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O que é o erro grosseiro da LINDB?

O erro grosseiro à luz da culpa grave, do erro inescusável e do homem médio

IFI
Crédito: Pixabay

A Lei 13.655/2018 inseriu o art. 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB -, cujo caput tem o seguinte teor: “Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. A expressão “erro grosseiro” tem gerado controvérsias acerca de qual seria o seu significado.

Há sobre o assunto ao menos três hipóteses:

Primeira: erro grosseiro é culpa grave;

Segunda: erro grosseiro é erro inescusável;

Terceira: erro grosseiro é aquele que o homem médio não cometeria.

Quanto à primeira hipótese, considerando que a culpa stricto sensu se manifesta pelas modalidades da negligência, imprudência e imperícia, entender que erro grosseiro é culpa grave significa dizer que o erro grosseiro ocorre quando o agente pratica o ato com negligência grave, imprudência grave ou imperícia grave.

É de se notar, todavia, que, na esfera civil, o conceito de culpa grave sempre teve pouca relevância, no que concerne à obrigação de reparar o dano, porquanto referida obrigação nasce a partir da constatação da culpa, independentemente de sua gravidade. O que o parágrafo único do art. 944 do atual Código Civil trouxe de inovação nesse aspecto foi a possibilidade de redução do valor da indenização, em virtude da gravidade da culpa, mas sem a dispensa da obrigação de reparar o dano (“Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.”).

Na seara penal, por outro lado, o grau da culpa é matéria tratada sob a perspectiva da culpabilidade, ou seja, da reprovabilidade da conduta, o que repercutirá na dosimetria da pena, pois quanto maior a reprovabilidade da conduta, tanto mais exasperada será a sanção.

No âmbito dos Tribunais de Contas, a seu turno, é possível tanto a condenação à reparação de um dano ao erário quanto a aplicação de uma sanção, o que tem conduzido, ao menos o TCU, a analisar a gravidade da conduta e, portanto, da culpa, na perspectiva da culpabilidade, a exemplo do que ocorre na esfera penal e na linha do que hoje se entende no âmbito do direito administrativo sancionador, tendo em vista a sua repercussão na dosimetria das sanções cabíveis no campo da responsabilidade administrativo-financeira.

Independentemente, porém, do tratamento que se dê à avaliação da gravidade da culpa, se elemento de potencial redução equitativa do valor da indenização ou se juízo de reprovabilidade da conduta, o fato é que referida avaliação não pode ficar ao livre arbítrio do julgador, sem que, para tanto, haja um mínimo critério ou parâmetro a ser adotado, sob pena de cada julgador aplicar a sua particular visão de mundo, o que geraria enorme insegurança jurídica.

E esse critério existe. É o denominado “dever de cuidado objetivo” que se espera que todos os membros da sociedade observem, a fim de viabilizar o convívio social. Ou seja, a aferição da culpa é realizada com base nesse dever de cuidado objetivo. Em outras palavras, age com culpa quem não observa o dever de cuidado objetivo e, por exemplo, assume um risco que, se tivesse observado o cuidado objetivo, não assumiria.

De que modo, no entanto, se constrói o entendimento do que seja esse dever de cuidado objetivo? A resposta é: a partir da observação do que é ordinariamente praticado pelos membros da sociedade ou a partir daquilo que é esperado de cada membro da sociedade para viabilizar o convívio social.

Mas essa resposta nos conduz a outra pergunta: de qual membro da sociedade estamos tratando: daquele de diligência excepcional, daquele de diligência modesta ou daquele de diligência média? A resposta, neste caso, é: daquele que melhor retrate a realidade da sociedade, o que indica que se trata daquele que age com diligência média, normal, comum, ordinária.

A primeira conclusão, portanto, acerca do assunto é a de que a avaliação da culpa, independentemente da sua gravidade, é realizada segundo o parâmetro de comportamento do homem médio. Por essa razão, a afirmação de que o erro grosseiro é a culpa grave, ainda se tomada como correta, não dispensa a adoção do critério do homem médio para a sua aferição.

A segunda hipótese, acima mencionada, é a de que erro grosseiro é o erro inescusável, indesculpável. A questão aqui é a de se saber o que é erro inescusável ou indesculpável? E mais, é saber qual critério adotar para se tomar tal decisão? A resposta, uma vez mais, nos conduz ao parâmetro do homem médio, caso contrário terá de se admitir que cada julgador faça livre avaliação sobre o que entende ser indesculpável ou inescusável, segundo a sua perspectiva pessoal, o que produzirá grande insegurança jurídica. Desse modo, podemos apresentar a segunda conclusão: é inescusável o erro que o homem médio não cometeria.

