Felipe de Paula

Propostas convencionais de “reforma” do ensino jurídico, comumente restritas a ajustes de grades curriculares, apresentam-se sob diferentes lentes. Partem da substituição fragmentada de disciplinas com pouco fôlego por outras ditas “contemporâneas”, passam pela tentativa de reequilíbrio, por vezes aleatório e acrítico, entre disciplinas propedêuticas e instrumentais, e, em alguns poucos casos, discutem mudanças experimentais em metodologia de ensino.
Propostas mais densas de efetiva reforma preocupam-se, por seu turno, com o objetivo central do ensino e com a função do sistema jurídico-institucional. Questionam o papel do direito e de seu profissional na sociedade. Fomentam a avaliação crítica do quadro normativo posto e das relações de poder que o instauraram. Investem na criação e na reformulação de instituições com vistas a alterar padrões que perpetuam o status quo. Aqui reside o debate proposto pela reforma pedagógica discutida na Faculdade de Direito da USP, que provoca ao partir da ideia do “Brasil como problema”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Adotada a segunda linha, alternativas de fomento ao ensino crítico e à consequente atividade jurídica que pense o país e remodele suas instituições têm sido levantadas. Tento avançar aqui em uma delas: a necessidade de se repensar a abordagem acadêmica do ato normativo em si e de seus processos reais de construção, tendo em vista a dinâmica prática da criação legislativa, com o objetivo de qualificar a participação em tais processos e os resultados legislativos.
<h3>O descasamento entre academia jurídica e elaboração normativa</h3>
Embora crescente nos últimos anos, e apesar do bacharelismo que orbita a prática governamental, ainda é baixa a participação não interessada de acadêmicos do direito nos debates legislativos brasileiros<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Também é bastante limitado seu interesse pelos processos reais de elaboração normativa, pelos jogos de poder que criam instituições mais ou menos abertas e inclusivas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, pelos efeitos distributivos das opções legislativas, pela qualificação normativa. Uma busca no diretório de grupos de pesquisa no Brasil do CNPq demonstra o abismo entre a atenção dada à aplicação e à interpretação normativa e, ao revés, aos seus processos construtivos.
A ausência de avaliações estruturadas sobre a criação da lei e suas funções assusta e preocupa. Como consequência, nos mantemos presos à abordagem tradicional do ato normativo, trabalhando apenas sobre o texto pronto e consolidado, deixando em terceiro plano a fase pré-normativa. Recebemos como dado de realidade, ainda que a contragosto, uma das mais relevantes fontes do direito, e não damos importância devida a diagnósticos e prognósticos. Reproduzimos escolhas que não cogitamos construir, avaliar ou interferir, e que por muitas vezes, especialmente no cenário brasileiro, replicam mazelas que poderíamos almejar alterar. Compramos pelo valor de face a “vontade” ou a “racionalidade” do legislador, seja ele quem for, sem entender o quão diverso, complexo e conflitivo é, na prática, esse ente que equivocadamente reduzimos.
Não há muita clareza acerca do momento ou dos motivos que ensejaram tal divórcio. Algumas hipóteses merecem ser testadas para interpretar, ainda que parcialmente, tal descolamento: (i) uma de cunho teórico-filosófico – não caberia à ciência do direito invadir o campo da política –; (ii) uma de cunho instrumental – falta de abertura e de instrumentos necessários ao acadêmico para a participação no processo legislativo –; (iii) outra de cunho volitivo-temporal – diferença de tempo entre a produção doutrinária e a prática político-normativa<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. O fato é que tal afastamento se reproduz, e é reproduzido, nos bancos do ensino jurídico.
Um olhar apurado e estruturado sobre os processos reais de produção normativa e sobre as características do ato normativo contemporâneo deveria ser central quando se considera o direito como parte do problema e da solução. Entender as dinâmicas de construção das normas e imaginar como participar ativamente delas não nos deveria ser, à partida, vedado. Nem na prática, nem no ensino.
<h3>O Processo Legislativo como Relevante, mas Insuficiente</h3>
Não se nega a importância que o direito constitucional atribui ao processo legislativo, importante campo de estudo na academia jurídica brasileira. Contudo, a atual abordagem parece frequentemente limitada.
Para além da tradicional descrição de fases e competências, quando muito se debruça sobre poderes e direitos dos representantes, sobre truques procedimentais anedóticos e sobre o que mais deriva de um complexo emaranhado de artifícios oriundos de regimentos internos conhecidos por poucos.
<blockquote class="jota-article__eye">Não obstante, e embora isso seja do conhecimento daqueles que dominam profundamente a prática legislativa, no ensino jurídico não se vai a fundo para entender a racionalidade da dinâmica legislativa e das forças reais de poder que ali atuam.</blockquote>
