Juliana Oliveira Domingues

Juan Dantas

O termo tying agreements descreve os acordos de “venda casada”, situação que ocorre quando produtos e/ou serviços são vendidos por um agente econômico exclusivamente de forma conjunta. Desta maneira, o vendedor que realiza a prática se recusa a comercializar separadamente determinados produtos ou serviços.
No Brasil, a venda casada é costumeiramente analisada sob a ótica do direito do consumidor, sendo prática expressamente vedada pelo art. 39, I do CDC. Ainda que o CDC tenha surgido na década de 90 e a Lei nº 8.884/1994 seja praticamente contemporânea – já que foi promulgada apenas quatro anos mais tarde – , a sociedade brasileira incorporou a cultura consumerista muito mais rapidamente do que a cultura concorrencial. Assim, regra geral, não apenas a sociedade enxerga mais facilmente os efeitos para o consumidor dos acordos de venda casada, como também os próprios operadores do Direito negligenciam a tutela concorrencial para restringir os efeitos dessas condutas que já eram tipificadas no art. 21, XXII da Lei n 8.884/1994, e agora pelo art. 36, XVIII da Lei nº 12.529/2011.
Entretanto, nos EUA, a cultura concorrencial costuma estar mais presente. E é com essa ótica que foi noticiada a recente petição de Ozzy Osbourne (John Michael Osbourne) denunciando a Anschutz Entertainment Group, Inc. (AEG) por entender que há uma cláusula contratual anticompetitiva nomeada pela própria AEG como “Staples Center Commitment”. A referida cláusula obriga aos artistas interessados em performar na O2 Arena, em Londres, a também se apresentar na Staples Center, em Los Angeles. Ou seja, por meio da cláusula, o artista fica obrigado a se apresentar nos dois locais indicados, ainda que deseje apenas um deles. É aqui que entra a discussão dos acordos de venda casada: Ozzy entende que a cláusula contratual vincula a comercialização de um determinado produto a outro e que isso configuraria, portanto, uma conduta anticoncorrencial que deve ser coibida.
De um lado, os advogados de Ozzy Osbourne alegam em sua petição que o artista não teve "escolha alguma”, uma vez que para um grande artista simplesmente não haveria local substituto para a Arena O2 em uma turnê internacional que passa por Londres. A petição também alega que o Grupo AEG é monopolista no mercado (que seus advogados definem com “the market for arena-sized venues in greater London”). Los Angeles, por outro lado, oferece mais alternativas e, consequentemente, há mais concorrência e opções aos artistas. A AEG em sua defesa alega que não há mérito para o processo uma vez que suas práticas se igualam às práticas da concorrência<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse sentido, entram as perguntas que nos interessam: todo acordo de venda casada é anticompetitivo? Ou seja, estamos diante de um ilícitio per se?
Em primeiro lugar é possível arguir que o "empacotamento" de certos produtos tem o benefício de diminuir custos do player (o que justificaria a racionalidade da venda casada), podendo, neste sentido, trazer benefícios ao consumidor final. Entretanto, é muito importante que seja feita uma minuciosa análise dos mercados relevantes.
Se um competidor possui uma participação elevada em um determinado mercado, este pode utilizar da sua posição dominante (que no Brasil é presumida a partir de 20% do mercado relevante) para ganhar participação em outros mercados ou para impedir a concorrência em outros mercados, afetando o ambiente concorrencial naqueles mercados e, consequentemente, limitando a escolha do consumidor.
Do ponto de vista da autoridade antitruste, a identificação do poder de mercado é essencial em qualquer análise antitruste. O histórico do CADE tem demonstrado que a presença de poder de mercado constitui condição necessária (embora não suficiente) para a caracterização de uma conduta anticoncorrencial.
Naturalmente, os acordos de venda casada são desafiantes ao Direito Antitruste e envolvem mercados muito distintos. Um caso curioso ainda remonta a década de 90 (Processo Administrativo nº 08012.008064/1997-82, julgado apenas em 19 de janeiro de 2005). Nesse antigo caso, a Associação dos Concessionários de Consumidores de Jazigos do Cemitério Morumby foi acusada pela Comunidade Religiosa João XXIII de impor a venda conjunta de sepulturas, lápides e prateleiras para fins de enterro em seu cemitério. Ao final de um logo processo, o CADE julgou improcedente a acusação baseada no argumento de que não haveria um mercado separado para cada produto, dado que o objetivo final (i.e. sepultamento) era o produto principal. Ou seja, esse precedente do CADE sinalizava que nenhum acordo de venda casada seria ilegal se os produtos não fizessem parte de um mesmo mercado relevante<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Em caso um caso julgado em 2010, o CADE pôde destacar o seu entendimento de que a conduta deve ser analisada pela regra da razão, exigindo a identificação dos seguintes requisitos para sua caracterização: “[...] a) existência de dois produtos e/ou serviços separados; b) existência de algum elemento de coerção; c) existência de posição dominante no mercado principal ou condicionado; d) caracterização de efeitos anticompetitivos, seja no mercado secundário/condicionado ou no mercado principal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>”.
