Vitor Piazzarollo

Há cerca de meio século, o Prêmio Nobel de Economia de 1974 chamou a atenção por premiar dois estudiosos cujas visões econômicas caminhavam em sentido diametralmente oposto: o austríaco Friedrich von Hayek, fomentador do pensamento neoliberal; e o sueco Gunnar Myrdal, defensor do Estado intervencionista.
Sobre Myrdal, a sua reputação decorreu em grande parte da criação do conceito de “causação circular acumulativa”, ponto chave de sua teoria do desenvolvimento. Essa ideia, até então inovadora, ilustra a seguinte dinamica: se deixadas completamente livres as forças de mercado, há a tendência inescapável de pessoas e regiões mais pobres tornarem-se mais pobres, enquanto pessoas e regiões mais ricas tornam-se mais ricas.
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
O que tornou o pensamento do sueco completamente único foi a afirmação de que, embora à primeira vista possa parecer que a energia de atração de um centro econômico seja apenas “condições favoráveis”, a verdade, segundo Myrdal, é que o poder de atração de um centro econômico se origina principalmente de algum fato histórico fortuito.
Neste ponto, e sem prejuízo de eventuais aperfeiçoamentos da teoria anteriormente apresentada, ganha destaque o raciocínio de que o Estado seria o agente capaz de romper com maior eficácia círculos viciosos de empobrecimento, haja vista que pode propiciar a inovação, equilibrar regiões, inserir o país em cadeias globais de valor e tecnologia. Em síntese, criar as condições favoráveis para o desenvolvimento econômico.
Esse pensamento, naturalmente, tem o condão de direcionar a atenção para a dimensão Executiva do Estado, notadamente o aparato investido para tomar as decisões econômicas mais relevantes. No entanto, diante da urgência de incrementar o ambiente de negócios, destravar os canais de crédito e impulsionar o empreendedorismo no Brasil, outra dimensão do Estado merece atenção: o Poder Judiciário.
Neste contexto, surge a dúvida.
O Poder Judiciário se relaciona diretamente com a promoção do desenvolvimento nacional? Como?
Antes de passarmos à resposta, alguns dados precisam ser analisados.
Primeiramente, evidencia-se que para iniciar ou expandir um empreendimento, especialmente os micro e pequenos negócios, de onde muitas vezes germinam as ideias mais originais, é preciso capital. E, na corrida para engrenar um projeto, há duas alternativas que se destacam: ceder um pedaço societário da empresa para algum fundo de investimento e adquirir dinheiro; ou se sentar com algum banco e solicitar um financiamento.
A segunda opção é a mais comum, mas possui uma desvantagem latente, o tempo. Enquanto uma empresa inovadora precisa, mais do que nunca, acelerar para sair na frente, o mercado de crédito brasileiro apresenta uma série de exigências que podem atrasar o cronograma. Não sem razão, já que o Brasil é um dos países com pior índice de recuperação de crédito do mundo.
<img class="aligncenter size-full wp-image-304453" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/03/31-03-o-poder-judiciario-e-o-preco-do-dinheiro-v3-grafico-recuperacao-de-credito-mundo.jpg" alt="" width="620" height="360" />
Em estudo<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> realizado por Vitor Vidal<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e Marcel Balassiano<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> foi produzido o gráfico acima. Os números demonstram que no ano de 2018, no Brasil, no caso de calote, para cada dólar emprestado apenas 0,13 centseram recuperados quando perseguida a dívida pela execução. Valor consideravelmente abaixo da média mundial de 0,34 cents, e bem menor que o de países como o Japão, que apresentou a maior taxa de recuperação: 0,92 cents para cada dólar. Este dado evidencia como a segurança jurídica em caso de calote afeta diretamente os custos para emprestar.
Fato é que não existe mágica e o efeito não poderia ser outro. Diante do alto risco de se conceder empréstimos, a resposta das instituições financeiras é uma postura de salvaguarda, protegendo-se com juros altos o suficiente para compensar o risco e exigindo garantias para satisfazer seus créditos.
A baixa recuperação de crédito aumenta os custos administrativos de emprestar e, por consequência, influencia o spread praticado no país, isto é: a diferença entre as taxas pagas aos aplicadores dos bancos e as taxas cobradas aos tomadores de empréstimo. Em suma, o crédito fica mais caro para todos.
O gráfico abaixo, também presente no estudo de Vidal e Balassiano, demonstra a posição do Brasil enquanto o segundo maior spread do mundo, perdendo apenas para Madagascar. Vale mencionar que de acordo com levantamento<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> do FMI o Brasil atualmente ocupa a posição de 12ª economia mundial, enquanto Madagascar figura na 135ª posição. Ainda, e não por acaso, o Japão, que apresenta a melhor taxa de recuperabilidade de crédito, figura como menor spread bancário do mundo.
<img class="aligncenter size-full wp-image-304452" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/03/31-03-o-poder-judiciario-e-o-preco-do-dinheiro-v3-grafico-spread-mundo.jpg" alt="" width="653" height="388" />
Essa realidade reflete um verdadeiro imbróglio para o desenvolvimento nacional e atrapalha profundamente o setor produtivo que precisa captar dinheiro para investir.
Dessa maneira, para além de medidas legislativas e executivas que, no senso comum endereçam mais frontalmente os problemas do crédito no país (como um bom arcabouço jurídico para recuperação judicial e leis de garantias, entre outros) há outro elemento igualmente relevante, ainda que discutido em menor frequência, qual seja a atuação do Judiciário.
