André Castilho

Isayana Oliveira Silva

Paula Mariotti Feldmann

A Política Nacional sobre Mudanças do Clima (PNMC), instituída pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12807.htm">Lei 12.807/2009</a>, tem como objetivo o combate à mudança do clima, que consiste em um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Tal política também tem como diretriz o apoio à promoção de padrões sustentáveis de produção e consumo — objeto do ODS 12. O mesmo ODS 12 tem forte relação com a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída alguns meses após a PNMC, pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm">Lei 12.305/2010</a>. Apesar disso, ainda pouco se fala sobre a relação entre as políticas climáticas e as políticas de gerenciamento de resíduos sólidos, que têm diversos potenciais de sinergia.
Entre os potenciais, podemos mencionar desde o mais óbvio, o cumprimento das obrigações já previstas há mais de dez anos pela PNRS, como o encerramento dos lixões, até os menos evidentes, como a geração de crédito de carbono decorrentes da destinação ambientalmente adequada de resíduos sólidos.
Ainda, os quase 3.000 lixões atualmente existentes no Brasil, além de contribuírem para a emissão de gases de efeito estufa, afetam negativamente a vida de 7 milhões de pessoas. O descarte irregular de resíduos aliado a outras fontes de emissão de dióxido de carbono e metano acelera as mudanças climáticas, gerando maior preocupação com relação aos impactos imediatos das alterações do clima nas populações urbanas marginalizadas, comunidades tradicionais e países em desenvolvimento, que, historicamente vulneráveis, enfrentam maiores injustiças ambientais — racismo ambiental e consequentemente injustiças climáticas.
Nesse contexto, uma gestão eficiente de resíduos sólidos — em atendimento aos objetivos da PNRS — contribui também para o atendimento dos objetivos da PNMC e para o combate às injustiças socioambientais e climáticas, conforme explanaremos a seguir.
<h3>O encerramento dos lixões para a mitigação da emissão de gases de efeito estufa</h3>
Desde 2010, com a publicação da PNRS, já corria o prazo previsto de quatro anos para encerramento da disposição final de resíduos em lixões. O prazo não foi cumprido e apenas em 2020 foi prorrogado, por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a>, que determinou o encerramento dos lixões até 31 de dezembro de 2020, com exceção dos municípios que já tivessem elaborado o Plano Intermunicipal ou Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos e que tivessem mecanismos de cobrança que garantissem sua sustentabilidade econômico-financeira. Para essas exceções, a lei estipulou prazos a depender das características habitacionais dos municípios, prevendo o prazo máximo de 2 de agosto de 2024 para a implantação da disposição final ambientalmente adequada.
O desafio é bastante significativo se considerado que, de acordo com o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares) aprovado pelo recente <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11043.htm">Decreto nº 11.043/2022</a>, 53,9% dos municípios brasileiros ainda destinaram seus resíduos sólidos urbanos para lixões e aterros controlados em 2019. Segundo o Departamento de Economia do Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (SELURB), os lixões respondem por cerca de 6 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e), o equivalente ao gás gerado por 3 milhões de carros em um ano.
Já a decomposição dos resíduos orgânicos produz gás metano equivalente ao impacto da atividade do vulcão Etna, na Itália. Esses fatos são reconhecidos pelo Planares, que aponta que a destinação final ambientalmente adequada promoverá a redução de emissões de gases de efeito estufa e contribuirá para os esforços nacionais para o combate às mudanças climáticas, bem como para a adaptação aos efeitos adversos da mudança do clima.
Nesse sentido, estudo comparado da Companhia Ambiental de São Paulo (Cetesb) realizado em 2019 analisou o potencial de mitigação de emissão de GEE do modelo de gestão de resíduos adotado pelo município de São Bernardo do Campo (SP), considerando apenas a etapa de destinação em aterro sanitário. No estudo, pelo modelo atual de gestão, 1 tonelada de resíduos produz 1.348 kg de CO2e. Já o futuro modelo de gestão proposto pelo município, composto por um conjunto de soluções como a reciclagem, biodigestão/compostagem e aterro sanitário apresenta uma redução de aproximadamente 62% nas emissões de GEE devido à mudança na destinação final dos resíduos, passando dos atuais 1.348 kg de CO2e para 511 kg de CO2e para cada tonelada destinada adequadamente.
<h3>Avaliação do ciclo de vida dos produtos</h3>
Sob o ponto de vista do ciclo de vida dos produtos, a PNRS pode trazer importantes contribuições para a redução e mitigação das mudanças climáticas. Passada mais de uma década de sua vigência, pouco foi feito institucionalmente sobre o objetivo da PNRS de estímulo à implementação da avaliação de ciclo de vida do produto (ACV), restando a elaboração de tais estudos ao setor produtivo, de forma totalmente independente e com pouco (ou nenhum) incentivo. Da mesma forma, a implementação da PNRS focou na estruturação de sistemas de logística reversa de diversos setores, pouco avançando em seus objetivos a montante, como o estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e serviços e a adoção de tecnologias limpas na produção.
