Cláudio Damasceno

O avanço da Operação Lava Jato enseja várias discussões, dentre as quais a criminalização da política. Atingiu-se um nível tal de degradação que muitos são os que acreditam numa espécie de solução externa, sebastianista, por meio da qual um único toque consertará tudo que está errado, colocando ponto final aos estarrecimentos diários. Porém, não parece que será dessa forma. A construção de uma nova sociedade é, sim, um parto doloroso. Obriga todos, sem exceção, a abandonar a zona de conforto. Nos exige mais fiscalização dos governantes, mais acompanhamento dos nossos representantes.
Sobretudo porque, mesmo com prisões e repetidos golpes contra a impunidade, presenciados por nós nesses três anos, ainda houve quem se sentisse à vontade na delinquência.
Quando a delação dos executivos da JBS veio à tona, soube-se que, num dos trechos das gravações feitas pelo empresário Joesley Batista, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures negociou o oferecimento de cargos em vários organismos de Estado. Entre eles a Receita Federal.
Por que a Receita Federal, de orçamento modesto?
Para ter acesso a informação privilegiada, pura e simplesmente. Nunca é demais lembrar que se os braços estatais de coerção começaram a entender o mecanismo da corrupção, foi porque finalmente a Receita Federal obteve autonomia para rastrear o dinheiro. O “follow the money” há muito conhecido das autoridades fiscais em várias grandes nações definitivamente vem sendo aplicado. É justamente essa trilha aberta pelos Auditores-Fiscais que a Lava Jato, e outras operações em curso já há algum tempo, vem seguindo.
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Falando claramente, o aparelhamento político da Receita Federal é o sonho de dez entre dez corruptos. Querem coisa melhor que obter acesso a informações antes de elas se materializarem em ações fiscalizatórias? Tem algo mais interessante que “sentar em cima” de uma investigação porque o mestre mandou?
A gravação de Joesley e Loures mostra que, supostamente, o Palácio do Planalto propunha um pacote completo de controle de órgãos de Estado por figuras conspícuas da iniciativa privada. O grupo JBS era um dos maiores financiadores de facilidades materiais e de campanhas eleitorais do País – com espantoso ecumenismo político, tanto no espectro ideológico quanto na escala de executivos e legislativos, indo do municipal ao federal.
Com as empreiteiras postas a nocaute pela Lava Jato, o dreno da corrupção tinha que procurar outros caminhos. O aprisionamento da Receita Federal, pelo que indicam as gravações vazadas, era um deles. Isso só reforça uma certeza que muitos tentam distorcer: um órgão de Estado deve, por definição, estar a salvo de caprichos de governantes, eternamente tentados a exercer controles indevidos em favor de apaniguados.
Da descoberta do Mensalão para a do Petrolão muita coisa mudou. Da mesma forma que a corrupção se aperfeiçoou, os mecanismos de fiscalização também, sobretudo proporcionados pelo avanço da tecnologia e da especialização do trabalho humano. Combinados, compreendeu-se melhor o desvio de recursos públicos. Com esse alicerce, toda uma corrente, da polícia ao Ministério Público, chegando à magistratura, tornou-se um instrumento incômodo para uma classe de personagens cevada na crença de que o coletivo não tem dono, e é de quem se servir primeiro. Os efeitos são devastadores, como temos assistindo, mas civilizatórios.
Tais atentados à soberania do Estado habitualmente são urdidos quando interesses escusos, econômicos e políticos, convergem. Joesley sabia com quem estava falando. Impossível, portanto, não achar que ações atentatórias à sociedade não sejam o nosso velho e histórico patrimonialismo, que os golpes da lei mal conseguem arranhar.
E não faltam barbaridades daqueles que se dizem representantes e porta-vozes do povo. Como classificar a MP 783? Quem aderir ao super-refis terá desconto de 99% em juros e multas, desde que, após uma entrada de 20% da dívida ainda em 2017, liquide o restante em janeiro de 2018.
O relatório final do deputado Newton Cardoso Jr. (PMDB-MG) para a MP traz mais. Concede a maior número de empresas o benefício de pagar uma entrada menor e ainda assim obter desconto. Antes, isso era só para débitos até R$ 15 milhões, mas o limite disparou para R$ 150 milhões. E, facilidade das facilidades, a alíquota do valor da entrada caiu de 7,5% para 2,5%.
Vamos dizer o quê a quem está em dia com suas obrigações tributárias? Que é um bobo?
O efeito imediato da MP é agravar mais uma situação fiscal já difícil. Se antes a projeção do governo era arrecadar entre R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões, com o super-refis não deve bater nem em R$ 2 bilhões neste ano.
O que deixar de ser arrecadado será aplicado noutro lugar? Onde? Em investimento e modernização por aqueles que a MP favorecerá? Em redução da fila do desemprego?
Somente se analisarmos com extrema boa vontade a intenção do super-refis. Mas, em ano pré-eleitoral, é previsível que parte expressiva daquilo que seria imposto e multa ganhe a forma de contribuição de campanha.
No Brasil, porém, o absurdo jamais é suficiente – há que torna-lo inacreditavelmente cínico. Na MP do super-refis incluiu-se uma emenda que acaba com o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Ou seja, se der empate nos julgamentos do colegiado do Ministério da Fazenda, a decisão será sempre favorável ao contribuinte – que entra no jogo ganhando de 1 a 0, pois que está escrito que no final a vitória será dele.
O que o preclaro relator ignora (ou finge ignorar) é que se o contribuinte for derrotado no Carf, ainda pode recorrer à Justiça na primeira instância, algo que a União não pode fazer. E outra coisa que poucos lembram (ou fingem esquecer): em abril passado, o Itaú venceu no Conselho um processo de praticamente R$ 23 milhões por conta da fusão com o Unibanco, por 5 a 3. Isso desmente aquela falácia de que as decisões do Carf são sempre enviesadas, todas em favor do erário público – que, não esqueçamos, é provido por todos nós.
Essa MP 783 é uma humilhação para o cidadão-contribuinte-eleitor, um atentado à sociedade. Deitar em berço esplêndido deixou de ser opção para os brasileiros. Cada um de nós tem a obrigação de denunciar esses e outros abusos.

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JOTA

MP 783 é uma humilhação para o cidadão-contribuinte-eleitor, um atentado à sociedade

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