Se na reforma do ensino interessa a qualidade e a efetividade de normas e instituições legalmente criadas, e seus objetivos frente aos desafios do país, compreender quem e por quê se legisla, quais as forças motrizes do ato normativo, quais as ferramentas de atingimento de consensos intra e extra Parlamento, e quais os entraves a inovações tanto procedimentais quanto de instrumentos legislativos, não devia passar ao largo do debate jurídico.
<h3>Componentes de uma Agenda Jurídica sobre Elaboração Normativa</h3>
A agenda de ensino e pesquisa de elaboração normativa é ampla. Partiria da ideia de que efetivamente nos cabe repensar e refazer nossas instituições, mas que, para tal, conhecer e questionar o processo legislativo corrente, sem departamentalizações ou vedações temáticas apriorísticas, é imprescindível. Se o resultado legislativo não depende apenas do direito, não há outra forma de incidir sobre ele que não seja a de expandir investigações nas franjas de outros conhecimentos para compreendê-lo em seu todo.
Seja como for, creio haver elementos com premissas ou efeitos efetivamente jurídicos que merecem, desde já, maior atenção. Sem pretensão de esgotar as possibilidades, trago aqui alguns tópicos que ilustram o debate e que poderiam compor uma nova agenda:
Tipologia de Atos Normativos. É preciso evoluir profundamente na análise das funções e das características do ato normativo contemporâneo. Ao contrário da abordagem tradicional que enxerga atos normativos com feições praticamente idênticas, usualmente observadas de forma estática a partir do texto posto (lei-foto), na prática há uma tipologia funcional muito variada de leis, com características muito diversas entre si. Avaliações honestas deveriam ser capazes de afirmar sem medo que nem toda lei possui o mesmo grau de generalidade e abstração, quando o há, e que elas cumprem funções muito distintas – na política, no direito, nos efeitos almejados. E que, portanto, podem e devem ser examinadas sob sua especificidade.
Leis que instrumentalizam políticas públicas e que são avaliadas não apenas pela sua constitucionalidade, mas também pelo que fazem, por sua efetividade e performance, por exemplo, possuem espécie de ciclo de vida (lei-filme) que acompanha a política pública que estruturam, com formulação, avaliação e eventual ajuste futuro. Não é difícil perceber que isso altera significativamente desde os motores de sua (re)elaboração quanto sua avaliação e interpretação jurídica. Isso precisa estar sobre a mesa.
Motores Legislativos. Assumimos academicamente que propostas normativas relevantes nascem para solucionar problemas legais ou da vida real. Não obstante, há distintos motores que dão ensejo a projetos de lei e, eventualmente, a novos marcos aprovados.
Por certo há respostas a problemas legais e revisão de marcos de políticas públicas inerentes ao seu ciclo de vida. Mas também há respostas políticas a grupos de interesse, contrapontos ideológicos ou partidários a projetos de oposição, necessidade de engarrafar pautas de comissões e do plenário com objetivo de inviabilizar outras votações e não, propriamente, de se aprovar aquele texto – aliás, papel exercido com maestria pelas MPs quando o trancamento de pauta do plenário tinha interpretação mais ampla. Há ainda respostas a eventos midiáticos, como a conhecida legislação de pânico do direito penal. Em suma, há diferentes impulsos e funções que movem o processo legislativo, e seria relevante tipificá-los para melhor compreendê-los.
Papeis Ocultos no Processo Legislativo. Outro ponto chave para o ensino jurídico que se almeja partícipe da construção institucional é a correta compreensão do papel dos atores que compõem o fluxo normativo. O debate centrado na previsão constitucional de iniciativas legislativas e, quando muito, na suposta hipertrofia no Executivo no Brasil, que possui altas taxas de dominância sobre o volume total de projetos aprovados no Congresso Nacional, esconde atores e papéis que a prática legislativa escancara.
Há toda uma agenda bastante avançada na ciência política – e pouco considerada pelo direito – relativa à atuação de grupos de interesse e de pressão no processo de elaboração normativa, seja diretamente, seja via representantes com laços corporativos fortes. Entender os motores da lei precisa passar por essa avaliação e, também, por aventar mecanismos mais transparentes e equânimes de acesso a decisores.
Por mais paradoxal que pareça, o papel real do Executivo também é frequentemente subdimensionado. A despeito da denúncia da suposta hipertrofia – que aliás pouco considera a função contemporânea do ato normativo como espécie de instrumento de gestão governamental que se expande mundialmente –, finge-se que ele atua quase que exclusivamente, ou majoritariamente, nos projetos de sua iniciativa, quando na prática ele incide sobre toda a agenda. O Executivo efetivamente participa da elaboração dos textos finais de quase todo projeto relevante levado a plenário, sugerindo a priori ajustes e apontando vetos a dispositivos na negociação com líderes e relatores. Na prática, isso significa que a relação entre os poderes Executivo e Legislativo estudada à luz do desenho da Constituição, bem como seus efeitos, merece ser repensada.
Mecanismos de Solução de Impasses legislativos. As usuais críticas ao legislador que não “resolveu” determinada questão na lei, que deixou para regulamento parte relevante de determinado marco regulatório, ou mesmo que se utilizou de cláusulas genéricas como a recorrente “ficam sujeitos a sanções penais, cíveis e administrativas previstas em lei”, também parecem perder uma face da dinâmica legislativa concreta.
