Daniel Giotti de Paula

José Paulo Sepúlveda Pertence “encantou-se” em 02 de julho de 2023.
A linda expressão de seu conterrâneo mineiro, o escritor Guimarães Rosa, cabe bem, não só pela casual afinidade de origem, mas por ter ele um legado, que não deixará de se agigantar ao longo dos anos, prolongando de fato sua existência rumo à imortalidade de quem nos deu muitas ideias e ideais.
Ao saber de seu passamento, recordei-me de uma conversa que tive com o professor Marciana Seabra de Godoi, quando me disse que escreveu os livros “Questões atuais do direito tributário na jurisprudência do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>” e “Crítica à jurisprudência atual do STF em matéria tributária”, porque admirava intelectualmente vários dos ministros do tribunal daquela época.
Assim, como admiro a trajetória do ministro Pertence, sigo o exemplo e o homenageio, analisando votos que me impactaram e me deram insights para trabalhos acadêmicos.
Antes, porém, é apropriado traçarmos um perfil do ministro.
Mineiro de Sabará, Pertence foi personagem importante na transformação pela qual passou o STF, pelo menos de 1964 em diante.
Após ter sido vice-presidente da UNE, passou a assessorar Evandro Lins e Silva, um dos ministros do STF cassados pelo AI-5, sendo que ele próprio foi também cassado durante a ditadura, quando já era professor de Direito da UNB e membro do Ministério Público.
Foi advogar e quase duas décadas depois tornou-se Procurador-Geral da República, participando ativamente da formulação institucional que levou ao protagonismo do Ministério Público, de cujos excessos era crítico.
Tomou posse como ministro do Supremo Tribunal Federal, após indicação pelo presidente José Sarney, em 1989.
Ocupando o cargo máximo na jurisdição constitucional, consolidou sua posição como um dos maiores juristas da 2ª metade do Século XX e início do Século XXI.
Por isso, ex-ministros e grandes juristas como Celso de Mello, Gustavo Binenbojm e André Cyrino consideram-no, respectivamente, como um “gigante no campo do Direito”, um “maestro soberano” e um autêntico exemplo de “Lawyer-Statesmen”.
Sem ter a perspicácia de nenhum dos três, a quem atribuo “um conjunto de valores que valoriza o bom senso acima da competência técnica e incentiva uma devoção de espírito público à lei”, fazendo deles também “advogados-estadistas” ou “juristas-estadistas”, explico como me aproximei dos ensinamentos do ministro Sepúlveda.
Ainda jovem estudante de Direito, depois jovem advogado e, mais à frente, já não tão jovem Professor de Direito e Procurador da Fazenda Nacional, fiquei maravilhado com o raciocínio aguçado e a argumentação precisa nos votos do ministro Sepúlveda, a cujos entendimentos chegava de forma dialética, dialogando com seus pares.
Graças à TV Justiça, transmitindo os julgamentos do Plenário, podíamos vê-lo em ação, ostentando essas virtudes.
Muitas vezes, sem trazer voto previamente preparado, ele de bate-pronto trazia comentários em apartes, apresentando oralmente ou por escrito seus votos-vistas ou abrindo divergência, indicando qual seria a melhor decisão.
Por isso, o qualificativo de “gigante no campo do Direito”, dado pelo ministro Celso de Mello, não faz parte do rol daquelas homenagens protocolares e discursos laudatórios a quem “se encantou”.
O maravilhamento com a inteligência jurídica do ministro Sepúlveda Pertence levou a que eu buscasse suas lições.
Eis algumas delas.
Na ADIn 98, sob sua relatoria<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, ele nos ensinou que não se pode conceber a separação de poderes como uma “fórmula universal, apriorística e completa”, devendo-se utilizar com parcimônia concepções abstratas e universais antigas, bem como a experiência de outros países, devendo-se focar no “modelo brasileiro vigente de separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição de 1988”.
A ênfase colocada “na formulação positiva do constitucionalismo republicano brasileiro” alerta para o perigo de se importar teorias e doutrina estrangeiras incompatíveis com o texto constitucional, tanto no estabelecimento de modelos institucionais, quanto na interpretação e aplicação do direito.
Na ADIn 2<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, discutindo-se a constitucionalidade de termos de dispositivos de leis tributárias, o ministro Sepúlveda Pertence votou pela declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, apontando para “a orientação histórica, na doutrina brasileira, da nulidade da lei constitucional”.
Durante a apresentação de seu voto-vista, ele contou que, em certa feita, foi consultado por técnicos de determinado setor governamental sobre uma proposta de decreto-lei, advertindo-os de que o ato normativo não passaria “pelo primeiro juiz de plantão”, pois a “inconstitucionalidade é bradante”.
Os técnicos teriam lhe dito que não possuíam expertise para discutir sobre inconstitucionalidade, mas, tomando determinada lei “X” como exemplo, informaram que a arrecadação dela estava em 85%, “porque a maioria [dos contribuintes] não vai a juízo”.
Para o ministro, portanto, sucedia com os pequenos tributos uma espécie de inconstitucionalidade útil, “de qual modo que é grande o risco de estimular aventuras, se se asseverar, mais ou menos em linha de princípio, que leis tributárias só se declararão inconstitucionais com efeitos ex nunc: aí provavelmente a questão já estará morta”.
Aduziu, ainda, que se a Fazenda Pública quisesse se precaver quanto à constitucionalidade ou não de normas teria a seu dispor, desde a Emenda Constitucional n. 3, da ação declaratória de constitucionalidade.