Como se vê, as duas primeiras hipóteses acima analisadas, ainda que consideradas corretas, remetem à terceira hipótese, qual seja a de que o erro grosseiro é aquele que o homem médio não cometeria. Trata-se de critério por vezes alvo de críticas no sentido de que se trataria de modelo muito abstrato e distanciado da realidade. A crítica, porém, não procede, conforme tentaremos demonstrar a seguir.

O critério do homem médio, para fins de aferição da culpa stricto sensu, remonta ao direito romano e continua sendo usado, nos dias de hoje, tanto pelos ordenamentos jurídicos da civil law quanto pelos da common law, seja para fins de responsabilidade civil, penal ou administrativa, conforme reconhecem a doutrina nacional e estrangeira bem como os Tribunais brasileiros, em especial o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

No campo da responsabilidade civil, consoante observa Anderson Schreiber, tanto nos países que adotam o sistema civil law quanto nos que adotam o common law, usa-se, para fins de avaliação da culpa, o modelo abstrato de comportamento do parâmetro romanista do bonus pater familias, no caso do civil law, e do reasonable man, na realidade do common law, “entendido como o homem médio, o homem-padrão, o indivíduo prudente”.[1]

Com efeito, a doutrina civilista adota, amplamente, o critério do homem médio na aferição da culpa, tendo em vista que a noção de culpa é normativa, isto é, exige um juízo de valor em cada caso. Referido juízo de valor sobre a conduta fica facilitado nas hipóteses em que há normas legais ou regulamentares específicas acerca da conduta esperada, pois nesses casos basta comparar a conduta esperada com aquela que foi praticada no mundo dos fatos, consideradas as circunstâncias que cercavam o autor da conduta.

Esse mesmo juízo de valor, no entanto, passa a ser mais difícil quando não há normas legais ou regulamentares específicas sobre a conduta do agente. Nessas hipóteses, consoante bem lembrado por Sergio Cavalieri Filho, “o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico – comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente”.[2]

No campo da responsabilidade penal, de igual modo, o critério do homem médio é intensamente utilizado pela doutrina. No entanto, se, por um lado, há deveres e cuidados que são expressamente previstos pela legislação, tais como a velocidade máxima na condução de veículos e o uso de equipamentos para certas atividades industriais, por outro, é impossível à legislação prever todas as possíveis violações de cuidados nas atividades humanas. Nessas hipóteses, segundo Mirabete, “deve-se confrontar a conduta do agente que causou o resultado lesivo com aquela que teria um homem razoável e prudente em lugar do autor”.[3]

Na seara da responsabilidade administrativa, de igual modo, a doutrina adota o critério do homem médio, também denominado administrador médio, porquanto reconhece que os conceitos de dolo e culpa, tanto do direito civil quanto do direito penal, são também aplicáveis ao direito administrativo sancionador.

Os Tribunais brasileiros, de igual modo, aplicam o critério do homem médio, de longa data. O Supremo Tribunal Federal, embora seja um tribunal vocacionado a julgamentos que não revolvem a matéria fática, registra em sua jurisprudência 5 precedentes em que constou da própria ementa o termo “homem médio”, além de 368 decisões monocráticas. No Superior Tribunal de Justiça há 44 acórdãos que fazem menção ao termo “homem médio” e nada menos do que 3.096 decisões monocráticas. No Tribunal Regional Federal da 1ª Região são 108 acórdãos os que contam com a presença da expressão “homem médio”. E no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo o referido termo “homem médio” consta de expressivos 44.580 acórdãos.

É de se notar que esses resultados foram apurados com o uso exato da expressão “homem médio” no sistema de busca da jurisprudência dos tribunais acima mencionados. Ou seja, esses elevados números de precedentes não contemplam os tantos outros julgados nos quais os referidos tribunais fizeram alusão a termos equivalentes tais como “homem mediano”, “homem de conduta diligente”, “homem prudente”, “homem comum” e tantos outros termos de igual sentido.

Como exemplo, podemos citar a decisão monocrática do Ministro Edson Fachin no RE 1.044.643, na qual fez a seguinte afirmação: “Com efeito, segundo a lição doutrinária de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha (Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, 13. ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 249), “há erro material quando o que está escrito na decisão não corresponde à intenção do juiz, desde que isso seja perceptível por qualquer homem médio” (grifos nossos).

