Tiago Sousa Pereira

Juliano Alcântara Noman

Até a pandemia, o Brasil vivenciou nas últimas décadas um cenário de rápido crescimento do setor de aviação civil. Com a desregulamentação do transporte aéreo e a política de liberdade tarifária implementada a partir de 2001, a tarifa média para voos domésticos caiu em torno de 48%, passando de R$ 814,02 para R$ 420,87 (preços de 2019). Resultado disso é que o número de passageiros mais que triplicou nesses últimos 20 anos, passando de 31 milhões em 2001 para pouco mais de 95 milhões em 2019<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Após todo esse processo de desregulamentação econômica, temos um setor de transporte aéreo altamente competitivo, com regulação alinhada às melhores práticas internacionais.
Todavia, para a continuidade desse processo de popularização do transporte aéreo, é preciso reduzir a pressão sobre os custos da aviação comercial. Aspectos como o alto nível de judicialização, a carga tributária incidente sobre o leasing de aeronaves e o custo do querosene de aviação (QAV) são peculiares do Brasil, impactando sobremaneira o custo das empresas aéreas e, em última instância, o preço final do bilhete aéreo aos consumidores. O foco do presente artigo é o custo do QAV, o qual, segundo dados disponibilizados pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, representa mais de 30% dos custos de operação.
Esse percentual é superior à média dos demais países, que em 2019 girou em torno de 24%, segundo dados da International Air Transport Association (IATA). Nos Estados Unidos, por exemplo, a representatividade do custo do combustível nas operações das aéreas varia entre 15% e 20% de acordo com informações do Departamento de Transportes americano. Segundo publicação da ABEAR (2019),<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> o preço do QAV em voos domésticos brasileiros é 40% superior aos verificados em países desenvolvidos.
A associação atribui tal diferença ao critério de formação de preço do produtor monopolista, à tributação e aos custos logísticos. Embora não exista monopólio legal no mercado de QAV, a Petrobras é a única produtora, além de principal importadora desse combustível, com 99,13% do volume total importado em 2017. É também proprietária de 100% dos oleodutos de transporte.
Olhando mais detidamente para a formação dos preços do QAV, cerca de dois terços do custo do combustível de aviação são decorrentes do preço do fornecedor (produtor ou importador). O segundo fator relevante na formação do preço é a tributação: além de representar 20% do valor final do QAV, a ausência de uniformidade das alíquotas de ICMS por vezes gera distorções na logística de abastecimento. O último fator do custo do QAV é a margem de distribuição.
Para atacar os problemas que acarretam o aumento do preço do combustível, o Governo brasileiro tem trabalhado em todas essas frentes. A primeira, na esfera tributária, é a redução do ICMS pelos estados. As principais companhias brasileiras têm se valido nos últimos anos de acordos com os estados para a redução da alíquota do ICMS sobre o QAV, comprometendo-se, em contrapartida, a ampliar a oferta de voos para aquelas localidades.
Outra medida que vem sendo aguardada ansiosamente pelo setor é a introdução, no Brasil, de um novo tipo de querosene de aviação, o Jet-A, que já é comercializado no mercado internacional. Hoje somente o combustível Jet-A1 é produzido ou importado, mas a Agência Nacional do Petróleo (ANP) está conduzindo estudos para avaliar a introdução do Jet-A. A principal diferença entre os dois combustíveis é o ponto de congelamento, -47 °C para o Jet-A1 e -40 °C para o Jet-A. Considerando o clima tropical do Brasil, não faz sentido a exigência do Jet-A1, de forma que a possibilidade de utilização do outro produto, mais barato, tende a contribuir para a redução dos custos no fornecimento.
Por fim, cabe tecer algumas considerações a respeito do modelo de distribuição e revenda de QAV no Brasil. Em teoria, no mercado de QAV as atividades de distribuição e revenda competem entre si e não há, em tese, barreiras legais de entrada à atividade de distribuição de combustíveis de aviação (bastando, para tanto, uma autorização da ANP).
<blockquote class="jota-article__eye">Não obstante, o mercado está hoje concentrado em apenas três empresas, que detêm 99,6% do market share. No total, apenas sete empresas estão autorizadas a exercer esta atividade.</blockquote>
Nesse contexto, a ANAC e a ANP têm atuado de maneira proativa para discutir eventuais barreiras no modelo de distribuição do QAV que estejam impactando a concorrência de fornecedores nos aeroportos brasileiros. Para tanto, foi criado grupo de trabalho com a participação das duas agências, apoiadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e pelo Ministério de Minas e Energia, no âmbito do qual as associações das empresas de transporte aéreo destacaram a importância do aumento da concorrência nos aeroportos brasileiros. Ressaltam, ainda, que a livre concorrência no fornecimento requer acesso aberto à infraestrutura necessária para todos os participantes, além de clareza nas regras de entrada. O primeiro produto desse grupo de trabalho foi a Nota Técnica Conjunta n.º 001/2019/ANP-ANAC, cujas informações são utilizadas por este artigo.
