Anderson Ribeiro

Ergon Cugler

No universo futurista de Los Angeles criado por Philip K. Dick em Blade Runner, fomos apresentados a um mundo onde a distinção entre humanidade e máquina se tornou nebulosa. Este clássico nos convidou a questionar não apenas a existência dos ‘replicantes’, nome dado aos seres criados artificialmente, mas também a própria natureza da humanidade. Hoje, à medida que exploramos além das fronteiras da ficção, percebemos que nossas próprias inovações tecnológicas estão desafiando a percepção da realidade e os limites da condição humana.
Em Blade Runner, os replicantes eram tão complexos em sua semelhança com os humanos que até mesmo os caçadores de replicantes, conhecidos como 'Blade Runners', tinham dificuldade em distingui-los dos seres humanos genuínos. A pergunta central do filme ecoa em nossos dias: como podemos discernir entre o real e o artificial em um mundo onde a inteligência artificial (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">IA</a>) se torna cada vez mais sofisticada, criando versões indistinguíveis da humanidade?
É nesse ponto que a ficção se encontra com a realidade que lidamos atualmente. A IA está avançando rapidamente, não apenas criando máquinas capazes de realizar tarefas humanas, mas também sistemas que podem emular nuances das emoções e do pensamento humano. Conforme avançamos em um mundo onde as 'deepfakes', a realidade virtual e a desinformação podem se assemelhar à realidade material, surge a necessidade premente de refletir sobre até que ponto permitiremos que algoritmos influenciem nossa percepção da realidade, dando origem a desafios regulatórios e acordos a serem alcançados como sociedade.
<h3>PL da Inteligência Artificial</h3>
O PL da Inteligência Artificial (<a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233">PL 2338/2023</a>), de autoria do senador <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/rodrigo-pacheco">Rodrigo Pacheco</a> (PSD-MG) e relatoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO), surge como uma resposta ao avanço da tecnologia, buscando estabelecer diretrizes e limites para o desenvolvimento e uso responsável da IA em nossa sociedade. Em síntese, ele traz os seguintes aspectos:
<ul>
<li>Direitos das Pessoas: A proposta trata dos direitos ao acesso e à compreensão das decisões da inteligência artificial. Também garante a todas as pessoas afetadas por sistemas de IA o direito de contestar decisões e de solicitar correção por intervenção humana. Além disso, aborda o direito à não-discriminação e à correção de vieses discriminatórios, reconhecendo o prejuízo social causado por decisões tendenciosas, como no caso em que um <a href="https://www.uol.com.br/tilt/noticias/afp/2020/07/25/ativistas-abrem-queixa-contra-algoritmo-apos-negro-ser-preso-por-ia-racista.htm">ativista foi preso erroneamente a partir de reconhecimento facial por IA com viés racista.</a></li>
<li>Transparência da Tecnologia: Propõe-se categorizar os sistemas de IA por níveis de risco, como 'risco excessivo' e 'alto risco'. Os primeiros são sistemas que reproduzem decisões com viés discriminatório ou que colocam em perigo a saúde ou a vida dos usuários, enquanto os segundos dizem respeito às IAs que decidem sobre temas de alta importância para os usuários, como análise de crédito. Se a classificação for 'risco excessivo', seu funcionamento não será autorizado. No caso de classificação como 'alto risco', a legislação propõe a criação de medidas de governança, como a publicação do código utilizado, a avaliação de impacto e a implementação de mecanismos de prevenção de incidentes. Enquanto ainda não temos tal classificação, há uma certa facilidade em encontrar <a href="https://veja.abril.com.br/tecnologia/exposto-a-internet-robo-da-microsoft-vira-racista-em-1-dia">robôs que utilizam IA, agindo com viés discriminatório</a>.</li>
<li>Responsabilização do Produtor: A iniciativa determina que as empresas produtoras de tecnologia sejam responsáveis civilmente por reparar danos materiais e morais causados por seus sistemas de IA. Além disso, a norma prevê sanções administrativas para as empresas que não cumprirem o estabelecido.</li>
</ul>
Ainda há pontos a serem definidos pelo Poder Executivo, como a identificação do órgão responsável pela supervisão e fiscalização das tecnologias que utilizam IA. A partir desse marco regulatório, o Estado busca utilizar a transparência algorítmica e sistemas de correção para garantir direitos fundamentais que podem ser afetados por sistemas de IA, reconhecendo sua crescente importância e uso em nosso cotidiano.
<h3>PL das Fake News</h3>
