Lucas Matos de Lima

Iniciar o presente artigo afirmando que o princípio da publicidade é de suma importância para efetividade dos direitos e manutenção da democracia pode soar redundante, mas dado ao atual momento da sociedade brasileira – que constantemente flerta com políticas negacionistas institucionalizadas – dizer o óbvio é imperioso.
Portanto, não há como falar em um Estado Democrático de Direito sem a presença marcante de tal axioma proposto como fundamento básico da análise que se segue.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Isto porque, quando fala-se numa democracia, temos como pressuposto que o Estado preste contas à população, afinal é preceito básico da Constituição Federal que todo poder emana do povo e se tudo emana do povo, à ele tudo se destina, portanto saber o que está sendo feito com o dinheiro público se relaciona diretamente com os princípios republicanos de uma democracia.
Nesse sentido, o agora ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, assim trata o princípio da publicidade na Medida Cautelar em Mandado de Segurança n° 24.725:
“Ao dessacralizar o segredo, a nova Constituição do Brasil restaurou o velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, cuja incidência – sobre repudiar qualquer compromisso com o mistério – atua como fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais. O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Veja, como bem pontuado pelo eminentíssimo Celso de Mello, a publicidade surge para pôr fim ao mistério, o qual esteve presente durante quase 25 anos de ditadura militar no Brasil. Durante esse período sombrio de nossa história, a publicidade dos atos perpetrados pelo Estado era praticamente nula, ainda mais no âmbito penal.
O caso emblemático do assassinato do saudoso jornalista Vladmir Herzog, que completou 45 anos no último dia 25 de outubro, é um clássico exemplo de como a máquina estatal foi utilizada para mascarar a cruel realidade de um Estado massacrante com a oposição política e com quaisquer pessoas que tinham como ofício informar à população sobre os desmandos de um Estado autoritário.
Nessa linha, de rigor salientar que as autoridades negavam informações aos advogados com base no artigo 20 do CPP, o qual foi insculpido durante o período conhecido como Estado Novo e encontra-se vigente até o presente momento com a seguinte redação: “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Os efeitos dessa norma jurídica, que rememora períodos antidemocráticos vividos pelo Brasil e escancara que normas abusivas foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, somente teve seus efeitos restringidos, de fato, após o advento da Súmula Vinculante n° 14 do STF em 2009.
A restrição do princípio da publicidade pode ser sinônimo de autoritarismo e, assim como a presunção de inocência, a publicidade é corolária de um sistema de garantias. Aliás, mais do que isso, “funciona como ‘garantia das garantias’ (FERRAJOLI, 2002, p. 632), relacionando-se ao cumprimento de princípios e regras e fazendo-se presente em discussões que permeiam todas as fases da persecução brasileira em seus detalhes ou temas gerais.”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Todavia, é fundamental ampliar o espectro de análise sobre o supramencionado princípio, na medida em que vive-se num mundo cada vez mais inserido nos meios digitais. O período vivido atualmente é chamado de a Era da Informação, que é conceituada pelo professor Luis Fernando Ascenção como “um termo utilizado para se referir à realidade tecnológica como mediadora das relações humanas e das interações entre máquinas, essas últimas cada vez mais autônomas” e que apresenta como uma das principais características a “hiperconectividade, ou seja, o fato de estar todo mundo conectado o tempo todo”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Tendo isso em vista e numa análise preliminar, poderia ser dito que a hiperconectividade e a velocidade e facilidade no acesso à informação seriam pontos positivos. Contudo, tal perspectiva não se coaduna com a realidade quando falamos da publicidade de atos jurídicos ao público.
Infelizmente, tornou-se cada vez mais interessante a espetacularização de casos midiáticos, principalmente aqueles ligados ao direito penal, uma vez que programas sensacionalistas não atuam com o dever de informação, mas com uma verdadeira deturpação do ideal republicano de fiscalização da atuação do Estado numa busca incessante por cliques, audiência e ibope.
