujas, podendo servir de local de moradia de insetos e animais pestilentos, como ratos e baratas.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>
É preciso retornar ao texto constitucional para que tenhamos fundamento para a resolução do problema. Os presos também têm dignidade. A Constituição proíbe tratamento indigno. A dignidade da pessoa humana é, portanto, nas palavras de Ingo Sarlet, limite à atuação estatal:
“(...) a dimensão objetiva da dignidade da pessoa humana implica deveres de proteção estatais, contra o própria Estado e contra ações de atores privados, o que tem sido objeto de reconhecimento pelo STF, destacando-se, no âmbito da jurisprudência mais recente, a decisão na Medida Cautelar na ADPF 347-DF, relatada pelo Ministro Marco Aurélio, julgada em 09.09.2015, na qual foram reconhecidas a violação massiva de direitos fundamentais e a configuração de condições desumanas e afrontosas à dignidade da pessoa humana, caracterizando o que foi designado de um ‘estado de coisas inconstitucional’ (...)”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>
Observe-se que a ADPF nº 347/DF tratou justamente do tratamento concedido aos custodiados pelo Estado Brasileiro, oportunidade na qual se reconheceu que a situação dos presídios revela um estado de coisas inconstitucional.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>
Assim, descabe o racionamento da dignidade da pessoa humana. Não existe dignidade parcial ou que apenas funciona durante um quarto do dia. O artigo 1º de nossa Carta Magna não autoriza, em qualquer hipótese, que os fundamentos da República sejam afastados, ainda mais por um ato administrativo que deve estar expressamente adstrito às normas de regência.
<blockquote class="jota-article__eye">Felizmente, há juízes no Brasil, especialmente no estado de Minas Gerais.</blockquote>
O juiz Wagner de Oliveira Cavalieri, da Vara de Execuções Criminais de Contagem, determinou a suspensão do ato, atendendo a pedidos do Ministério Público e da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, decisão esta que foi acatada pelas autoridades do Sistema Penitenciário.
Destaquem-se trechos de sua decisão, que bem espelham a necessidade de tratamento digno a todo e qualquer cidadão, inclusive o preso:
“Não se trata tão somente da privação de água para beber ou para banho, mas também de descarte de rejeitos fisiológicos dos presos. Tal questão atinge também a esfera da saúde pública, sobretudo nas celas coletivas. Imaginem-se as condições do 'boi' de uma cela superlotada, com inúmeros presos fazendo suas necessidades sem a possibilidade de descarte para o esgoto” (...)“O preso deve ser tratado com disciplina e rigor, mas também com dignidade”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a>
-----------------------------------------------------
<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Disponível em <a href="https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/12/01/governo-de-minas-gerais-adota-racionamento-de-agua-em-presidios-a-partir-deste-domingo.ghtml">https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/12/01/governo-de-minas-gerais-adota-racionamento-de-agua-em-presidios-a-partir-deste-domingo.ghtml</a>. Acesso em 2.12.2019, às 17h48.
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Aqui, destaque-se o disposto no artigo 1º da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal:
Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> ANDRADE, Carla Coelho de Andrade (org.). O desafio da reintegração social do preso: uma pesquisa em estabelecimentos prisionais. Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília: Rio de Janeiro: Ipea. Disponível em <a href="http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4375/1/td_2095.pdf">http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4375/1/td_2095.pdf</a>. Acesso em 2.12.2019, às 18h18.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017. Págs. 266/267
</div>
<div id="sdfootnote5">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> Trecho da ementa da decisão proferida pelo Plenário da Corte, quando da apreciação da liminar:
SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.
</div>
<div id="sdfootnote6">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> Disponível em <a href="https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/12/04/interna_gerais,1105799/justica-impede-racionamento-de-agua-em-presidios-de-contagem.shtml">https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/12/04/interna_gerais,1105799/justica-impede-racionamento-de-agua-em-presidios-de-contagem.shtml</a>. Acesso em 6.12.2019, às 17h59.
</div>

faucet-686958_1920

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Os presos também têm dignidade. A Constituição proíbe tratamento indigno

O 'racionamento' da dignidade da pessoa humana: o caso dos presos de MG

Os presos também têm dignidade. A Constituição proíbe tratamento indigno