Os problemas de competição no setor de distribuição do QAV residem na dificuldade de acesso de novos entrantes ao mercado de distribuição, seja acesso às bases primárias de distribuição (fora do sítio aeroportuário), seja às redes de hidrantes dos aeroportos com operação internacional robusta, como Guarulhos e Galeão (acesso dentro do sítio aeroportuário). No caso das bases primárias, o acesso é necessário para permitir que as novas entrantes possuam escala de operação nacional, podendo assim oferecer às companhias aéreas condições de revenda em competição com as grandes distribuidoras incumbentes.
Já no caso das redes de hidrantes nos grandes aeroportos internacionais, levantou-se, nos referidos estudos, que as distribuidoras geralmente operam em pool, ou seja, compartilhando a estrutura de rede. Isso se deve ao fato de que a duplicação da estrutura de rede é economicamente inviável, uma vez que se trata de investimento com elevados custos afundados, reduzido custo operacional e necessidade de escala. Por outro lado, o uso de hidrantes torna-se mais importante quando as aeronaves precisam ser abastecidas por grandes volumes de combustível, situação em que o acesso a essa infraestrutura representa vantagem competitiva. Assim, nesses grandes aeroportos internacionais com rede de hidrantes, a competitividade de qualquer novo entrante depende do acesso àquela rede. Outra característica específica de Guarulhos e Galeão é a recepção de QAV diretamente da refinaria por meio de dutos, o que os aproxima de uma base primária e, portanto, reforça a importância do acesso por novas distribuidoras.
Todavia, no Brasil, a maior parte dos aeroportos delega a exploração do parque de abastecimento de aeronaves, que inclui a rede de hidrantes, a terceiros. Estes, por sua vez, não têm quaisquer incentivos para permitir que outros concorrentes tenham acesso a essa rede, utilizando-se de diversos argumentos para evitá-lo, tais como incapacidade operacional dos novos entrantes e falta de critérios de precificação pelo uso da infraestrutura de hidrantes.
Tal foi o caso analisado pela ANAC no aeroporto de Guarulhos, o maior aeroporto internacional da América do Sul, concluindo pela aplicação de uma penalidade pecuniária (aproximadamente R$ 3,2 milhões) à concessionária por não obedecer à regra de acesso do contrato de concessão, bem como pela determinação de entrada de novos players. Esse mesmo caso está em análise no CADE, que investiga eventual abuso de posição dominante por parte das distribuidoras incumbentes e da concessionária – posição esta já confirmada pela Superintendência Executiva, cabendo agora a deliberação pelo colegiado de conselheiros.
A partir das discussões desse caso específico e, sobretudo, do diagnóstico de falta de competitividade explicitado na referida Nota Técnica, a ANAC concluiu que o arcabouço normativo existente pode ser aprimorado para reduzir a probabilidade de fechamento de mercado, sendo pertinente que a Agência estabeleça regras e diretrizes para evitar a falta de transparência e a imposição de critérios discriminatórios.
Assim, propõe-se a elaboração de revisão normativa que incorpore regras de consulta com vistas a favorecer que as decisões sejam tomadas por meio de soluções negociadas, a promoção do engajamento entre as partes, e, na ausência de acordo entre elas, a possibilidade de a ANAC exercer papel de arbitramento, levando em consideração as informações apresentadas por ambas as partes e o engajamento (ou a falta dele) de cada uma delas no processo de consulta e negociação. Ademais, estuda-se envolver a ANP nesse processo, de forma a conferir maior enforcement dos órgãos reguladores nessa matéria.
A despeito dos esforços da ANAC, é preciso destacar que ainda remanesce a necessidade de aprimorar a competição no setor de distribuição de QAV fora dos sítios aeroportuários, o que escapa à alçada da Agência. É preciso, portanto, trabalhar de forma estreita e coordenada com a ANP, para que as medidas adotadas até o momento não se percam e que se consiga, de fato, promover maior concorrência no mercado brasileiro de QAV.
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Referências
ABEAR. Panorama 2019. O Setor Aéreo em dados e análises. Disponível em: <a href="https://www.abear.com.br/wp-content/uploads/2020/10/Panorama2019.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.abear.com.br/wp-content/uploads/2020/10/Panorama2019.pdf</a>
ANP e ANAC. Nota Técnica Conjunta nº 001/2019/ANP-ANAC . Brasília, 2019.
O artigo contou com a colaboração de José Barreto de Andrade Neto, gerente de regulação econômica da ANAC
<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Fonte: ANAC – Dados Estatísticos e Relatório de Tarifas Aéreas.
<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Fonte: Painel de Indicadores do Transporte Aéreo 2019
<a href="applewebdata://3566C178-C430-4C1F-8BAB-80AFAE2C86FD#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ABEAR. Panorama 2017 – O setor aéreo em dados e análises.

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