A ACV é um estudo técnico que identifica os impactos ambientais de um produto, desde a extração dos recursos naturais necessários à sua produção até o seu consumo, quando chega ao fim de vida e se torna resíduo (o escopo do estudo pode ser variável). Trata-se, portanto, de importante instrumento para a produção responsável, sendo possível averiguar, inclusive, o impacto climático de um determinado produto em todo seu ciclo de vida e podendo contribuir para o desenvolvimento de novos produtos e de ciclos produtivos com menor emissão de gases do efeito estufa.
<h3>Geração de créditos</h3>
Outra demonstração das potenciais sinergias entre o combate à mudança do clima e a gestão adequada de resíduos sólidos é a geração de créditos de carbono ou dos recém instituídos créditos de metano.
A título de exemplo, já existem metodologias aprovadas pelo Conselho Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e pelos padrões Verified Carbon Standard (VCS) e Social Carbon para geração de créditos de carbono em projetos de compostagem de resíduos orgânicos. Há também casos de aterros sanitários no Brasil que geraram créditos de carbono em decorrência do aproveitamento energético do biogás decorrente da decomposição de matéria orgânica, que seria eliminado na atmosfera.
Nesse contexto, foi instituída a nova Estratégia Federal de Uso Sustentável de Biometano (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11003.htm">Decreto nº 11.003/2022</a>), com objetivos de reduzir as emissões de metano, fomentar o uso de biogás e metano como fontes renováveis de energia e combustível e contribuir para o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Pacto Climático de Glasgow e do Compromisso Global de Metano. Para tanto, serão utilizados como fontes de biogás e biometano os resíduos de origem urbana e rural, incluídos os gerados em estações de tratamento de esgoto, os da cadeia sucroenergética, os de suinocultura e avicultura e os dispostos em aterros sanitários.
Essa política instituiu também o Crédito de Metano, ainda pendente de regulamentação. O cumprimento dos objetivos previstos na nova estratégia federal contribuirá simultaneamente para o atendimento à PNMC e à PNRS.
<h3>Combate ao racismo ambiental</h3>
As relações entre políticas de clima e políticas de gestão de resíduos são essenciais para o entendimento da injustiça e do racismo ambientais. A má gestão de resíduos acentua as desigualdades socioeconômicas de determinados grupos populacionais, à medida que os expõe a riscos de saúde e degradação ambiental. Não é à toa que o termo racismo ambiental foi consagrado nos Estados Unidos, em 1981, pelo líder afro-americano Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos propositalmente instalados e concentrados em áreas habitadas pela população negra norte-americana.
A ausência de políticas públicas de gestão integrada de resíduos sólidos nos municípios brasileiros, portanto, impulsiona diretamente a vulnerabilidade ambiental e social de determinadas áreas urbanas e regiões do Brasil, sobretudo o Norte e o Nordeste, que concentram os maiores índices de disposição final inadequada. Neste sentido, se considerarmos a análise CGR 2022 (Relatório de Lacuna de Circularidade) que conecta o uso de materiais e as emissões de efeito estufa e os alertas do 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apontando que os grupos historicamente explorados e privados de infraestrutura básica são as vítimas imediatas das mudanças climáticas, a intersecção entre injustiça social e injustiça ambiental resulta em racismo climático e, no caso dos resíduos, indica a relação direta entre clima, aspectos socioambientais e o gerenciamento dos materiais.
No Brasil, empreendimentos de alto impacto ambiental concentram-se em zonas urbanas com pouca infraestrutura, assim como o lançamento de resíduos tóxicos é direcionado a territórios indígenas, ribeirinhos, quilombolas, de pequenos produtores rurais e em comunidade cujas terras ainda não estão homologadas e plenamente reconhecidas: trata-se dos novos refugiados climáticos. Historicamente, os espaços em que vivem as populações marginalizadas se tornaram uma espécie de “quarto de despejo”, parafraseando Carolina Maria de Jesus, com a frase que dá nome ao livro em que a autora negra, catadora de papel e favelada descreve o cotidiano de precariedade a que era submetida.
<h3>Conclusões</h3>
Os diversos pontos de sinergia entre o combate às mudanças climáticas e o gerenciamento adequado de resíduos sólidos devem ser entendidos como oportunidades ao poder público e aos agentes privados, inclusive quanto ao aproveitamento de novas fontes de energia, geração de créditos e combate às desigualdades históricas. A busca pelos objetivos da PNRS poderá contribuir, direta e indiretamente, para os objetivos da PNMC. Pensando nisso, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/laclima">LACLIMA</a> inaugura neste semestre o seu Grupo de Trabalho sobre Clima e Resíduos Sólidos, com o objetivo de contribuir para o amadurecimento do debate jurídico sobre as possíveis sinergias entre os temas e que tentará trazer mais textos e discussões como o presente artigo introdutório.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Objetivo 13: Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos (reconhecendo que a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima [UNFCCC] é o fórum internacional intergovernamental primário para negociar a resposta global à mudança do clima).

gestão de resíduos

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JOTA

Potenciais sinergias entre políticas climáticas e gestão de resíduos devem ser vistas como oportunidades

O potencial climático dos resíduos sólidos no Brasil

Potenciais sinergias entre políticas climáticas e gestão de resíduos devem ser vistas como oportunidades no Brasil