Luciana Moriya

Fernando Branco

O art. 151 da nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) tornou expressa a possibilidade de instituição de dispute boards em contratações públicas. Já frequentemente utilizado em contratos internacionais para a implantação de projetos de infraestrutura complexos, o dispute board corresponde a um comitê de especialistas escolhidos pelas partes que acompanha o desenvolvimento dos projetos, com a finalidade de orientar as partes, prevenir e dirimir seus eventuais conflitos, cujas decisões poderão ter caráter vinculante até que sejam reformadas ou confirmadas por um juiz ou tribunal arbitral.
Para regulamentar o tema, atualmente tramita na Câmara dos Deputados, com pedido de regime de urgência, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2289398">PL 2421/21</a>. A esse respeito, dado que determinados trechos de texto em tramitação parecem inviabilizar o aproveitamento de todos os benefícios que a constituição de um dispute board pode proporcionar, algumas considerações se mostram necessárias.
Nos termos de seu art. 5º, caput e §§1º e 3º, o dispute board deve ser constituído apenas após o registro de uma determinada controvérsia, sendo desconstituído, em regra, com a emissão de uma decisão ou recomendação sobre o conflito. Ou seja, por não acompanhar o projeto permanentemente, fica frustrada a pretensão de o dispute board atuar como mecanismo de prevenção de conflitos.
E essa pretensão tem se mostrado alcançável na prática. Em projetos internacionais nos quais houve a instituição permanente de dispute board, como o Docklands Light Railway, avaliado em US$ 500 milhões, e Saltend Private Gas Turbine Power Plant, de US$ 200 milhões, ambos no Reino Unido, nenhuma disputa se tornou uma demanda judicial ou arbitral, ou sequer foi levada formalmente ao dispute board (Chern, p. 3). Segundo a Dispute Resolution Board Foundantion (DRB Foundation), a ausência de qualquer disputa é observada em 60% dos projetos que contém dispute board (Levin, p. 361).
Trata-se de um resultado possível em razão de uma combinação de diversas características, notadamente: (i) a possibilidade de o dispute board prestar assistência informal às partes antes mesmo da instalação de um conflito; (ii) a imparcialidade e independência de seus membros; e, na medida em que constituído desde o início do projeto, (iii) o profundo conhecimento acerca da realidade da obra em questão.
Contudo, esses importantes traços do dispute board recebem obstáculos pelo texto em tramitação do PL 2021/2021, especialmente porque:
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<li>Não há previsão para que o dispute board, previamente à instauração de disputas, possa conferir assistência informal na solução de desentendimentos, o que poderia ser feito por meio de discussões, sessões individuais de orientação ou emissão de opiniões informais (Chern, p. 217). Modelos contratuais usualmente utilizados em projetos internacionais, tais como as minutas de contratos da Federation Internationale des Ingenieurs Conseils (FIDIC), preveem expressamente a possibilidade de o dispute board exercer essa função de assistência.</li>
<li>A despeito de prever os requisitos de imparcialidade e independência como características fundamentais dos membros do dispute board, não existe necessidade de aprovação, por uma parte, do membro indicado pela outra. Essa aprovação mútua — sem a necessidade de alegação de circunstâncias de conflito, impedimento ou suspeição — poderia ser estímulo adicional para que fossem levados ao dispute board conflitos ainda em sua fase inicial.</li>
<li>Como regra, está prevista a instituição do dispute board apenas maneira ad hoc, para tratamento de uma disputa específica. Contudo, é justamente na proximidade entre o projeto e os membros do dispute board que reside sua eficácia, possibilitando o conhecimento detalhado sobre os temas em discussão, de forma que disputas sejam tratadas satisfatoriamente e “em tempo real” (Chern, p. 4). A solução ad hoc, a despeito de possível, é recomendável apenas para projetos menores, com probabilidade reduzida de conflitos (Iudica, pp. 495 – 509).</li>
</ol>
Muito se argumenta sobre os custos decorrentes da manutenção de um dispute board permanente. Contudo, em projetos complexos, a instituição de um dispute board desde o início parece ainda assim justificável, pois: (i) os custos para a sua constituição e manutenção podem ser contingenciados antes mesmo da celebração do contrato, de modo semelhante aos custos de seguros do projeto (Chern, p. 29); e (ii) por estar mais próximo das circunstâncias que deram causa ao conflito, o dispute board pode compreendê-lo com muito mais agilidade que um árbitro ou um juiz, os quais tomarão conhecimento de fatos muitas vezes longínquos, por meio da fase de instrução e produção de provas (Iudica, pp. 495 – 509).