Em outra frente, o PL das fake news (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735">PL 2630/2020</a>) surge como uma tentativa de combater a disseminação de desinformações. De autoria do senador<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/alessandro-vieira"> Alessandro Vieira</a> (MDB-SE) e relatado pelo deputado <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/orlando-silva">Orlando Silva</a> (PCdoB-SP) desde 2020, o PL 2630/2020 passou por uma profunda reconfiguração em meio a dezenas de audiências públicas e centenas de especialistas ouvidos. Na versão apresentada à Câmara dos Deputados em abril de 2023, a chamada 'Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet' propôs instituir três pilares:
<ul>
<li>Liberdade na Internet: A proposta reforça a liberdade de expressão online, preservando direitos constitucionais, como a liberdade de crença religiosa e manifestação política, desde que essa liberdade não seja usada para cometer crimes. No entanto, sem a lei, vimos a liberdade de expressão e o direito à privacidade serem usados como argumentos pelo <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/26/telegram-nao-entrega-dados-completos-a-pf-sobre-neonazistas-e-justica-determina-suspensao-da-plataforma-no-pais.ghtml">Telegram ao recusar-se de entregar os dados dos usuários envolvidos em tais crimes</a>.</li>
<li>Responsabilidade na Internet: A lei estabelece que as plataformas são co-responsáveis pelo conteúdo impulsionado por usuários, incentivando-as a filtrar melhor o conteúdo e evitar a propagação de informações que violem as leis brasileiras. Sem essa lei, <a href="https://www.intercept.com.br/2021/12/18/facebook-lucrou-anuncio-brasil-paralelo-associa-simone-de-beauvoir-a-pedofilia/">plataformas como o Facebook (Meta) aprovaram anúncios com desinformação, colocando vidas em risco</a>.</li>
<li>Transparência na Internet: A lei exige que as plataformas forneçam relatórios periódicos sobre como moderam o conteúdo e quais critérios seus algoritmos usam para aumentar ou restringir o alcance dos usuários, promovendo uma competição informacional mais justa. Sem a lei, <a href="https://desinformante.com.br/shadowban-a-censura-de-leve-que-esta-codificando-a-conversa-no-instagram/">vemos práticas como shadowban</a>, que restringem o alcance de usuários que expressam opiniões divergentes, sem transparência.</li>
</ul>
É importante notar que a lei não dá ao Estado a autoridade para censurar publicações específicas, pois a moderação de conteúdo continua a ser responsabilidade das plataformas. A diferença é que as plataformas devem tornar seus processos e critérios transparentes, garantindo que cumpram a legislação brasileira e promovendo a diversidade de opiniões na internet. Logo, não se trata de regular os conteúdos publicados por usuários, mas regular as Big Techs, as companhias por trás das tecnologias.
<h3>Tecnologia: para quem e para quê?</h3>
À medida que nos aprofundamos no dilema apresentado por Blade Runner, fica evidente que a questão fundamental transcende a mera regulamentação de tecnologias; ela se estende às próprias entidades que as desenvolvem, notadamente as gigantes do setor tecnológico, as chamadas 'Big Techs'. Assim como no filme, onde os replicantes eram produtos moldados por interesses corporativos, a inteligência artificial e seus algoritmos não operam em um vácuo neutro, mas são forjados por influências e agendas que merecem escrutínio.
Nesse contexto, enquanto navegamos pelos desafios e oportunidades de um mundo saturado de tecnologia, devemos definir limites que garantam nossa integridade como sociedade, assegurando que a linha entre o que é real e o que é simulado permaneça nítida. À medida que as fronteiras entre o humano e o artificial se esbatem, aprimorar nossa capacidade de compreender e moldar a realidade emerge como um pilar fundamental para a preservação de nossa humanidade.
Até porque, Blade Runner nos serve como um lembrete vívido de que, em última análise, devemos ser os narradores da nossa própria história, mesmo em um mundo cada vez mais repleto de tecnologia. Caso contrário, em meio à tanta disputa sobre a realidade, corremos o risco de nos tornarmos meros espelhos e replicantes das tecnologias que construímos, mas que nos moldam diariamente.

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JOTA

Capacidade de compreender e moldar a realidade emerge como pilar fundamental para a preservação de nossa humanidade

O que Blade Runner, o PL da IA e o PL das Fake News têm em comum?

Corremos o risco de nos tornarmos meros espelhos e replicantes das tecnologias que construímos, mas que nos moldam diariamente