Em sentido semelhante foi a decisão do Ministro Luiz Fux, no MS 35.196, que se valeu do critério do parecerista jurídico “mediano” para aferir a presença ou não de erro inescusável. Nesse sentido, afirmou o Ministro Fux (com grifos nossos): “Quanto ao elemento subjetivo, o erro evidente e inescusável capaz de imputar responsabilidade do parecerista é o erro claro, baseado naquilo que se poderia exigir de um profissional mediano aprovado em concurso público, não de um jurista experimentado”.

O STJ, por sua vez, em toada similar, decidiu, por sua Quarta Turma, no REsp 744311, o seguinte (com grifos nossos): “2. O erro que enseja a anulação de negócio jurídico, além de essencial, deve ser inescusável, decorrente da falsa representação da realidade própria do homem mediano, perdoável, no mais das vezes, pelo desconhecimento natural das circunstâncias e particularidades do negócio jurídico. Vale dizer, para ser escusável o erro deve ser de tal monta que qualquer pessoa de inteligência mediana o cometeria. (…) Em realidade, se houve vício de vontade, este constituiu erro grosseiro, incapaz de anular o negócio jurídico, porquanto revela culpa imperdoável do próprio autor, dadas as peculiaridades da atividade desenvolvida”.

No TCU não é diferente, a exemplo do recente Acórdão nº 1.628/2018 – Plenário, que sinalizou no sentido de adotar o critério do administrador médio para a aferição da presença ou não de erro grosseiro, pois, a exemplo do que ocorre nos demais ramos do direito e nos termos da mais ampla doutrina e remansosa jurisprudência do STF e do STJ, a Corte de Contas também usa o critério do homem médio como parâmetro para fins de aferição da responsabilidade na seara do controle externo.

Como se vê, portanto, caso não se admita o uso do critério do homem médio, para fins de avaliação da culpa stricto sensu assim como para saber se o erro é ou não escusável, haverá o arbítrio do julgador que fará o seu juízo de valor sobre a conduta do agente público segundo a sua perspectiva acerca do que seja aceitável ou não como padrão de conduta, ou seja, decidirá de modo solitário, isolado e, provavelmente, distanciado da realidade, pois decidirá sem recorrer a qualquer outra informação sobre o assunto, especialmente quanto às práticas reiteradas daquela atividade profissional, com base nas quais se constata a conduta usualmente adotada pelo profissional médio.

É exatamente para evitar esse distanciamento da realidade que a doutrina e a jurisprudência relacionam a aferição da culpa stricto sensu e a avaliação acerca do erro escusável com o critério do homem médio, tanto no âmbito da responsabilidade penal quanto no da civil e da administrativa.

Nesse sentido é a lição de Damásio de Jesus, para quem “há erro invencível (escusável ou inculpável) quando não pode ser evitado pela normal diligência. Qualquer pessoa, empregando a diligência ordinária exigida pelo ordenamento jurídico, nas condições em que se viu o sujeito, incidiria em erro”.[4]

Não obstante essa tolerância do direito com alguns erros, é de se atentar para a assertiva de Fábio Medina Osório, quando alerta que quanto maiores forem as qualidades profissionais do agente e quanto maior for o seu nível de responsabilidades tanto maior será o grau de exigência para que se reconheça como inevitável ou invencível o erro que eventualmente vier a cometer.[5]

Portanto, a título de conclusão, o erro grosseiro a que se refere o art. 28 da LINDB, ainda que se entenda como culpa grave ou como erro inescusável, é aquele que não seria cometido pelo homem médio se estivesse nas mesmas circunstâncias do agente público cuja conduta está sob julgamento.

A contrario sensu, o erro escusável é aquele que o homem médio também cometeria, pois, consoante se demonstrou anteriormente, o homem médio não é um ser sobrenatural que não erra. Ao contrário, nos termos da robusta doutrina e da remansosa jurisprudência, o homem médio é aquele que representa a conduta ordinária, comum, usual, diligente, mas que, eventualmente, comete erros de menor importância, razão pela qual são considerados escusáveis, desculpáveis.

 

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[1] SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2011, p. 35.

[2] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 34. No mesmo sentido: RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4, p. 146; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Vol. 4: responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34.

[3] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 139. No mesmo sentido: JESUS, Damásio. E. de. Direito Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 253-254; GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 217; FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 220.

[4] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 268. No mesmo sentido, mas no âmbito do direito civil: BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. Vol. 1. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1.940, p. 334. Apud NEVARES, Ana Luiza Maia. O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no Código Civil de 2002, p. 263. In: TEPEDINO, Gustavo (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

[5] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 460.