Estudos indicam que, para projetos entre US$ 50 milhões e US$ 100 milhões, os custos diretos totais de um dispute board normalmente variam entre 0,05% até 0,25% do custo final da obra, a depender da quantidade de disputas apresentadas ao dispute board. Em média, o custo girou em torno de 0,15% do custo final da obra (Levin, p. 362).
Outra evidência de que os dispute boards se justificam financeiramente é que diversos bancos de desenvolvimento exigem a utilização de dispute board nas obras que financiam. A título de exemplo, o Banco Mundial recomenda a utilização do dispute board, pois reconhece que esse método previne a ocorrência de disputas, e, quando de fato surgem, são tratadas de forma célere, antes que o problema escale e tome grandes proporções financeiras, sem envolver custos e tempo inerentes a uma demanda judicial ou arbitral (Gaitskell, p. 151).
Além dos aspectos abordados acima, parece demandar ajustes o art. 9º do PL 2421/2021, segundo o qual o dispute board previsto em edital e contrato poderia ser substituído por “câmara de arbitragem”.
A redação do dispositivo não parece clara, dado que o dispute board não é um mecanismo alternativo às referidas “câmaras de arbitragem”, seja porque existem “câmaras de arbitragem” especializadas em conduzir dispute boards (tal como o CAM-CCBC e o CBMA), ou mesmo por não existir uma relação excludente entre dispute boards e <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/arbitragem">arbitragem</a>.
Muito pelo contrário, esses meios alternativos de resolução de conflito são frequentemente cumulados em um mesmo contrato, como também ocorre nas minutas da FIDIC. Sendo o dispute board um meio de solução de controvérsia de base contratual (e não jurisdicional), o fato é que suas decisões, sejam ou não vinculantes às partes, ainda estarão sujeitas à revisão de um órgão com jurisdição sobre o conflito.
Isso não significa que o dispute board seja apenas um mecanismo redundante que “atrasa” a solução final do conflito, pois a realidade é que as partes tendem a cumprir suas decisões voluntariamente. Apenas a título ilustrativo: a Ertan Hydroelectric Dam, na China, avaliada em US$ 2 bilhões, contou com quarenta disputas encaminhadas a seu dispute board, mas nenhuma delas se tornou uma demanda arbitral ou judicial; e o Hong Kong International Airport, projeto de US$ 15 bilhões, teve seis disputas encaminhadas a seu dispute board, sendo que apenas uma se tornou um procedimento arbitral, no qual a decisão do dispute board foi mantida (Chern, p. 3). Na avaliação da DRB Foundation, 98% das disputas que foram submetidas ao dispute board não resultaram em demandas judiciais ou arbitrais subsequentes (Levin, 361).
Em síntese, é salutar que o Brasil esteja buscando a regulamentação do uso de dispute boards em contratações públicas, pois se trata de mecanismo que pode contribuir com a resolução e prevenção de conflitos em quaisquer contratos complexos. No entanto, a fim de que o dispute board possa ser uma ferramenta que permita a consecução do princípio da eficiência pela administração pública no tratamento de conflitos contratuais, ainda são necessários debate amplo e ajustes ao texto do PL 2421/21, tendo este artigo tratado apenas de alguns dos temas passíveis de discussão.
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Chern, Cyril. Cher on Dispute Boards. Practice and Procedure, 3th ed., New York: Informa Law from Routledge, 2015
Levin, Paul. Construction Contract Claims, Changes, and Dispute Resolution, 3th ed., Reston, Virginia: American Society of Civil Engineers, 2016
Iudica, Giovanni. The Dispute Board in Construction Contracts, in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 50/2016, São Paulo: RT
Gaitskell, Robert. International Dispute Resolution, in Construction Dispute Resolution Handbook, 2nd ed., London: ICE Publishing ,2011

dispute boards

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JOTA

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O PL 2421/21 e a utilização de dispute boards no Brasil

É salutar que o país esteja buscando regulamentação dos dispute boards, mas texto do PL 2421/21 ainda requer ajustes e debate amplo