No entanto, nos EUA, a Suprema Corte Americana já entendeu alguns casos relativos a cláusulas de tying como ilegais per se<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Hoje, os tribunais americanos costumam aplicar a regra da razão, analisando os efeitos competitivos da exigência e tendo como indicativo geral que a cláusula é ilegal quando restringe a concorrência sem trazer benefícios para os consumidores<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Nesse caso particular de Ozzy Osborne, a AEG, empresa conhecida pelo seu trabalho no setor de eventos, é dona da O2 Arena, considerada “Must Have” –  nos termos da petição – para um artista de grande envergadura. O cenário não se repete em Los Angeles, onde há um cenário competitivo para os artistas, que encontram diferentes opções de locais de apresentação, com diferentes taxas e preços. Diante da obrigação de que se apresentem na Staples Center quando apenas desejam se apresentar na O2 Arena, (ambas de propriedade da AEG), os artistas se veem impossibilitados de exercer sua liberdade de escolha e de optar por outro local de apresentação. Ozzy entende que isto limita não apenas a sua liberdade de escolha, mas a concorrência que existe naquele local.
O caso de Ozzy Osborne ainda carece de mais elementos para a nossa conclusão sobre a existência ou não de um ilícito antitruste. Porém, o artista entende ser evidente a ilegalidade e exercício dominante da AEG na grande Londres para distorcer e deter a concorrência na grande Los Angeles.
Caberá agora à U.S. District Court for the Central District of California utilizar o ferramental antitruste para avaliar se estamos diante de uma verdadeira questão antitruste. No Brasil, necessariamente, este caso nos levaria a refletir se o único afetado é o artista (e a questão é meramente privada) ou se o problema teria efeitos para o ambiente concorrencial e para toda a sociedade.
Para completar, Ozzy Osbourne também está se movimentando para formar uma class action contra a AEG reunindo os "artistas em situação semelhante" afetados pela Staples Center Commitment<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Fato é que não apenas os aficionados pelo antitruste, mas os amantes de um bom rock aguardam a análise sobre a legalidade dessa cláusula. A Ozzy Osborne desejamos No More Tears.
&nbsp;
-----------------------------
[1] "AEG has always worked hard to put artists first. At the same time, we must respond to the actions of those we compete with, specifically Live Nation and Madison Square Garden. Fighting for a level playing field is fair competition at its core.” Jay Marciano, Presidente e CEO da AEG em um comunicado à Rolling Stone. In. Rolling Stone Magazine, Ozzy Osbourne files antitrust lawsuit against AEG, 21 de março de 2018.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Veja-se, no mesmo sentido: FRANCESCHINI, J. I. G.; GABAN, E. M.; AMORIM, M. P. International Encyclopaedia For Competition Law – Brazil. Kluwer Law International, The Netherlands, 2017.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CADE.  Averiguação Preliminar n. 08700.005025/2007-07 (Aceco Produtos para Escritório e Informática Ltda.), Conselheiro Relator Ricardo Machado Ruiz em seu voto, p. 12, julgado em 23 Jun de 2010.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Morton Salt Co. v. G. S. Suppiger Co., 314 U.S. 488; e United States v. Loew’s Inc. 371 U. S. 38.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Como no caso United States v. Microsoft Corporation, 253 F.3d 34, em que se discutiu o tying entre o navegador Internet Explorer e sistema operacional Windows.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “A questão não é trivial mesmo em sistemas mais maduros como nos EUA: [...]  recent Ninth Circuit case suggests that courts are not quick to condemn tying contracts. In March 2012, for example, the Ninth Circuit affirmed the dismissal of a consumer class action alleging agreements between television programmers and cable distributors requiring that high-demand cable channels and low-demand be sold to consumers in a single package. In Brantley v. NBC Universal, Inc.,10 the plaintiffs alleged that these programmer-distributor agreements harmed consumers by forcing them to pay higher prices for the package of cable television channels than they would pay for separate channels. The Ninth Circuit held that these allegations were insufficient to show competitive injury to the market for the tied product (e.g., low-demand channels), particularly where the agreements did not prevent other programmers from marketing low-demand channels separately. Moreover, the Ninth Circuit rejected plaintiffs’ suggestion that increased consumer prices alone can be the basis for antitrust liability, pointing in particular to the Supreme Court’s holding in Leegin that minimum resale price maintenance can have procompetitive benefits. (Vigdor; Schmelzer, 2013, p. 3). In. DOMINGUES, Juliana O.; GABAN, Eduardo M. Direito Antitruste. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 198, nota 388.

ozzi

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Todo acordo de venda casada é anticompetitivo? 

O que Ozzy Osbourne pode nos ensinar sobre Tying Agreements

Todo acordo de venda casada é anticompetitivo?