Luiz Fernando Marrey Moncau

Pela terceira vez, milhões de brasileiros ficaram por algumas horas sem acesso ao aplicativo WhatsApp, dessa vez após decisão do dia 18 de julho da 2a Vara criminal de Duque de Caxias. <a href="https://www.jota.info/justica-rj-determina-novo-bloqueio-whatsapp">https://www.jota.info/justica-rj-determina-novo-bloqueio-whatsapp</a>
Há uma importante diferença neste caso específico: pela primeira vez, o teor da decisão de suspensão do aplicativo foi dado ao conhecimento do público em geral. Apesar de tratar-se de procedimento sigiloso, a juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza andou bem ao dar publicidade à decisão, permitindo assim um debate mais amplo, franco e aberto sobre as razões de decidir, sua eficácia e sua proporcionalidade diante dos objetivos que busca atingir.
A primeira novidade é a confirmação de que a as autoridades buscavam acesso ao conteúdo das comunicações entre os investigados. O bloqueio do WhatsApp, portanto, não se deu por argumentos relativos à jurisdição ou pela recusa da empresa em entregar registros de aplicações, que revelam tão somente a data e a hora de uso do aplicativo, a partir de um determinado endereço IP (Internet Protocol). Como manda o Marco Civil da Internet, estes registros devem ser guardados pelo período de 06 meses e entregues somente mediante ordem judicial.
A interceptação do conteúdo das comunicações, por sua vez, está submetida à Lei 9.296/96. As informações transitam pelas redes que constituem a Internet – inclusive pelos servidores do WhatsApp – de forma criptografada (embaralhada, ininteligível). No WhatsApp (e muitos outros serviços), as mensagens são encriptadas e desencriptadas nas pontas. Em outras palavras, o usuário que envia uma mensagem – em uma ponta – embaralha a mensagem para que ninguém seja capaz de ler seu conteúdo. A mensagem viaja nesse formato até ser entregue ao aparelho do destinatário, onde pelo uso de uma chave de criptografia, é desembaralhada. Se o sistema funcionar adequadamente, ninguém no meio do caminho – nem mesmo o WhatsApp, provedor da aplicação – terá condições de ler a mensagem, a não ser que a chave do destinatário esteja comprometida. Mesmo nestes casos, um mecanismo sofisticado de criptografia (ver detalhes técnicos sobre o funcionamento da criptografia do WhatsApp, em inglês, aqui - <a href="https://www.whatsapp.com/security/WhatsApp-Security-Whitepaper.pdf">https://www.whatsapp.com/security/WhatsApp-Security-Whitepaper.pdf</a>) impede que todo o histórico de mensagens seja comprometido.
Entender minimamente este mecanismo (ainda que de maneira grosseira) é o primeiro passo para não incorrer em graves erros técnico-jurídicos, para não determinar algo impossível de se cumprir, bem como para não realizar escolhas jurídicas e politicas que sacrifiquem inteiramente nosso direito à privacidade.
Na decisão judicial, a juíza afirma que não solicita mensagens antigas, mas apenas a interceptação em tempo real das mensagens trocadas pelos investigados. Parece entender adequadamente, portanto, que o WhatsApp não possui mensagens antigas em seus servidores.
Entretanto, demonstra desconhecimento do sistema e da tecnologia em outra passagem, afirmando:
“Em verdade, o juízo requer, apenas, a desabilitação da chave de criptografia, com a interceptação do fluxo de dados, com o desvio em tempo real em uma das formas sugeridas pelo MP, além do encaminhamento das mensagens já recebidas pelo usuário e ainda não criptografadas, ou seja, as mensagens trocadas deverão ser desviadas em tempo real (na forma que se dá com a interceptação de conversações telefônicas), antes de implementada a criptografia.”
Dois pontos merecem consideração aqui. O primeiro, relativo a solicitação de que o WhatsApp entregue as mensagens já recebidas pelo usuário e não criptografadas. Há um duplo equívoco sobre o funcionamento do aplicativo pois, como visto, este não só não guarda as mensagens já entregues aos usuários, como as mensagens são criptografadas nas pontas, sendo ilegíveis também para a empresa. Isso significa que apesar do serviço ser percebido pelo usuário final da mesma forma que um serviço de SMS ou telefone, as duas tecnologias de transmissão possuem múltiplas diferenças, que apenas se aprofundam com o desenvolvimento tecnológico. Medidas possíveis em relação ao serviço de telefonia não necessariamente serão viáveis em relação à Internet.
O ponto mais grave, entretanto, diz respeito a solicitação da desabilitação da chave criptográfica. Trata-se de ponto crucial e que vai muito além do caso sub judice.
Como explica um grupo cientistas da computação de Harvard, Columbia, MIT, Cambridge e outras importantes universidades no artigo Keys Under Doormats (ou “chaves debaixo do tapete”, disponível em inglês em: <a href="https://www.schneier.com/academic/paperfiles/paper-keys-under-doormats-CSAIL.pdf">https://www.schneier.com/academic/paperfiles/paper-keys-under-doormats-CSAIL.pdf</a>), no atual estado-da-arte tecnológico, a flexibilização da criptografia para um usuário afetará inevitavelmente todos os usuários do serviço. Ou, em outras palavras, para investigar os suspeitos do crime em questão, a privacidade e os dados pessoais de todos os usuários, incluindo eu, você, ativistas, jornalistas, empresários e servidores públicos, seria comprometida.