Lembrada de maneira mais frequente, a demora na finalização dos processos, cujo efeito é atrasar a recuperação do crédito, é um  elemento relevante para a equação, mas longe de ser o único. Decisões que protegem maus pagadores, inobservância de procedimentos de garantias, criação de critérios para revisão de juros que não encontram embasamento legal ou jurisprudencial, concessão de liminares sem provas suficientes: tudo isso interfere na recuperabilidade do crédito e afeta, ao final, os bons pagadores, que arcam com o preço de um sistema incerto.
De modo contrário, quando nas ações judiciais há a observância do pactuado, o devido rigor probatório, a efetiva análise do caso concreto e a escuta do contraditório, privilegia-se uma conduta que mais coaduna com a precaução, contribui para a estabilidade do sistema e acaba por reduzir os riscos das concessões de crédito.
Dessa forma, sobre esse debate, igualmente relevantes são as inúmeras discussões travadas em ações revisionais com o objetivo de alterar as bases das contratação dos produtos financeiros de forma unilateral.
<blockquote class="jota-article__eye">Sem dúvida, a possibilidade de alteração dos juros representa risco relevante na concessão de crédito, realidade que piora sem a delimitação de critérios minimamente consensuais entre graus da justiça e regiões do país.</blockquote>
Nesse sentido, destaca-se o antigo - e ainda atual - embate judicial sobre a possibilidade, ou não, de limitar os juros bancários, cujo último capítulo ocorreu em março de 2021.
Alinhado às boas práticas de uniformização da jurisprudência e garantia de estabilidade do sistema, o recentíssimo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, proferido no julgamento do Agravo Interno no AREsp 1.522.043/RS<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, enfrentou a questão da revisão de juros em produtos bancários.
A decisão colegiada reafirmou e aprofundou a orientação já adotada no julgamento do repetitivo REsp. 1.061.530/RS<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> que apregoou a necessidade da extensa análise do caso concreto, na hipótese de pedido de revisão de juros. Assim, na decisão publicada em 10/03/2021, a maioria compreendeu que:
<ol start="2">
<li>Prevaleceu o entendimento de que a taxa média de mercado apurada pelo Banco Central para cada segmento de crédito é referencial útil para o controle da abusividade, mas o simples fato de a taxa efetiva cobrada no contrato estar acima da taxa média de mercado não significa, por si só, abuso. Ao contrário, a média de mercado não pode ser considerada o limite, justamente porque é média; incorpora as menores e maiores taxas praticadas pelo mercado, em operações de diferentes níveis de risco. Foi expressamente rejeitada a possibilidade de o Poder Judiciário estabelecer aprioristicamente um teto para taxa de juros, adotando como parâmetro máximo o dobro ou qualquer outro percentual em relação à taxa média. 
3. O caráter abusivo da taxa de juros contratada haverá de ser demonstrado de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto, levando-se em consideração circunstâncias como o custo da captação dos recursos no local e época do contrato, a análise do perfil de risco de crédito do tomador e o spread da operação.</li>
</ol>
(grifos próprios)
Essa decisão, inédita pelo grau de sofisticação e endereçamento das questões, caminhou no sentido de garantir o sistema com maior confiabilidade, trazendo a segurança de que as operações, para serem revistas, precisam ser analisadas na lupa, inclusive com consideração de circunstâncias como custo de captação dos recursos no local e época do contratado, análise de perfil de risco, e spread da operação. Ou seja, deixou claro que o critério não pode ser unicamente a taxa de juros aplicada.
No caso em questão, o acórdão do Tribunal local havia reformado os juros unicamente por estarem 20% acima da média divulgada pelo Banco Central.
Além do dito acima, o Tribunal Superior ainda se manifestou, em suas razões, no sentido de que taxas bastante superiores à média divulgada pelo Banco Central podem não ser abusivas quando consideradas as peculiaridades como risco da operação envolvida, capacidade de pagamento e histórico de crédito do tomador do empréstimo.
Ao emitir decisões com este grau de refinamento o Poder Judiciário brasileiro adota postura alinhada com as melhores jurisprudências globais, contribui para um cenário em que a recuperação de crédito seja aperfeiçoada, a solidez do sistema se aprofunde e, finalmente, o spread brasileiro recue, fomentando a realidade em que o acesso à crédito seja mais barato, favorecendo o desenvolvimento nacional.
Essa prática, portanto, é um dos pilares de contribuição para uma economia vibrante, saudável e que estimule a competitividade entre ideias.
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O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
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<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em https://blogdoibre.fgv.br/posts/parcimonia-com-o-mercado-de-credito.
<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vitor Vidal é mestre pela FGV EPGE e graduado pela UERJ.
<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Marcel Balassiano é mestre em Economia Empresarial e Finanças (FGV EPGE), mestre em Administração (FGV EBAPE)  e bacharel em Economia (FGV EPGE). É economista da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE).
<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://www.imf.org/en/Publications/SPROLLs/world-economic-outlook-databases.
<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> AgInt no AREsp 1522043/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2020, DJe 10/03/2021
<a href="applewebdata://F99B1BC4-031E-411E-8300-AAA6226FBFAD#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> "é admitida a revisão das taxas de juros remuneratórios em situações excepcionais, desde que caracterizada a relação de consumo e que a abusividade fique cabalmente demonstrada, ante às peculiaridades do julgamento em concreto."

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JOTA

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