Cristiano Luzes

Começo essa reflexão com uma afirmação mais geral sobre nosso ofício, o direito. O direito é, por assim dizer, uma forma de guerra desprovida da violência. É uma forma de lidar com os conflitos que põe em suspenso a violência, mas que nunca suprime essencialmente o conflito – as partes continuam se antagonizando e defendendo seus interesses, de modo que não há sentido na crença ingênua de que o direito confere qualquer tipo de razão iluminista para a sociedade. Ou seja, devemos abandonar a crença em soluções “corretas”; uma regra jurídica é boa tanto quanto for capaz de sustentar uma mediação entre duas partes pelo máximo de tempo possível sem que recorram à violência. 
Há uma definição emblemática de Nietzsche que traduz bem isso: “o direito é aquilo que quero que o outro preserve para si”. Mas o que ele quer dizer? Que o direito é aquele tipo de regra que considero boa para mim, mas que posso admitir que meu adversário faça uso dela. Essa pode ser uma ideia possível de justiça: o equilíbrio dos antagonistas, de modo que possam continuar acreditando nas regras do jogo como uma forma razoável de resolver suas desavenças.  
Pois bem. O que isso tem a ver com o problema do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>)? Respondo imediatamente: uma boa regra para o processo administrativo tributário será aquela em que fisco e contribuintes possam enxergar uma forma equitativa e equilibrada de disputa. O que temos assistido, contudo, são sucessivas tentativas, de parte a parte, de criar sua própria regra para o jogo. O risco desse tipo de discussão é uma escalada tal que possa colocar o próprio jogo jogado em xeque. Ou seja, é o próprio Carf, como instituição de Estado, que perde sua força e sentido, e se vê ameaçado.  
Nos últimos anos, vimos um verdadeiro vaivém. Primeiro, a presença do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/voto-de-qualidade">voto de qualidade</a> conferiu excessivo peso para a posição da Fazenda Pública, de modo a confirmar condenações graves de multa qualificada, com suas implicações inclusive para sócios e gestores de companhias, mesmo diante de um quadro de dúvida objetiva que se manifesta no empate do colegiado. Como reação, os contribuintes emplacaram a regra do in dubio pro reo, agora também para o crédito tributário, como se sob a legalidade pudesse pender uma espécie de benefício da dúvida – na divergência interpretativa, não se recolhe o tributo, e assim se enfraquece o poder da Fazenda Pública sobre a aplicação oficiosa da lei, pois todo ato administrativo fica agora sob uma espécie de legitimidade provisória a ser confirmada pela maioria do colegiado, invertendo-se a lógica da presunção de legitimidade dos atos públicos. 
Eis que agora, com a <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155690">MP 1160/2023</a>, numa enérgica reação, o novo governo afasta a regra emplacada pelos contribuintes e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/a-uniao-passara-a-recorrer-a-justica-em-caso-de-derrota-no-carf-18012023">faz retornar a antiga regra do voto de qualidade</a>, sem qualquer debate público ou prazo de vacância, isso quando julgamentos importantes estavam prestes a ocorrer no Carf e, como previsto, tiveram seus resultados diretamente afetados por essa alteração.  
Parece que estamos a assistir um jogo duro, em que cada time avança para cima do juiz, tentando influir nas suas escolhas e no ritmo da arbitragem. E assim o jogo fica feio, o resultado poderá levantar dúvidas; ao fim, as partes podem ficar com o gosto de injustiça e tudo pode até acabar em pancadaria. 
Volto então a Nietzsche: “o direito é aquilo que quero que o outro preserve para si”. Qual é então a regra para o Carf que uma parte possa querer e ao mesmo tempo aceitar como justa para o seu adversário? Há de ser uma regra equilibrada, ponderada, que preserve o sentido da própria instituição.  
Qual o sentido de se fazer retornar o voto de qualidade por medida provisória? Qual a urgência dessa matéria? Por que não se iniciar o adequado debate público no foro apropriado? E por que manter sua aplicação para os casos de multa qualificada, em que se exige dolo, sendo o empate no Carf a mais clara demonstração de haver divergência interpretativa apta a afastar o intento de sonegação ou fraude?
De outro lado, qual o sentido de uma versão fiscal do in dubio pro reo para o crédito tributário principal, se a divergência ou dúvida na interpretação da lei não pode servir de escusa ao seu cumprimento? Não haveria de se prevalecer a presunção de legitimidade do lançamento, uma vez que o contribuinte poderá ainda recorrer à tutela jurisdicional e ao controle de legalidade externo?  
O Esfera Brasil e a Abrasca apresentaram ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-fazenda">Ministério da Fazenda</a> uma nova proposta para assentar a questão. O texto prevê, no caso de empate, a manutenção do crédito tributário principal, com a exclusão de multas e juros. Além disso, traz uma nova hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito para o contribuinte que recorre ao Judiciário – a garantia, que sempre foi um entrave para a revisão judicial das decisões do Carf, estaria dispensada. Parece ser o traço de um desenho mais bem acabado.  
Fato é que não há muita alternativa. Serão precisos esforços e concessões de todos os lados para que o jogo fique bonito e a partida não termine mal.

CARF

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JOTA

Qual o sentido de retomar o dispositivo via MP? Por que não fazer o adequado debate público no foro apropriado?

O problema do voto de qualidade no Carf e a necessidade do justo equilíbrio

Qual o sentido de retomar o voto de qualidade no Carf via MP? Por que não fazer o adequado debate público no foro apropriado?