Consta que o termo inconstitucionalidade útil teria sido usado pelo ministro Marco Aurélio. Todavia, essas reflexões do ministro Sepúlveda Pertence também influenciaram um dos maiores tributaristas brasileiros, professor Ricardo Lobo Torres, a identificar o fenômeno e colocá-lo como uma das expressões da imoralidade da Administração Tributária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Mais do que isso, o magistério do ministro Sepúlveda Pertence, com a vivência em vários cargos das Funções Essenciais da Justiça, comprova essa característica de jurista de “incentivador de devoção ao espírito público da lei”.
Outra manifestação lapidar do ministro Sepúlveda Pertence se deu ao conceder medida cautelar na ADIn 2377, quando, literariamente, assentou que “a solitária força de paz aquartela-se neste salão: é o Supremo Tribunal Federal, que tem feito recolher-se ao bom comportamento constitucional todos os beligerantes que, um dia, denunciam, mas, no outro, são denunciados” <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Apontou limitações institucionais que, naquele momento, impunham-se ao STF na tentativa de resolver as guerras fiscais entre os Estados federados, mas, na feliz expressão dele, “inconstitucionalidades não se compensam”.
Ainda no que toca à tributação, num tema de minha especial predileção, a imunidade religiosa, o ministro Sepúlveda Pertence, durante o julgamento do RE 237.718, segundo acurada observação de Marciano Seabra de Godoi, explicitou que “a imunidade dos templos não pode chegar a construir um incentivo ou subsídio à manifestação religiosa”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Apesar de ter me inspirado mais diretamente nas lições do ministro Aliomar Baleeiro acerca do tema, foram importantes as reflexões do ministro Sepúlveda para eu defender o resgate da imunidade religiosa como garantia, e não fomento, na jurisprudência brasileira<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Antes de se popularizar na comunidade jurídica brasileira a distinção entre texto e norma por Humberto Ávila<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, o ministro Sepúlveda Pertence, apreciando um caso, considerou em abstrato como constitucional certa prerrogativa dada à Fazenda Pública, embora admitisse que, no caso concreto, poderia haver uma inconstitucionalidade.
Citei vários casos tributários ou constitucionais, mas não posso deixar de mencionar ao menos um entendimento do ministro Sepúlveda em matéria penal, uma de suas especialidades e na qual se percebia sua verve garantista.
Contrariamente à maioria que se firmara na época do julgamento do HC 69.657-1/SP<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, quando se considerou constitucional o cumprimento em regime integralmente fechado para os crimes hediondos, forte na ideia de que haveria uma individualização em abstrato da pena tratando de forma igual todos os que cometessem delitos desta natureza, declarou o ministro que tal ideia de individualização in abstrato lhe parecia uma contradctio in terminis.
Ao terminar este texto, ficam em mim três certezas.
A primeira é de que essas minhas reminiscências revelam como o ministro Sepúlveda Pertence impactou indelevelmente minha formação jurídica.
A segunda é que realmente foi ele um dos responsáveis por “empurrar o Tribunal (STF) para consolidação dos novos princípios e direitos previstos na Carta de 1988”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, opondo-se às conceções do ministro Moreira Alves, de quem era amigo, porém, de traço mais conservador e que interpretava a Constituição à luz dos parâmetros interpretativos do Direito Privado clássico.
Parte desse projeto de um STF mais responsivo deu-se na própria prática judicante de Pertence, que cobrava mais interação entre os Ministros do Tribunal, criticando essa face do Tribunal como “um arquipélago de onze ilhas incomunicáveis”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, na feliz expressão dele.
A terceira certeza é de que eu gostaria muito de ter conhecido também o José Paulo, símbolo da simplicidade do homem, a quem todos chamavam de Ministro por respeito institucional e por sua autoridade moral e intelectual de “jurista-estadista”, mas que tinha a genialidade de saber que “a simplicidade é o último grau de sofisticação”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL, STF, Pleno, ADIn 98, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU em 31.10.1997.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL, STF, Pleno, ADIn n. 2, Rel. Min. Maurício Côrrea, DJ em 01.12.1995.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume II - Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 21-27.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRASIL, STF, Pleno, ADI 2377 MC, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 22.02.2001, DJ 07.11.2003.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> GODOI, Marciano Seabra de. Questões atuais do Direito Tributário na Jurisprudência do STF. São Paulo: Dialética, 2006, p. 47.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ver PAULA, Daniel Giotti de. DEUS, PALAVRAS E IMPOSTOS: a imunidade religiosa à brasileira e a necessária mudança hermenêutica rumo à natureza garantista e à função protetiva do Estado laico. In: RDFT – Revista de Direitos Fundamentais e Tributação, v. 2 n. 1 (2017), pp. 118-139.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 33-38.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BRASIL, STF, Pleno, Relator ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão ministro Francisco Rezek.
<ol start="1992">
<li>
J. 18/12/1992. DJ 18/06/1993.
</li>
</ol>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 285.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Idem, p. 44

sepulveda pertence

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JOTA

Uma breve memória jurisprudencial do maior de todos os ministros do STF

O que aprendi com o ministro Sepúlveda Pertence?

Uma breve memória jurisprudencial de Sepúlveda Pertence, o maior de todos os ministros do STF e considerado um dos maiores juristas do país.