Não se trata, portanto, de contrapor o interesse na privacidade dos investigados contra interesse da coletividade na segurança pública, como afirmou a juíza em sua decisão. Trata-se de contrapor o interesse coletivo de toda a sociedade na privacidade e na segurança (inclusive na proteção dos dados de todos diante de ataques de crackers e criminosos no ambiente digital), contra o interesse (também coletivo) na persecução criminal. Trata-se de ponderar adequadamente a privacidade, a liberdade de expressar-se sem ser vigiado e a presunção de inocência de todos, com o poder de investigação do Estado. Este conflito e muitos dos equívocos técnicos do debate estão bem explicados neste episódio do podcast Segurança Legal (<a href="http://www.segurancalegal.com/2016/03/episodio-97-criptografia-atras-das.html)">http://www.segurancalegal.com/2016/03/episodio-97-criptografia-atras-das.html)</a>.
Para que possamos avançar neste impasse, portanto, é importante fazer as perguntas corretas. Entre elas (e há muitas outras!), estão as seguintes:
<ul>
<li>Se a criptografia for flexibilizadas e as autoridades brasileiras puderem ter acesso a nossas comunicações, por que outras autoridades não teriam? Esta pergunta é gravíssima, e coloca o debate no centro de uma disputa geopolítica que vai muito além do caso concreto. Basta lembrar das revelações feitas por Edward Snowden, indicando como a segurança pode servir de motivo para espionagem de segredos industriais (no Brasil, a afetada foi a Petrobras) e até de missões diplomáticas. O debate aqui, ganha outras proporções.</li>
<li>Como proteger nossos dados, em um mundo permanentemente conectado, se comprometermos de maneira fundamental a criptografia? Este debate está se desenvolvendo atualmente no mundo inteiro, não pela primeira vez. Na Russia, recentemente, o presidente Putin determinou que as autoridades devem ter acesso a todas as mensagens enviadas em aplicações online (ver: <a href="http://sol.sapo.pt/artigo/515982/putin-acaba-com-a-privacidade-na-r-ssia)">http://sol.sapo.pt/artigo/515982/putin-acaba-com-a-privacidade-na-r-ssia)</a> e foi criticado por organizações de direitos humanos. Ver, em ingles (<a href="https://www.hrw.org/news/2016/07/12/russia-big-brother-law-harms-security-rights)">https://www.hrw.org/news/2016/07/12/russia-big-brother-law-harms-security-rights)</a> O debate está sendo replicado nos EUA, nos casos Apple x FBI, na Inglaterra e em vários outros países.</li>
<li>Quem deterá as chaves para decifrar mensagens criptografadas? Os cientistas do artigo citado afirmam: quem detiver os meios (chaves) para tanto, seja a companhia ou autoridades, tornar-se-á imediatamente alvo de ataques de cibercriminosos. E isso tornará todos nós mais vulneráveis. Não podemos esconder as chaves das nossas comunicações debaixo do tapete.</li>
<li>A existência da criptografia significa que as autoridades terão cada vez menos meios de investigação? A resposta para esta pergunta é um eloquente NÃO. Na verdade, com o avanço tecnológico, nossas comunicações deixam cada vez mais rastros, não menos. Isso é um motivo para levarmos ainda mais a sério as ponderações entre poderes de investigação e privacidade, e buscarmos um caminho que não sacrifique completamente nossa intimidade, com impactos imensos sobre a livre expressão e a democracia.</li>
</ul>
Tudo isso significa que a melhor forma de ponderar todos estes problemas, infelizmente, não virá de um juiz de primeira instância preocupado majoritariamente em viabilizar a investigação criminal. É preciso balancear este interesse com a promoção de um ecossistema saudável para a inovação, amigável à privacidade e à liberdade de expressão - interesses difusos e coletivos que precisam entrar na pauta do nosso Ministério Público. O legislador e o Supremo Tribunal Federal estão melhor posicionados para enfrentar esse desafio. Foi ponderando sobre o direito a livre expressão que STF suspendeu a decisão da 2a Vara Criminal de Duque de Caxias, e restaurou as comunicações pelo WhatsApp. A questão da criptografia, entretanto, ainda não foi enfrentada. E a solução para o problema, certamente, não é inviabilizar a comunicação de todo o País pelo prestador de serviço A ou B.
Nesse contexto, são extremamente relevantes as declarações do ministro da Justiça Alexandre de Moraes, afirmando que quer regulamentar a questão (<a href="http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/07/governo-elabora-projeto-para-regular-acesso-informacoes-do-whatsapp.html">http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/07/governo-elabora-projeto-para-regular-acesso-informacoes-do-whatsapp.html</a>). A má notícia é que este regulamento jamais será adequado se for elaborado por juristas, em um gabinete fechado, no Ministério da Justiça. Os primeiros sinais vão exatamente nessa direção, dando conta que a ideia inicial é obrigar as empresas a estabelecerem sede no Brasil (imagine que cada País aprove obrigação semelhante), criando um ônus para que prestadores de serviço entrem no mercado brasileiro. Se este caminho for seguido, o resultado previsto é um grande tiro pela culatra, com a indisponibilização de diversas aplicações para os usuários brasileiros.
Para avançarmos, a comunidade técnica e os especialistas em privacidade precisarão ser ouvidos, evitando problemas imensos para o funcionamento da Internet, para a segurança de nossos dados e para a inovação. Estará o ministro disposto a dialogar?

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O problema por trás do bloqueio do WhatsApp

Projeto do governo já começa errado