Tal atuação, descomprometida com a verdade, já foi objeto de ação cível que culminou recentemente na condenação do apresentador do programa ‘Cidade Alerta’, Luiz Bacci, bem como da própria emissora, Record TV, que terão que pagar a quantia de R$ 50.000,00 para um homem que foi acusado pela reportagem de estuprar e matar sua enteada, tendo sua imagem veiculada com as alcunhas de “monstro” e “padrasto cruel”, mas que era eminentemente inocente, visto que o resultado morte da criança, diferentemente da notícia trazida pelo canal televisivo, foi causado por uma infecção pulmonar.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Vale salientar que não é a primeira vez que a emissora e o programa são vinculados a atos reprováveis. Em julho do corrente ano, foi noticiado pelo programa o desaparecimento de uma jovem e uma foto borrada do suspeito, junto a uma legenda que se referia a ele como ‘serial killer’. Horas depois e com o adendo da circulação desta informação em redes sociais, o suspeito foi linchado até a morte por populares em cena animalesca, sem o direito de defesa e com a inexistência da presunção de inocência.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Em justaposição, encontra-se a recente (e comemorável) decisão do Superior Tribunal de Justiça que vedou a utilização do reconhecimento por foto para embasar condenação criminal. No caso concreto, a vítima havia reconhecido o réu por foto e comunicou que sua altura era de aproximadamente 1,70 m, mas o acusado possuía 1,95 m.
Tais fatos apenas demonstram como interpretações dissociadas de um conjunto probatório sólido, tanto como o anseio por uma justiça retributiva nos moldes da Lei de Talião, são plenamente injustificadas.
A distopia 1984 imaginava um mundo controlado pelos olhos do Grande Irmão, porém, impulsionado pelas redes sociais e a facilidade de acesso à todo tipo de informação, nota-se um crescimento desenfreado dessa “família” que tudo vê. Os cidadãos comuns têm seus direitos restringidos sob a égide desta sistemática, enquanto outros, normalmente mais abastados financeiramente, conseguem encontrar mecanismos para se desvincilhar do poder estatal e mídia.
Quando tratamos o princípio da publicidade com interesses que se afastam do conceito inicial, temos que passar a refletir e sopesar as garantias fundamentais que estão em jogo. O princípio da publicidade que deve ser defendido é aquele que pode ser utilizado como um mecanismo de fiscalização e não o que atenta contra a própria população e contra os direitos à privacidade, da ampla defesa, do contraditório e de um julgamento justo.
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Episódio desta semana do ‘<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a>‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa os impactos das eleições americanas para a eleição de 2022. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=xRgH-5h1gH8
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Decisão disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=238&amp;dataPublicacaoDj=09/12/2003&amp;incidente=3730664&amp;codCapitulo=6&amp;numMateria=189&amp;codMateria=2&gt;. Acesso em 26 de outbro de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> LEITE, Larissa. O conteúdo da publicidade no processo penal brasileiro: uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores. 2012.
Disponível em: &lt;<a href="http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4172f3101212a200">http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4172f3101212a200</a>&gt;. Acesso em 20 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;https://fia.com.br/blog/era-da-informacao/&gt;. Acesso em 25 de outubro de 2020
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.brasil247.com/midia/record-e-condenada-a-pagar-r-50-mil-a-inocente-acusado-por-bacci-de-matar-enteada-de-dois-anos">https://www.brasil247.com/midia/record-e-condenada-a-pagar-r-50-mil-a-inocente-acusado-por-bacci-de-matar-enteada-de-dois-anos</a>&gt;. Acesso em 27 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt;https://istoe.com.br/homem-e-morto-a-tiros-apos-ser-exibido-como-suspeito-de-crime-no-cidade-alerta/&gt;.

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JOTA

Princípio da publicidade que deve ser defendido é aquele que pode ser utilizado como um mecanismo de fiscalização

O princípio da publicidade na era da informação

Princípio da publicidade que deve ser defendido é aquele que pode ser utilizado como um mecanismo de fiscalização