Embora alguns questionamentos tenham razão de ser, apenas a investigação da dinâmica negocial relativa a cada ato normativo é capaz de dizer se se trata de um equívoco, de um desleixo, ou se, ao revés, a “não solução”, sua “postergação” mediante referência a ato regulamentador ou o uso de dispositivos genéricos abstratos não significou, em verdade, a única alternativa frente a um impasse negocial. É preciso aventar a hipótese, dentre outras, de que grupos contrapostos não cederam e, em prol de um avanço parcial, postergaram a batalha jurídica ou distributiva que ali se colocava.
Nesse sentido, a crítica superficial à falta de soluções legislativas precisa ser suplantada por investigações acerca da racionalidade negocial que gera legislação. Compreender seus pressupostos pode impactar tanto a avaliação das forças reais de poder que estiveram em campo naquele tema quanto os próximos passos daquele marco regulatório. E, eventualmente, sua interpretação.
Política Regulatória no Legislativo. Como penúltimo ponto, há espaço para uma agenda voltada a se pensar em como levar o avanço das ferramentas de política regulatória – como análise de impacto e de resultado regulatório, controle de estoque, uso de testes e experimentos –, que inequivocamente tem o condão de qualificar a produção normativa de órgãos e entidades executivas, para a produção legislativa ordinária.
Assumindo-se que os objetivos da política regulatória se aplicam tanto a regulamentos quanto a leis ordinárias – qualificar a norma e seus resultados a partir da procedimentalização metodológica, partindo de melhores diagnósticos e prognósticos que avaliem diferentes alternativas –, é enorme o desafio de aplicar tais ferramentas em um processo complexo, caótico e por vezes errático como o processo legislativo, com multiplicidade de atores e rodadas paralelas e sucessivas.
Seria possível desenhar procedimentos de avaliações ex ante de propostas e emendas relevantes, considerado o tempo político e a tramitação por diferentes casas e comissões? Como garantir que propostas originais tecnicamente embasadas não sejam desnaturadas por ajustes de última hora, sem que se abdique do poder inerente aos membros do Parlamento? Seria possível qualificar a produção normativa com a obrigatoriedade do uso mínimo de dados e de avaliação de alternativas legislativo-regulatórias sem suprimir a disputa política? Como fomentar testes e experimentos legislativos pelo Parlamento, fazendo com que as leis sejam ciclicamente revistas? São perguntas que o ensino jurídico pouco considera, mas que poderia ser capaz de responder.
De Volta às Questões de Base. Finalmente, é essencial que o ensino jurídico consiga refletir e formular soluções para a crise de legitimidade e representatividade do Legislativo que, ao final do dia, produz sua fonte primária de trabalho. Deveria partir não apenas dos problemas partidários e eleitorais ou do aprendizado inerente aos escândalos recorrentes, mas também pensar sobre o papel de partidos e mandatários no processo de construção e ajustes de leis que instrumentalizam políticas públicas, por exemplo. Ou sobre o possível anacronismo dos processos legislativos no século XXI e sobre a falta de abertura efetiva a uma participação transparente e minimamente equânime de atores da sociedade civil.
Há estratégias institucionais de retomada da legitimidade do Poder Legislativo e de seus processos? Como pensar a atuação de partidos e de representantes à luz das características contemporâneas do ato normativo, tendo especialmente em vista seu ciclo de vida? Como avançar com a transparência no debate legislativo, garantindo-se a stakeholders a apresentação segura – e pública – de sugestões normativas para avaliação? Reformar um processo pouco compreensível, partindo de agendas legislativas prévias e de debates temporalmente definidos, resgataria a centralidade do debate legislativo? Tais perguntas também passam ao largo de nossos cursos, mas não podemos prescindir delas ao se construir um ensino jurídico transformador.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ensino-juridico-no-bicentenario-da-independencia-08042021?amp">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ensino-juridico-no-bicentenario-da-independencia-08042021?amp</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Faço a ressalva da participação “não interessada” dado o óbvio – e legítimo – papel de operadores do direito em debates normativos em defesa de clientes e associações, em que está em causa um interesse específico e não, necessariamente, o melhor desenho normativo frente a objetivos públicos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Daron Acemoglu, James Robinson, Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty, 2012.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Felipe de Paula, Processo legislativo, doutrina e academia: hipóteses de afastamento e efeitos deletérios. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, 2010.

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JOTA

Propostas densas de efetiva reforma preocupam-se com o objetivo central do ensino e com função do sistema jurídico-institucional

O processo de elaboração normativa na nova agenda do ensino jurídico

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