João Victor Archegas
Mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio)
Após uma série de erros estratégicos no Afeganistão, o serviço de inteligência dos Estados Unidos foi certeiro: a movimentação de tropas russas na fronteira com a Ucrânia não era um mero treinamento militar como afirmava Vladimir Putin, mas sim o estágio inicial de uma invasão orquestrada pelo Kremlin. Na madrugada do dia 24 de fevereiro tudo ficou claro quando o céu das principais cidades ucranianas reluziu com a explosão de bombas russas.
Enquanto tropas atravessavam as fronteiras no mundo físico, outro conflito tomava forma no mundo digital. Agências russas e canais estatais de mídia se valeram dos algoritmos de redes sociais como Facebook, Twitter e TikTok para espalhar as mais diversas narrativas sobre a situação no país vizinho, incluindo a justificativa de que a Rússia estaria "livrando" a Ucrânia de neonazistas e que não se tratava de uma guerra ou uma invasão, mas sim de uma "operação militar especial".
Do outro lado, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, explorava os mesmos algoritmos para coordenar esforços por parte de potências ocidentais, em especial EUA e União Europeia, que culminaram em graves sanções econômicas e no envio de armamentos à Ucrânia. Entre Putin e Zelenski, entretanto, estavam os "novos governadores" da era digital: as plataformas. Exercendo, então, sua prerrogativa de intermediação do discurso online, as big tech passaram a moderar as narrativas que estavam hospedadas em seus domínios na internet.
O backlash começou no dia 25, quando Facebook e Twitter decidiram banir anúncios pagos pela mídia estatal russa, além de rotular notícias publicadas por esses canais. Em resposta, o governo russo, atuando através da sua agência reguladora de telecomunicações Roskomnadzor, decidiu limitar o acesso de seus cidadãos às redes sociais estadunidenses. Ademais, a Rússia redobrou a pressão sobre essas empresas para que se adequem à uma lei de janeiro de 2022 que exige que redes sociais com mais de 500 mil usuários ativos por dia tenham um representante legal no país.
As tensões se amplificaram quando, seguindo a liderança da UE, as plataformas, incluindo Google e TikTok, bloquearam as páginas dos canais RT e Sputnik dentro do território europeu. A própria Apple decidiu remover os aplicativos vinculados à mídia estatal russa da sua App Store, ao passo que o Spotify removeu os podcasts dos mesmos canais de sua plataforma. Do vídeo ao áudio, passando pelo texto, canais de comunicação russos foram "desplataformizados", a exemplo do que ocorreu com Donald Trump em 2021.
A reação do Kremlin veio em duas etapas. Em primeiro lugar, no dia 4 de março, a Roskomnadzor bloqueou por completo o acesso ao Facebook e Twitter no país. Em segundo lugar, no mesmo dia, o Parlamento russo aprovou e Putin sancionou uma nova "lei das fake news" que criminaliza o compartilhamento de notícias falsas sobre o Exército russo com penas de até 15 anos de prisão. Isso inclui, por exemplo, chamar o ataque da Rússia à Ucrânia de "invasão", o que, segundo o Kremlin, não corresponde à realidade. Enquanto avalia os impactos da nova lei, o TikTok, por exemplo, anunciou que iria suspender o upload de novos vídeos no seu aplicativo na Rússia.
Em linhas gerais, é possível deduzir três principais ensinamentos dessa situação que podem informar o debate sobre regulação de plataformas digitais no Brasil e no mundo. O primeiro se relaciona com a importância dessas plataformas (e de uma internet livre) para a democracia. O fato de que ainda não temos soluções eficientes para a desinformação, o discurso de ódio e outras mazelas nas redes não anula a realidade de que essas mesmas plataformas podem ser usadas para avançar valores democráticos. Prova disso é que o Kremlin decidiu censurá-las, justamente por julgar que sua "verdade" estava ameaçada naqueles espaços digitais.
O segundo ensinamento diz respeito aos efeitos negativos da criminalização das fake news. Embora muitas democracias sintam a necessidade de punir criminalmente aqueles que espalham informações falsas nas redes, os mesmos dispositivos legais podem ser instrumentalizados por autocratas para amordaçar o debate público e restringir a liberdade de expressão na internet. Regulações mais eficientes e democráticas são aquelas que focam o aprimoramento dos sistemas de moderação de conteúdo de redes sociais, não aquelas que substituem as regras e políticas das plataformas pela visão do Estado sobre o que pode ou não ser dito na arena digital.
Um terceiro e último ensinamento está conectado à (in)eficiência de medidas de restrição e bloqueio na internet. Em primeiro lugar, as plataformas devem coordenar melhor suas ações em tempos de crise para restringir conteúdos danosos e problemáticos. Embora Twitter e Facebook tenham largado em primeiro lugar, outras plataformas continuaram inertes nos primeiros dias da guerra, o que possibilitou a migração de certas narrativas de uma plataforma à outra. Veja-se, por exemplo, o uso da seção de reviews do Google Maps e do TripAdvisor para compartilhar informações, muitas delas falsas, sobre a guerra.
Em segundo lugar, as ações de bloqueio da Roskomnadzor tiveram um impacto limitado, e assim será enquanto a Rússia não adotar uma solução semelhante ao great firewall da China. Como mostrou o jornalista Benedict Evans em sua conta no Twitter, os cidadãos russos passaram a baixar aplicativos de VPN em seus celulares para furar o bloqueio do governo e acessar o Twitter e o Facebook a partir de servidores localizados fora da Rússia. Algo semelhante deve acontecer no Brasil se o TSE optar por banir o aplicativo de mensageria privada Telegram durante o período eleitoral.
A invasão da Ucrânia por tropas russas inaugurou um novo capítulo da geopolítica, trazendo consigo ecos da Guerra Fria e dando nova vida ao temor do uso de armas nucleares. Além disso, o conflito transbordou do mundo offline para o online e forçou as plataformas digitais a moderarem determinadas narrativas e condutas diante das tensões entre Rússia, EUA e UE. O resultado desse embate, ao menos até agora, foi a "desplataformização" da mídia estatal russa e o recrudescimento do tecnoautoritarismo de Putin, com impactos significativos à liberdade de expressão na internet. É um sinal dos tempos, que nos lembra que a guerra também será objeto de moderação dentro do vasto império das big tech.